sábado, 12 de março de 2022

Os erros nucleares que quase levaram à 3ª Guerra Mundial


Cisnes voando

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Na crise de Suez, 'objetos voadores não identificados' foram detectados sobrevoando a Turquia - eram cisnes

Era o meio da noite de 25 de outubro de 1962, e um caminhão corria por uma pista de decolagem no Wisconsin, nos Estados Unidos. Seu motorista tinha muito pouco tempo para impedir que os aviões levantassem voo.

Alguns minutos antes, um guarda do Centro Diretor do Setor de Defesa Aérea de Duluth, em Minnesota (também nos Estados Unidos), havia avistado uma figura sombria tentando escalar a grade do perímetro da instalação.

Ele atirou no invasor e fez soar o alarme, temendo que fosse parte de um ataque soviético de maiores proporções. Imediatamente, alarmes de intrusos soaram em todas as bases aéreas da região.

A situação progrediu muito rapidamente. Na base aérea de Volk, no Wisconsin, alguém moveu a chave errada e, em vez do alerta de segurança padrão, os pilotos ouviram uma sirene de emergência para que eles corressem. Pouco depois, a atividade na base era frenética, com os pilotos correndo para levantar voo, munidos de armas nucleares

Onze dias antes, um avião espião havia fotografado lançadores, mísseis e caminhões secretos em Cuba, o que indicava que os soviéticos estavam se mobilizando para atingir alvos nos Estados Unidos.

O mundo inteiro sabia muito bem que era necessário apenas um ataque de uma das nações para acionar uma escalada imprevisível.

Na verdade, neste caso não havia em Duluth nenhum invasor - ou, pelo menos, nenhum invasor humano. Acredita-se que a figura esgueirando-se pela grade tenha sido um grande urso. Tudo não passava de um engano.

Mas, no campo de Volk, o esquadrão ainda não sabia disso. Eles haviam sido informados que não era um treinamento e, enquanto embarcavam nos seus aviões, estavam totalmente convencidos de que havia chegado a hora - a Terceira Guerra Mundial havia começado.

Cheget

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Pasta contendo sistema de controle para o arsenal nuclear da Rússia

Por fim, o comandante da base percebeu o que estava acontecendo. Os pilotos foram interceptados enquanto ligavam os motores na pista de decolagem por um agente que, pensando rapidamente, tomou um caminhão e dirigiu-se a eles.

De lá para cá, a ansiedade atômica dos anos 1960 foi totalmente esquecida. Os abrigos nucleares preservaram a memória de megarricos e excêntricos tentando sobreviver e as preocupações existenciais voltaram-se para outras ameaças, como as mudanças climáticas.

Nós esquecemos facilmente que existem cerca de 14 mil armas nucleares em todo o mundo, com poder combinado de eliminar a vida de cerca de 3 bilhões de pessoas - ou até causar a extinção da espécie, caso acionem um inverno nuclear.

Sabemos que a possibilidade de qualquer líder detonar intencionalmente uma delas é extremamente remota. Afinal, esse líder teria que ser maluco.

O que não calculamos nessa equação é a possibilidade de que isso aconteça por acidente.

Ao longo do tempo, já escapamos pelo menos 22 vezes de guerras causadas por engano desde a descoberta das armas nucleares.

Já fomos levados à iminência da guerra nuclear por eventos inofensivos como um bando de cisnes voando, o nascer da Lua, pequenos problemas de computador e anormalidades do clima espacial.

Em 1958, um avião despejou acidentalmente uma bomba nuclear no quintal de uma casa de família. Milagrosamente, nenhum ser humano morreu, mas suas galinhas, criadas soltas, foram vaporizadas.

E esses contratempos continuam ocorrendo: em 2010, a Força Aérea dos Estados Unidos perdeu temporariamente a comunicação com 50 mísseis nucleares, o que significa que eles não teriam conseguido detectar e suspender eventuais lançamentos automáticos.

O susto de Yeltsin

Boris Yeltsin

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"Ontem, usei pela 1ª vez minha pasta preta com botão (nuclear)', disse o russo Boris Yeltsin em 26 de janeiro de 1995

Apesar dos vertiginosos custos e da sofisticação tecnológica das armas nucleares modernas (estima-se que os Estados Unidos gastem US$ 497 bilhões (R$ 2,5 trilhões) em suas instalações entre 2019 e 2028), os registros mostram a facilidade com que as salvaguardas estabelecidas podem ser confundidas por erro humano ou por animais silvestres curiosos.

