terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

Malfatti, Graz, Novaes e Aita: as mulheres (esquecidas) da Semana de Arte Moderna de 22





Folheto da Semana de Arte Moderna

CRÉDITO,KARINA BACCI/DIVULGAÇÃO

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Folheto da Semana de Arte Moderna

No ano em que ocorreu a Semana de Arte Moderna, em 1922, as mulheres no Brasil ainda não podiam votar - a conquista desse direito viria uma década depois. Na vida privada, elas não podiam ter conta bancária sem autorização do marido, assim como não existia o divórcio - este seria permitido no país quase 60 anos após o evento modernista.

Isso revela como a Semana de 22, ocorrida em São Paulo entre os dias 13 e 17 de fevereiro, foi revolucionária para a sociedade da época, mas também ajuda a explicar o porquê o nome de praticamente apenas uma mulher entrou para a história do evento - Tarsila do Amaral.

Porém, segundo a professora do Departamento de Artes Visuais do Instituto de Artes da Universidade de Brasília (UnB), Vera Pugliese, Tarsila nem no Brasil estava na data do festival.

"É interessante que, principalmente fora do meio universitário, Tarsila do Amaral seja indicada como uma das principais participantes da Semana de Arte Moderna. Em fevereiro de 1922, ela estava em Paris", diz Pugliese


A pintora paulista foi, de fato, umas das principais modernistas do país, "mas não participou da Semana de Arte Moderna. Nenhuma de suas obras esteve presente no festival artístico", conta a professora da UnB

Corrigindo a história: Aina, Gomide Graz e Novaes

Segundo os registros, apenas quatro mulheres participaram da Semana de Arte Moderna: as artistas visuais Anita Malfatti, Gomide Graz e Zina Aita; e a pianista Guiomar Novaes.

"Considerando-se a época, é natural que o número de participantes mulheres tenha sido pequeno, afinal, no Brasil do início do século 20 ainda predominava a ideia de arte feminina e arte masculina", explica a professora do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (USP) Mayra Laudanna


A professora Pugliese lembra que fazia parte da cultura burguesa da década de 1920 que as mulheres dessas famílias "escrevessem poesia e mesmo desenhassem ou pintassem, preferencialmente aquarelas", e que "tocassem ou pelo menos tivessem aprendido um instrumento musical".

"Escultura, nem pensar; era considerada excessivamente masculina", afirma.

No entanto, não era incentivado que as mulheres se profissionalizassem, uma vez que seus conhecimentos artísticos "deveriam restringir-se ao espaço privado de suas residências, dentro dos limites permitidos primeiro pelo pai e depois pelo marido", diz a professora da UnB.

Além das diferenças de gênero, a própria definição de arte da época impôs barreiras à popularização das artistas ligadas à decoração, como a tapeçaria e a cerâmica.

"Precisamos com urgência rever as hierarquias da história da arte para entender melhor o que foi a experiência modernista, que não se limitou ao espaço da tela, da moldura", ressalta a professora do Instituto de Estudos Brasileiros da USP Ana Paula Cavalcanti Simioni.

Autora do livro "Mulheres modernistas: estratégias de consagração da arte brasileira", que será publicado neste semestre, Simioni explica que um dos objetivos da arte modernista foi o de transformar os objetos do dia a dia. "Promover a ruptura com a separação entre arte e vida que se tinha", diz.

"Isso levará a uma compreensão mais generosa e contextualizada da relevância de Regina Graz [tapeceira] e Zina Aita [ceramista] para a arte moderna", sugere Simioni.

Já em relação ao esquecimento da participação da pianista Guiomar Novaes na Semana de Arte Moderna, a professora Laudanna sugere que o motivo pode ser a musicista "ter se indisposto com o evento devido a algumas paródias ocorridas antes de sua apresentação no Teatro Municipal de São Paulo", afirma.

Zina Aita

Mário de Andrade (sentado), Anita Malfatti (sentada, ao centro) e Zina Aita (à esquerda de Anita) em São Paulo em 1922

CRÉDITO,DOMÍNIO PÚBLICO

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Mário de Andrade (sentado), Anita Malfatti (sentada, ao centro) e Zina Aita (à esquerda de Anita) em São Paulo em 1922

A artista plástica Tereza Aita, conhecida como Zina, nasceu em Belo Horizonte, Minas Gerais, em 1900, e estudou desenho, pintura e cerâmica na Itália dos 14 aos 18 anos.

Quando retornou ao Brasil, em 1918, teve contato com o modernismo por meio, principalmente, dos amigos Anita Malfatti e Mário de Andrade.