Em 25 de janeiro de 1995, o então presidente russo Boris Yeltsin tornou-se o primeiro líder mundial da história a ativar uma "maleta nuclear" - uma mochila que contém as instruções e a tecnologia para detonar bombas nucleares.

Os operadores de radar de Yeltsin observaram o lançamento de um foguete na costa da Noruega e assistiram apreensivos à sua elevação nos céus. Para onde ele se dirigia? Era um foguete hostil?

Com a maleta nas mãos, Yeltsin consultou freneticamente seus principais conselheiros para saber se deveria lançar um contra-ataque. Faltando minutos para decidir, eles perceberam que o foguete se dirigia para o mar e, portanto, não era uma ameaça.

Posteriormente, veio a informação de que não era um ataque nuclear, mas sim uma sonda científica, que havia sido enviada para pesquisar a aurora boreal.

Autoridades norueguesas ficaram perplexas quando souberam da comoção causada pelo lançamento, já que ele havia sido anunciado ao público com pelo menos um mês de antecedência.

Fundamentalmente, não importa se um ataque nuclear for iniciado por equívoco ou devido a uma ameaça real - depois de iniciado, ele é irreversível.

"Se o presidente reagir a um alarme falso, ele terá acidentalmente iniciado uma guerra nuclear", afirma William Perry, ex-secretário de Defesa dos Estados Unidos no governo Bill Clinton e ex-subsecretário de Defesa do governo Jimmy Carter.

"Não há nada que ele possa fazer a respeito. Os mísseis não podem ser chamados de volta, nem destruídos."

Por que já escapamos desse perigo por um triz tantas vezes? E o que podemos fazer para evitar que aconteça de novo no futuro?

Como ocorrem os ataques nucleares

Lançamento de um foguete científico semelhante ao que assustou a Rússia

CRÉDITO,ALAMY

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Lançamento de um foguete científico semelhante ao que assustou a Rússia

Os primeiros sistemas de alerta criados durante a Guerra Fria estão na raiz desse potencial de erros.

Em vez de esperar que os mísseis nucleares atinjam o seu alvo (o que, é claro, forneceria prova concreta de um ataque), esses sistemas os detectam com antecedência para permitir que os países atacados possam retaliar antes que suas próprias armas sejam destruídas.

Para isso, é necessário obter dados. Muitos norte-americanos desconhecem que os Estados Unidos possuem diversos satélites observando a Terra silenciosamente todo o tempo.

Quatro desses satélites encontram-se a 35,4 mil km acima do planeta. Eles estão em "órbita geoestacionária" - em um local adequado, onde nunca mudam de posição com relação ao planeta que estão circundando.

Isso significa que eles têm uma visão mais ou menos constante da mesma região e podem detectar o lançamento de qualquer possível ameaça nuclear, sete dias por semana, 24 horas por dia.

Mas os satélites não conseguem rastrear os mísseis depois de lançados. Para isso, os Estados Unidos também mantêm centenas de estações de radar, que podem determinar a posição e a velocidade dos mísseis, calculando suas trajetórias.

Cronômetro marca 10 minutos

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10 minutos é o tempo que líderes geralmente têm para decidir se vão desencadear evento de destruição nuclear

Se houver indicações suficientes de um ataque em andamento, o presidente é informado.

"Assim, o presidente será alertado talvez cinco a dez minutos após o lançamento dos mísseis", segundo Perry. E ele e seus assessores têm a tarefa nada invejável de decidir se devem contra-atacar ou não.

"É um sistema muito complicado que fica em operação praticamente todo o tempo", afirma Perry. "Mas estamos falando de um evento de baixa probabilidade com altas consequências".

Um evento que, aliás, só precisa acontecer uma vez.

Tecnologia traiçoeira

Mísseis nucleares

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Uma vez lançados, os mísseis nucleares não podem ser interrompidos

Existem dois tipos de erros que podem gerar alarmes falsos: o erro humano e o tecnológico. Ou, se estivermos em uma grande maré de azar, ambos ao mesmo tempo.

Um exemplo clássico de erro tecnológico aconteceu enquanto Perry trabalhava para o presidente americano Jimmy Carter, em 1980. "Foi um choque muito grande", segundo ele.

Tudo começou com uma ligação telefônica às 3h da madrugada, quando o escritório de observação do comando de defesa aérea dos Estados Unidos informou a ele que computadores do sistema de vigilância haviam descoberto 200 mísseis dirigidos diretamente da União Soviética para os Estados Unidos.

Mas, naquele momento, eles já haviam percebido que não se tratava de um ataque real. Os computadores haviam feito alguma coisa errada.

"Eles na verdade haviam telefonado para a Casa Branca antes de mim - eles ligaram para o presidente. A ligação caiu direto no seu conselheiro de segurança nacional", relembra Perry.

Por sorte, ele levou alguns minutos para acordar o presidente e, nesse período, eles receberam a informação de que se tratava de um alarme falso.

Mas, se ele não tivesse esperado e acordasse Carter imediatamente, o mundo hoje poderia ser um lugar muito diferente.

"Se o próprio presidente houvesse atendido a ligação, ele teria tido cerca de cinco minutos para decidir se contra-atacaria ou não - no meio da noite, sem poder consultar ninguém", explica Perry.

A partir dali, Perry nunca mais pensou na possibilidade de um lançamento de mísseis por erro como um problema teórico - era, isso sim, uma possibilidade realista verdadeira e alarmante. "Foi por muito pouco", afirma ele.

Circuitos e bomba nuclear explodindo

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A tecnologia é um dos perigos

Naquele caso, o problema acabou sendo um chip com defeito no computador que executava os sistemas de alerta precoce do país. Ele acabou sendo substituído por menos de um dólar (menos de R$ 5).

Mas, um ano antes, Perry havia vivido outra situação extrema, em que um técnico inadvertidamente carregou o computador com uma fita de treinamento. Ele transmitiu acidentalmente os detalhes de um lançamento de míssil muito realista (mas totalmente fictício) para os principais centros de alerta.

Isso nos leva à questão de como envolver os cérebros profundamente inadequados de macacos bípedes em um processo que envolve armas com o poder de arrasar cidades inteiras.

E, além dos técnicos desajeitados, as principais pessoas com quem precisamos nos preocupar são aquelas que realmente detêm o poder de autorizar um ataque nuclear - os líderes mundiais.

Um assistente militar dos EUA carrega códigos de lançamento nuclear

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Um assistente militar dos EUA carrega códigos de lançamento nuclear

"O presidente dos Estados Unidos tem total autoridade para lançar armas nucleares e é a única pessoa que pode fazê-lo - é a única autoridade", afirma Perry.

Esse poder vem desde o tempo do presidente Harry Truman, que governou os Estados Unidos entre 1945 e 1953.

Na época da Guerra Fria, a decisão foi delegada aos comandantes militares, mas Truman acreditava que as armas nucleares são uma ferramenta política e, por isso, deveriam estar sob o controle de um político.

Todos os presidentes norte-americanos que o sucederam sempre foram seguidos em todos os lugares por um auxiliar carregando a "bola de futebol" nuclear, que contém os códigos de lançamento das armas nucleares do país.

Esteja ele em uma montanha, viajando de helicóptero ou atravessando o oceano, o presidente detém a capacidade de lançar um ataque nuclear.

Tudo o que ele precisa fazer é dizer as palavras e a destruição mútua garantida (MAD, na sigla em inglês) - a total aniquilação do atacante e do defensor - poderá ser atingida em questão de minutos.

Como muitas organizações e especialistas já indicaram, a concentração desse poder em um único indivíduo é um alto risco.

"Já aconteceu algumas vezes de um presidente beber muito ou estar tomando medicação. Ele pode sofrer de uma doença psicológica. Tudo isso já aconteceu no passado", afirma Perry.

Putin tomando café

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Putin colocou seu arsenal em alerta máximo

Quanto mais você pensa nisso, mais perturbadoras são as possibilidades. Se for à noite, o presidente estaria dormindo?

Com poucos minutos para decidir o que fazer, ele e seus assessores teriam pouco tempo para acordar completamente, que dirá tomar uma xícara de café.