Apesar de ser considerada precursora do modernismo em Minas Gerais por causa de uma exposição individual feita na capital mineira em 1920, Laudanna aponta que a lacuna sobre a obra de Aita no Brasil é enorme.

"Ainda hoje, pouco se sabe e quase nada se conhece dos trabalhos de Zina Aina", diz Laudanna. "Ela basicamente foi esquecida por falta de pesquisas [no Brasil] e por se localizar pouquíssimas obras suas".

A professora Pugliese também destaca o retorno de Zina à Itália logo após a Semana de Arte Moderna, em 1924, tendo permanecido no país até a sua morte, em 1967, e a sua preferência pela cerâmica.

"A desvalorização da cerâmica, taxada como arte decorativa (inclusive entre os artistas homens) não favoreceu seu reconhecimento como artista maior no meio das artes plásticas [modernistas]", acrescenta Pugliese.

"Sua produção permanece pouco conhecida, e grande parte de suas obras não é datada", afirma trecho de sua biografia na enciclopédia do Itaú Cultural.

Regina Gomide Graz

Retrato de Regina Gomide Graz

CRÉDITO,ENCICLOPÉDIA ITAÚ CULTURAL DE ARTE E CULTURA BRASI

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Retrato de Regina Gomide Graz feito pelo seu irmão, Antônio Gomide

A pintora, decoradora e tapeceira Regina Gomide Graz nasceu em Itapetininga (SP) em 1897. Após estudar em Genebra, na Suíça, Graz retornou ao Brasil em 1920, se aproximou dos modernistas e expôs sua obra em tapeçaria na Semana de Arte Moderna. Foi pioneira no interesse pela tradição indígena brasileira, tendo estudado a tecelagem indígena do Alto Amazonas para compor parte de sua obra.

"Regina Gomide Graz foi a introdutora das artes decorativas modernas no Brasil, em especial nos suportes têxteis. Participou de um projeto de modernização da decoração em lares de São Paulo, ao lado de seu esposo, o artista suíço John Graz e seu irmão, o artista Antonio Gomide", conta Simioni.

A artista é considerada uma das mais produtivas do Modernismo brasileiro entre 1920 e 1940, mas sua obra foi reduzida pela história como "colaboradora" do marido John Graz e do irmão Antônio Gomide. Em livros, Regina é descrita como "esposa" e "irmã" de artistas, quase nunca como "autora".

Exposição dos tapetes de Regina Gomide

CRÉDITO,DOMÍNIO PÚBLICO

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Exposição dos tapetes de Regina Gomide Graz em 1925

Além disso, "em virtude de sua escolha por materialidades menos valorizadas pela história da arte (decoração, arte têxtil), Regina acabou ocupando um lugar menor, mas que vem sido revisto", diz Simioni.

Guiomar Novaes

Retrato da pianista Guiomar Novaes

CRÉDITO,REPRODUÇÃO INSTITUTO PIANO BRASILEIRO

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Retrato da pianista Guiomar Novaes

A pianista se apresentou na terceira noite do evento em um recital com obras de Debussy e Villa-Lobos. Teria sido a única artista daquela noite no Teatro Municipal a ter uma plateia em silêncio durante a sua apresentação e, em seguida, receber aplausos calorosos do público.

Apesar do sucesso entre o público, Novaes deu uma entrevista na época afirmando estar triste com "peças satíricas à música de Chopin" que marcaram a segunda noite de apresentações. A pianista teria se sentido ofendida, uma vez que Chopin era a sua especialidade.

Novaes nasceu em São João da Boa Vista, interior paulista, em 1894. Começou a tocar piano aos 4 anos e, aos 15, se mudou para a Europa para estudar música.

A musicista teve uma sólida carreira internacional, tendo se apresentado para personalidades como a Rainha Elizabeth 2ª e o presidente americano Franklin Roosevelt. Ela já era uma das pianistas mais prestigiadas do Brasil quando se apresentou na Semana de Arte Moderna.

Malfatti, a primeira modernista

A discreta e tímida Anita Malfatti produziu "uma arte distante dos padrões vigentes [os padrões europeus] antes mesmo de 1922", diz Laudanna. Por isso, segundo a professora, Malfatti é considerada a primeira pintora modernista do Brasi

Anita Malfatti em foto de 1912

CRÉDITO,DOMÍNIO PÚBLICO

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Anita Malfatti em foto de 1912

Filha de um imigrante italiano, Malfatti nasceu em 1889 em São Paulo. Em 1910, se mudou para a Alemanha para estudar artes. Em seguida, foi para os Estados Unidos, onde produziu uma série de nus artísticos - um escândalo para os conservadores da época.