Em agosto de 1974, quando o presidente norte-americano Richard Nixon envolveu-se no escândalo Watergate e estava à beira de renunciar ao cargo, ele foi diagnosticado com depressão e estava emocionalmente instável.

Houve rumores de que ele estava esgotado, bebendo em excesso e apresentando comportamento estranho. Aparentemente, um agente do Serviço Secreto flagrou-o uma vez comendo um biscoito para cães.

Nixon sempre foi conhecido por seus acessos de raiva, bebidas e por tomar fortes medicamentos controlados, mas isso era muito mais sério. Mesmo assim, ele ainda tinha o poder de lançar armas nucleares.

Presidente Richard Nixon

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Embora emocionalmente instável, Nixon manteve a autoridade para lançar armas nucleares

E o uso de entorpecentes também é um problema entre os militares que protegem o arsenal nuclear do país.

Em 2016, diversos membros da força aérea dos Estados Unidos que trabalhavam em uma base de mísseis admitiram o uso de drogas, incluindo cocaína e LSD. Quatro deles foram posteriormente condenados.

Como evitar um acidente catastrófico

Com tudo isso em mente, Perry escreveu um livro - The Button: The New Nuclear Arms Race and Presidential Power from Truman to Trump ("O botão: a nova corrida armamentista nuclear e o poder presidencial de Truman a Trump", em tradução livre) - em conjunto com Tom Collina, diretor de políticas da organização contra a proliferação nuclear Ploughshares Fund.

No livro, eles descrevem a precariedade da nossa atual proteção nuclear e sugerem possíveis soluções.

Antes de tudo, eles gostariam de ver o fim da autoridade única, de forma que as decisões sobre o lançamento ou não dessas armas de destruição em massa sejam tomadas democraticamente e o impacto de dificuldades mentais sobre a decisão seja diluído.

Nos Estados Unidos, isso significaria uma votação no Congresso. "Isso tornaria a decisão sobre o lançamento [de mísseis] mais lenta", segundo Perry.

Considera-se normalmente que a reação nuclear precisa acontecer com rapidez, antes que seja perdida a capacidade de contra-ataque.

Mas, mesmo se várias cidades e todos os mísseis dos Estados Unidos em terra fossem varridos por armas nucleares, o governo sobrevivente poderia ainda autorizar o lançamento de submarinos militares.

Submarino nuclear

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Uma forma de contra-atacar ataques nuclears é com submarinos

"A única forma garantida de retaliação ocorre quando você sabe [com certeza] que eles estão atacando. Nós nunca devemos reagir a um alarme que poderá ser falso", segundo Collina. E a única forma realmente confiável de garantir que uma ameaça é real é esperar que ela atinja a terra.

Reduzir a velocidade de reação faria com que os países mantivessem os benefícios de dissuasão oferecidos pela destruição mútua garantida, mas com redução significativa da possibilidade de iniciar uma guerra nuclear por engano, por exemplo, quando um urso começar a subir uma cerca.

Em segundo lugar, Perry e Collina defendem que as potências nucleares comprometam-se a usar armas nucleares apenas em retaliação, sem nunca serem as primeiras.

"A China é um exemplo interessante porque ela já tem uma política de não ser a primeira a usá-las", afirma Collina.

"E existe alguma credibilidade nessa política, já que a China separa suas ogivas [que contêm o material nuclear] dos mísseis [o sistema de lançamento]."

Bandeiras de China e India

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A China e a Índia são as duas únicas potências nucleares que se comprometeram com a política da NFU

Isso significa que a China precisaria reunir os dois antes de lançar um ataque e, com tantos satélites observando constantemente, é de se supor que alguém notaria esse movimento.

Curiosamente, os Estados Unidos e a Rússia não têm essa política. Eles se reservam o direito de lançar armas nucleares, mesmo em resposta a métodos de combate convencionais.

A adoção da política de "não usar primeiro" foi analisada pelo governo de Barack Obama, mas eles nunca conseguiram chegar a uma decisão a respeito.

Por fim, os autores do livro argumentam que seria benéfico que os países se desfizessem por completo dos seus mísseis balísticos intercontinentais em terra.

Por poderem ser destruídos por ataques nucleares inimigos, eles são as armas que seriam mais provavelmente lançadas às pressas em caso de suspeita de um ataque sem confirmação.