Em 1917, já de volta ao Brasil, a pintora realizou uma exposição individual em São Paulo intitulada "Exposição de Pintura Moderna", que serviu de estopim para a Semana de Arte Moderna, cinco anos depois.

Isso porque, assim como o evento de 1922, que não foi bem recebido por parte do público, a exposição individual de Malfatti de 1917 foi ferozmente criticada por Monteiro Lobato em um texto intitulado "Paranóia ou Mistificação?".

"Após a crítica negativa de Monteiro Lobato, Oswald de Andrade, Di Cavalcanti e outros saíram em defesa de Anita nos jornais. Foi aí que estes artistas tomaram consciência do que os unia: um desejo de inovação e de se contraporem aos parâmetros da crítica e de gosto então em vigor", comenta Simioni.

A exposição de 1917 foi lembrada pelos críticos e pelos jornais nos anos em que se seguiram. Ora lembravam da coragem e originalidade de Malfatti, ora retomavam as críticas de Lobato.

"Ainda que Malfatti não tenha se concretizado como a cabeça do movimento modernista, posição inicialmente assumida por Victor Brecheret, a artista continuou sendo, na Semana de Arte Moderna, a personificação do escândalo da arte modernista", explica Pugliese.

O projeto "Ver Anitta", da professora Laudanna, hospedado no site da USP, recuperou entrevistas de Malfatti sobre a repercussão de sua exposição anterior à Semana de Arte Moderna.

Em 1955, a pintora afirmou ao jornal A Gazeta que não tinha ideia de que suas obras de 1917 seriam encaradas como uma "revolução".

"Achei que era natural aquilo", disse Anita à Gazeta sobre a crítica de Lobato.

"Apenas não tomei aquilo tudo como uma revolução nem imaginei o que iria causar mais tarde. Apenas quando o movimento tomou conta da literatura, da música e das outras artes, em geral, foi que avaliei o que estava acontecendo", continuou a artista modernista.

Malfatti expôs cerca de dez obras durante a Semana de Arte Moderna

"Estávamos completamente felizes apesar dos protestos e vaias. O Villa executou um tremendo concerto sinfônico de abalar as paredes do velho Municipal, na noitada de sexta-feira. Assim terminava a Semana. Tínhamos feito algo que só vinte ou trinta anos depois poderíamos registrar assim: deixamos um ponto luminoso na história da cultura da Cidade de São Paulo", afirmou Malfatti em 1954 ao jornal O Carioca.

Reescrevendo Tarsila na Semana

Tarsila, por sua vez, além de não ter participado do evento, foi apresentada aos modernistas fomentadores da Semana, Oswald de Andrade, Mario de Andrade e Menotti del Picchia, meses depois do evento, por intermédio de Anita Malfatti, sua conhecida desde 1919.

"Tarsila passou a conviver com eles após a Semana. Juntos, formaram o 'Grupo dos Cinco', que se manteve unido em torno da ideia de produzir uma arte 'brasileira'", resgata Laudanna.

O "Grupo dos Cinco" durou apenas alguns meses, contudo.

"O grupo se desfaz com o retorno de Tarsila para a Europa ainda no mesmo ano de 1922", diz a professora da USP.

"A Semana foi se construindo como um "mito fundador" posteriormente, assim como se foi construindo Tarsila como a musa do modernismo, e em algum momento se atrelou uma coisa a outra, mas isso não tem nenhuma veracidade", conclui a professora Simioni

  • Laís Modelli
  • De São Paulo para a BBC Brasil

Professor Edgar Bom Jardim - PE

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

Semelhanças entre Rússia e Brasil





Kremlin

CRÉDITO,GETTY IMAGES

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Catorze horas de avião separam Brasília de Moscou — e olhando bem, há muito em comum entre brasileiros e russos.

Catorze horas de avião separam Brasília de Moscou — são mais de 11 mil quilômetros. E um sem-número de diferenças históricas, culturais, étnicas, sociais, geográficas e climáticas, é claro. Mas, olhando bem, há também muito em comum entre brasileiros e russos.

"O Brasil exerce uma espécie de fascínio sobre os russos, e a Rússia, sobre os brasileiros", diz a jornalista Vivian Oswald, em seu livro Com Vista para o Kremlin. "A grande distância entre estes países continentais — quase intangível para aqueles que nunca a percorrerão — se encarrega de apimentar os imaginários coletivos com uma dose de exotismo e muitas pitadas de estereótipos em relação ao outro."