Outra possibilidade seria permitir o cancelamento dos mísseis nucleares, caso se descubra que uma provocação é, na verdade, um alarme falso.

"É interessante, pois, quando fazemos voos de teste, eles conseguem fazer isso", afirma Collina. "Se saírem do curso, eles podem autodestruir-se. Mas não fazemos isso com mísseis vivos, com receio de que o inimigo consiga de alguma forma o controle remoto e possa desarmá-los."

E existem outras formas em que a tecnologia de um país pode ser usada contra ele próprio.

À medida que nos tornamos cada vez mais dependentes de sofisticados computadores, existe a preocupação crescente de que hackers, vírus ou robôs possam iniciar uma guerra nuclear.

"Acreditamos que a possibilidade de alarmes falsos tenha aumentado com o crescimento do risco de ciberataques", afirma Collina.

Um sistema de controle poderá, por exemplo, ser levado a acreditar que um míssil está a caminho, o que poderia convencer o presidente a contra-atacar.

O maior problema, naturalmente, é que as nações querem que suas armas nucleares reajam rapidamente e sejam fáceis de usar - disponíveis a apenas um botão de distância. Isso inevitavelmente dificulta o controle do seu uso.

Embora a Guerra Fria tenha terminado há muito tempo, Collina indica que ainda estamos preparados para um ataque não provocado vindo do nada - quando, na realidade, passamos anos vivendo em um mundo radicalmente diferente.

Ironicamente, muitos especialistas concordam que a maior ameaça ainda vem dos próprios sistemas de lançamento projetados para nos proteger.

  • Zaria Gorvett
  • BBC Future

Professor Edgar Bom Jardim - PE

terça-feira, 8 de março de 2022

Sol negro: o que é o símbolo associado ao nazismo usado por militar ucraniano em foto viral da guerra




Militar ucraniano ajuda mulher a fugir de região sob ataque russo

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Militar ucraniano ajuda mulher a fugir de região sob ataque russo; símbolo adicionado por ele ao uniforme chamou a atenção nas redes sociais por ser associado ao nazismo

A fotografia de um militar ucraniano que atuava na evacuação de civis nas proximidades da capital Kiev viralizou por causa de um símbolo associado ao nazismo presente em seu uniforme.

A imagem registrada pela fotojornalista ucraniana Anastasia Vlasova passou a circular nas redes sociais depois de ser divulgada em uma postagem do Twitter do banco de imagens americano Getty Images.

Ao anunciar a invasão do território ucraniano, o presidente russo, Vladimir Putin, afirmou que a operação militar visava, entre outros objetivos, a desnazificação da Ucrânia.

Para especialistas, ao acusar há anos o país vizinho de ser dominado por organizações nazistas, o líder russo mobiliza uma série de conceitos e eventos históricos na região que ajudariam a justificar para o mundo e especialmente para o povo russo as ações militares contra um povo igualmente eslavo

Mas pesquisadores apontam que, apesar do avanço da presença de neonazistas nos últimos anos na Ucrânia (como ocorre em outros países), esses grupos não têm poder de decisão no governo ucraniano nem no Parlamento do país

O símbolo acrescentado pelo militar ucraniano da foto ao seu uniforme é composto por dois círculos concêntricos e raios que partem do círculo menor para o maior. Segundo a Liga Anti-Difamação (entidade que combate o avanço do antissemitismo), este símbolo é usado em diferentes versões por diversas culturas ao redor do mundo, como os nórdicos antigos e os celtas, por isso "não se deve assumir que a maioria das imagens em torno desse símbolo denote racismo ou supremacismo branco".

Mas, segundo a Liga Anti-Difamação, ele é bastante popular entre neonazistas por ser um dos "diversos símbolos europeus apropriados pelos nazistas em sua tentativa de inventar a idealizada herança ariana". Em geral, a versão mais comum desse símbolo entre neonazistas tem uma suástica, mas esta não aparece no símbolo no uniforme do militar ucraniano presente na foto que viralizou.

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Segundo a entidade Freedom House, o sol negro remete a movimentos ligados ao esoterismo e ao ocultismo de meados do século 19, e nos anos seguinte foi usada por diversas vertentes, como cultos satanistas ou neopagãos e organizações com traços esotéricos dentro do nazismo.

Esse símbolo, por exemplo, estava presente em um dos salões principais do castelo de Wewelsburg, sede da SS (Schutzstaffel ou Esquadrão de Proteção), a polícia nazista chefiada por Heinrich Himmler. "Mas ele voltou a se popularizar em 1991, com o livro O Sol Negro de Tashi Lhunpo, de Russell McCloud (pseudônimo do jornalista alemão Stefan Mogle-Stadel). Desde então, neonazistas de vários países têm o usado ativamente como símbolo de lições do ocultismo nazista que alega conectar o nazismo a 'saberes antigos secretos'", explica a entidade

Ainda segundo a Freedom House, na Ucrânia, o sol negro é frequentemente usado como uma marca da idelogia de extrema direita, sem significados esotéricos no país.

Militar ucraniano ajuda mulher a fugir de região sob ataque russo

CRÉDITO,ANASTASIA VLASOVA/GETTY IMAGES

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Detalhe da fotografia que viralizou com o símbolo do sol negro

Por outro lado, o sol negro é um dos símbolos associados ao nazismo que fazem parte da insígnia do Batalhão Azov, uma milícia de direita formada por diversos indivíduos com passado de atividade em organizações neonazistas.

O grupo ganhou notoriedade a partir de 2013, quando o quando o então presidente ucraniano Viktor Yanukovych, que comandava um governo pró-Rússia, cedeu à pressão de Putin e se recusou a assinar um pacto de aproximação do país com a União Europeia, algo que a maioria dos ucranianos desejava.

A decisão do presidente fez irromper protestos populares pelo país. Após meses de tensão, em 2014, Yanukovych fugiu para a Rússia e acabou deposto. A Rússia retaliou a derrubada do aliado tomando a Crimeia e desencadeando uma rebelião no leste ucraniano na região de Donbas liderada por separatistas apoiados pela Rússia. Nesse período, algumas milícias, como o Batalhão Azov, passaram a atuar para repelir os separatistas russos.

A partir dali, o Azov e outros grupos considerados de extrema direita por especialistas, como o Partido Svoboda e Pravyi Sektor (Setor de Direita), montaram suas próprias milícias armadas, muitas das quais passaram a integrar forças regulares ucranianas como a Polícia de Patrulha para Operações Especiais da Ucrânia e a Guarda Nacional da Ucrânia, empregadas contra os separatistas pró-Rússia na região de Donbas.

Integrantes do Batalhão Azov treinam contra a invasão russa

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Voluntários civis são treinados por veteranos do Batalhão Azov contra a invasão russa; à direita, a insígnia do regimento com variações de dois símbolos associados ao nazismo, o gancho de lobo e o sol negro

Em artigo sobre o tema no jornal Folha de S.Paulo, dois pesquisadores do Observatório da Extrema Direita, Odilon Caldeira Neto (UFJF) e David Magalhães (PUC-SP/Faap), afirmam que "o abrigo institucional de uma sabida organização neonazista reforça a ideia de que a extrema direita atua como linha auxiliar do governo ucraniano".

Mas mesmo que o governo que sucedeu o de Yanukovych tenha dado espaço a lideranças da extrema direita ucraniana, "sabe-se que os membros da extrema direita não exerceram poder de decisão a ponto de caracterizar o governo como neonazista".

Com exceção do Svoboda, partidos de extrema direita raramente conseguem eleger parlamentares em distritos com um único representante, e nenhum de seus candidatos presidenciais garantiu mais de 5% dos votos em eleições nacionais.

O outro símbolo associado ao nazismo presente na insígnia do Batalhão de Azov é uma espécie de variação espelhada do símbolo Wolfsangel (gancho de lobo, em tradução livre). Segundo a Liga Anti-Difamação, acreditava-se que esse símbolo (que se assemelha a armadilhas contra lobos) tinha capacidade de afastar lobos e historicamente podia ser encontrado em diversos lugares da Alemanha, até também ser apropriado pela SS nazista.

No caso ucraniano, o símbolo Wolfsangel invertido é usado pelo Azov e por diversas outras organizações de direita na Ucrânia, como o partido Svoboda, que significa Liberdade. Segundo a organização Freedom House, o símbolo é uma mistura das letras "I" e "N" (Ideia de Nação), mas algumas lideranças de organizações que usam esse símbolo, como o Patriota da Ucrânia, negam qualquer relação com o nazismo.