"Além da dimensão continental e as temperaturas extremas, o Brasil para mais, a Rússia para menos, há pouca coisa [em comum entre os países]", comenta o pesquisador e escritor Paulo Rezzutti, que já escreveu livros sobre as duas nações. "Eles [os russos] têm um respeito e conhecimento pelo seu passado e pela sua cultura que o brasileiro médio não chega aos pés. Eles são simpáticos, mas mais fechados."

A seguir, algumas curiosidades sobre esses dois países


Gigantes

Ambos estão na seleta lista dos países de dimensões continentais. A Rússia — que na época da União Soviética chegou a ter uma área de 22,5 milhões de quilômetros quadrados — lidera o ranking mundial com impressionantes 17 milhões de quilômetros quadrados. Caberiam na Rússia quase 39 milhões de Vaticano


O Brasil não perde feio. Com 8,5 milhões de quilômetros quadrados, é o quinto maior país do mundo.

Essas enormidades fazem de ambos os territórios espaço para diversidades climáticas e culturais. E isso se reflete até nos fusos horários: o Brasil tem quatro, a Rússia tem 11.

Em termos populacionais, o Brasil está na frente. Tem a sexta maior população do mundo, com 216 milhões de habitantes. Os russos são 145 milhões — figuram na nona colocação.

Por outro lado, parece que atraímos mais os russos do que o contrário. Dados mais recentes do Ministério das Relações Exteriores registram apenas 1,1 mil brasileiros vivendo na Rússia. Segundo a Embaixada da Federação Russa no Brasil, há 35 mil russos vivendo no Brasil. No livro Imigrantes Russos no Brasil, o pesquisador Igor Chnee afirma que vivem em solo brasileiro 1,8 milhão de descendentes de imigrantes russos atualmente.

Novelas e futebol

Russos e brasileiros compartilham alguns gostos em comum. As novelas, por exemplo. Produções nacionais são exibidas por lá desde a época soviética — com A Escrava Isaura. E seguem sendo um hit.

"Fonte inesgotável de informações sobre cenários e comportamentos tipicamente brasileiros, as nossas novelas continuam fazendo sucesso na Rússia", diz Oswald, em seu livro. "Acho que boa parte da simpatia que nutrem por nós […] vem das imagens que guarda das novelas. Descobri, inclusive, que as novelas brasileiras estão entre os itens mais pirateados da internet russa, segundo dados de uma empresa de segurança que acompanha movimentos suspeitos de cópias e reproduções piratas na rede."

Vagner Love no CSKA

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Vágner Love fez história no CSKA Moscou, onde jogou de 2004 a 2012 e, depois, novamente em 2013.

"É comum vê-los sonhando com as praias cariocas", acrescenta ela.

O futebol é outra paixão em comum. E aí russos não pestanejam em exaltar nomes como Pelé, Ronaldinho, Kaká, Neymar… E Vágner Love, atacante que está longe de ter se tornado uma unanimidade no Brasil, mas que fez história no clube CSKA Moscou, onde jogou de 2004 a 2012 e, depois, novamente em 2013.

Coincidentemente, Brasil e Rússia foram os países-sede das últimas duas Copas do Mundo, respectivamente em 2014 e 2018.

Religião

Mais de 100 milhões de russos se declaram cristãos da Igreja Ortodoxa — embora se estime que o número de fiéis ativos esteja entre 20 e 30 milhões. No Brasil, são quase 119 milhões de católicos — e 170 milhões que se dizem cristãos.

Igreja do Sangue em Honra de Todos os Santos que Resplandeceram na Terra Russa, em Ecaterimburgo

CRÉDITO,EDISON VEIGA

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Igreja do Sangue em Honra de Todos os Santos que Resplandeceram na Terra Russa, em Ecaterimburgo, no mesmo local onde os Romanov foram executados:


Além da religiosidade em si, a história das duas principais denominações religiões também diz muito sobre a formação social de ambos os países. Isto porque as igrejas Católica Apostólica Romana e Ortodoxa Russa têm uma raiz comum — e guardam semelhanças e uma relação de respeito mútuo.

O racha histórico entre esses dois mundos ocorreu em 1054, no episódio chamado de Cisma do Oriente. Conforme explica o vaticanista Filipe Domingues, doutor pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma e vice-diretor do Lay Centre em Roma, uma diferença importante é que a Igreja Ortodoxa "não tem a autoridade central, como os católicos têm o papa".

"São igrejas autocéfalas, com patriarcas, que são líderes locais. No caso russo, há a figura do patriarca de Moscou, atualmente Cirilo 1º. Para os ortodoxos, papa Francisco seria o "patriarca de Roma".