"Na Ucrânia, o símbolo da Ideia da Nação é usado apenas por organizações radicais de direita como um indicador de nacionalismo radical (neonazismo). Era o emblema do Partido Social-Nacional da Ucrânia (atual Partido Svoboda), da organização não governamental Patriota da Ucrânia e da Assembleia Social-Nacional. O Destacamento de Propósito Específico Azov (ou Batalhão de Azov) o usa como seu emblema, assim como estruturas relacionadas, como o ramo civil de Azov", afirma a Freedom House.

Stepan Bandera e as origens das acusações de nazismo na Ucrânia

É impossível entender as referências feitas por Putin sem voltar algumas décadas na História. Se, por um lado, o modo como o Exército Vermelho, da União Soviética, combateu e derrotou as tropas nazistas alemãs na Segunda Guerra Mundial ainda mobiliza o imaginário dos russos e seu orgulho nacional, de outro lado, a reação de ao menos parte dos seus vizinhos ucranianos em relação a Hitler segue sendo motivo de hostilidade entre russos e ucranianos.

Quando o exército nazista adentrou as áreas ucranianas, em 1941, uma parte da população optou por colaborar com os alemães, enquanto boa parte do país foi varrida por sofrimento e destruição. Mais de 5 milhões de ucranianos morreram combatendo os nazistas, que mataram a maior parte dos 1,5 milhão de judeus ucranianos.

A ocupação alemã durou até 1944, e os ucranianos que se engajaram na cooperação com os alemães nazistas atuaram na administração local, se tornaram parte da polícia nazista ou viraram guardas em campos de concentração. O governo civil alemão nazista foi batizado de Reichskommissariat Ukraine, ou RKU, e compreendia o que hoje se divide entre o território da Ucrânia, Belarus e Polônia.

Procissão para celebrar o aniversário de 112 anos de Stepan Bandera, no centro da Ucrânia, em janeiro de 2021

CRÉDITO,MYKOLA MIAKSHYKOV / UKRINFORM/BARCROFT MEDIA VIA

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Procissão para celebrar o aniversário de 112 anos de Stepan Bandera, no centro da Ucrânia, em janeiro de 2021

Uma das figuras mais proeminentes e controversas desse nacionalismo colaboracionista ucraniano foi Stepan Bandera, que primeiro atuou para facilitar o domínio dos nazistas na região e depois se voltou contra eles, quando percebeu que seu plano de independência da Ucrânia não se concluiria. Bandera passou anos em um campo de concentração nazista e acabaria assassinado por um agente da KGB em 1959.

Por trás da colaboração com os nazistas, estava também o objetivo de independência de parte dos ucranianos e a crença de que os alemães poderiam ser o caminho para se livrar do líder soviético Joseph Stálin.

Na região ucraniana da Galícia, depois de 2014, Bandera passou a ser cultuado como uma figura mítica, e o governo ucraniano incluiu-o entre os heróis da pátria. Para os ucranianos da maior parte do país, porém, é pouco mais que um símbolo.

"Bandera é considerado herói nacional porque se considera que sua aliança com os nazistas não se deu por afinidade ideológica, mas para lutar contra Stalin. Não se pode comprar a narrativa de que a Ucrânia é nazista, como afirma Putin, mas tampouco é possível dizer que o neonazismo no país seja insignificante", afirmou Andrew Traumann, professor de Relações Internacionais do Centro Universitário Curitiba (UniCuritiba) e pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisa em Oriente Médio (Gepom), à BBC News Brasil.

"Essa referência a nazistas e neonazistas se tornou muito proeminente na mídia russa por volta de dezembro de 2013, porque, na época dos protestos da Praça Maidan, alguns dos manifestantes faziam coisas como hastear uma bandeira de (Stepan) Bandera, um nacionalista ucraniano que, temporariamente, durante a Segunda Guerra Mundial, cooperou com os nazistas para tentar buscar a independência ucraniana. Há um segmento da população ucraniana que relembra aquelas tentativas de alcançar a independência ucraniana sob (Joseph) Stalin, aliando-se a Hitler, não como uma colaboração com o nazi-fascismo, mas como a atuação de patriotas ucranianos e heróis nacionais", explicou à BBC News Brasil Brian Taylor, professor de Ciência Política da Syracuse University e autor de The Code of Putinism (O Código do Putinismo, em tradução livre).

*Com informações de Luiz Antônio Araújo, colaborador da BBC News Brasil em Porto Alegre, e Mariana Sanches, correspondente da BBC News Brasil em Washington.

  • BBC News Brasil

Professor Edgar Bom Jardim - PE

domingo, 6 de março de 2022

O que se sabe sobre novo cessar-fogo de 11 horas na Ucrânia



Pessoas dormindo juntas para se aquecer na cidade de Mariupol
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Pessoas dormindo juntas para se aquecer na cidade de Mariupol

Um novo cessar-fogo temporário de 11 horas foi anunciado em Mariupol, uma cidade portuária no sul da Ucrânia, das 10h às 21h, horário local (05h às 16h, no horário de Brasília), de acordo com o conselho da cidade.

Os civis poderão deixar a cidade ao longo de uma rota acordada a partir das 12h, hora local (7h em Brasília).

Um plano semelhante anunciado no sábado (5/3) fracassou logo após ser anunciado, por conta de novos bombardeios.

Acompanhe a cobertura especial em tempo real da BBC News Brasil sobre a guerra na Ucrânia

Quais são os novos planos de cessar-fogo e evacuação para Mariupol?

Os civis poderão deixar Mariupol em ônibus que partem de três locais da cidade usando uma rota pré-acordada que termina em Zaporizhzhia, também na Ucrânia, segundo autoridades locais


Veículos particulares também podem sair da cidade, mas devem dirigir atrás dos ônibus, em um comboio liderado pela Cruz Vermelha. Os motoristas devem ocupar todos os assentos em seus carros, diz o conselho da cidade.

A notícia do cessar-fogo é positiva, mas deve ser tratada com certa cautela. Um plano semelhante foi anunciado no sábado para as cidades de Mariupol e Volnovakha, mas desmoronou rapidamente e a evacuação em massa foi adiada.

Novas tentativas de retirar civis de Mariupol ocorrem um dia após o anúncio de um cessar-fogo e um corredor de fuga humanitária, que desmoronou por conta de novos bombardeios russos. Estima-se que 200 mil pessoas ficaram presas durante dias sob bombardeio pesado.

Maxim, um desenvolvedor de TI de 27 anos que cuida dos avós em seu apartamento no sexto andar, disse à BBC que o sábado começou com esperança e terminou em desespero:

"O mais rápido que pude, arrumei quatro malas para mim e meus avós com roupas quentes e comida. Peguei toda a água restante e as coloquei no meu carro."

"Quando eu estava pronto para dirigir, o bombardeio começou novamente. Eu ouvi explosões perto de nós. Eu carreguei tudo de volta para o apartamento mais rápido que pude. De lá, eu podia ver fumaça subindo da cidade e também subindo da estrada para Zaporizhzhia, por onde as pessoas supostamente escapariam."

Soldado ucraniano na linha de frente na guerra contra a Rússia

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Soldado ucraniano na linha de frente na guerra contra a Rússia


"Muitas pessoas vieram para o centro da cidade porque ouviram que havia um cessar-fogo e que ônibus estavam a postos para tirá-las e fugir do bombardeio lá. Então, elas não puderam voltar para seus abrigos quando começou novamente."

"Então, levamos muitas pessoas para o apartamento. Elas são da zona oeste da cidade, e dizem que lá está destruído. Todas as casas estão queimando e ninguém pode apagar os incêndios. Há muitos cadáveres nas ruas e ninguém pode carregá-los."

"Ficamos sem água engarrafada e estamos com a água que enchi no banho antes de as torneiras fecharem. O gás é a única coisa que ainda funciona, podemos usá-lo para ferver a água do banho para beber."

"Hoje a polícia abriu as lojas e disse para as pessoas levarem tudo porque as pessoas aqui não têm comida nem bebida. Nossos vizinhos conseguiram levar alguns doces, peixes e alguns refrigerantes."

"O cessar-fogo foi uma mentira, um lado nunca planejou parar de atirar. Se eles disserem que há (outro cessar-fogo), teremos que tentar ir, mas não sabemos se será real. Talvez agora seja melhor nos esconder.

BBC

Professor Edgar Bom Jardim - PE