A relação é amigável. Em 2016, Francisco e Cirilo se encontraram, em um gesto histórico. "Ao mesmo tempo, é uma relação de cuidado, diplomática. Porque a Igreja Russa é muito influenciada pelo governo russo", diz Domingues.

Nesse sentido, pode haver algum paralelo com o presidente brasileiro Jair Bolsonaro, que costuma adotar pautas moralistas, se aproximando do eleitorado cristão conservador.

"[O presidente russo Vladimir] Putin usa a Igreja Ortodoxa como um meio de controle. É quase a religião oficial. Os bispos agem como parte do governo russo", analisa Domingues.

Uma nostalgia reacionária

Na política, o pesquisador Paulo Rezzutti, autor de diversas biografias sobre personalidades do antigo império brasileiro e do recém-lançado Os Últimos Czares - Uma Breve História Não Contada dos Romanov, observa que "as simpatias monarquias em ambos os países nunca morreram".

"Acabaram se metamorfoseando com o tempo", pontua ele. "A extrema-direita, em ambos os países, é anticomunista e tradicionalista, autoritária e nacionalista. O que une muitos dentro desse espectro político é o tradicionalismo, representado pela monarquia, tanto que diversos políticos brasileiros não tiveram o menor escrúpulo em surfar na onda o movimento, sem saber o mínimo sobre nossa história e seus personagens e ainda tentando emplacar fake news a respeito deles."

"Aqui no Brasil, a bandeira do Império brasileiro retornou em alguns gabinetes políticos e até chegou a ser hasteada em algumas cidades", lembra Rezzutti. "Na Rússia, houve ameaças de bombas em cinemas e uma crítica feroz ao filme Mathilde, de 2017, sobre uma bailarina que foi amante do czar Nicolau 2º."

Nesse sentido, a religiosidade também permeia os discursos. Se entre parcela dos monarquistas brasileiros há um movimento que pede a canonização da princesa Isabel, os Romanov já gozam dessa prerrogativa dos altares.

"Nicolau, Alexandra e os cinco filhos foram canonizados em 1981 como neomártires pela Igreja Ortodoxa Russa no exterior. Para esse ramo, por ter sido chefe espiritual da Igreja Ortodoxa, Nicolau fora sacrificado por causa de sua fé, e isso era prova de sua santidade", contextualiza o pesquisador.

"A Igreja Ortodoxa Russa, depois de muito debate, também canonizou posteriormente Nicolau, Alexandra e os filhos, mas como portadores da paixão, ou seja, pessoas que encararam a morte com resignação. A evidência disso seria o sinal da cruz feito por Alexandra e Olga antes de morrerem", completa.

Vícios

Bebe-se muito em ambos os países, é verdade. Nos dois casos, acima da média global — em torno de 6,2 litros por pessoa ao ano. Mas entre cachaças e vodcas, os russos são muito mais exagerados do que os brasileiros: 15,2 litros anuais per capita, contra 8,7.

"O risco de morte violenta entre os homens […], em geral causada pelo abuso de álcool ou drogas, é de três a quatro vezes superior ao de outros países da Europa e das Américas", pontua Oswald, em seu livro sobre a Rússia. "O álcool, o tabaco e, mais recentemente, as drogas estão entre os principais responsáveis pela morte precoce dos locais, sobretudo dos homens."

Segundo a autora, o álcool é visto como um dos maiores vilões da nação. "Chama a atenção do estrangeiro a relação dos russos com a bebida. Homens e mulheres podem ser vistos a qualquer carregando garrafas graúdas de cerveja pela rua", frisa ela.

"Uma das imagens clássicas do inverno é a de garrafas de vodca enterradas parcialmente na neve", conta. "Alguns dos seus donos acabam na mesma situação. Reza a lenda que se a nevasca for muito intensa e o gelo durar por muito tempo, só são encontrados depois de passado o inverno."

E se no Brasil cigarro é algo visto como fora de moda, e principalmente os jovens não demonstram interesse pelo tabagismo, na Rússia o cenário é preocupante. De acordo com dados do livro Com Vista para o Kremlin, 75% dos homens fumam e 70% dos estudantes na faixa entre os 13 e 18 anos também alimentam o vício. Além disso, o tabagismo faz parte do cotidiano de metade das grávidas.

No prato

De um lado, delícias como a feijoada. De outro, pratos famosos como estrogonofe.

Que, vale ressaltar, ganhou também suas versões brasileiras e caiu no gosto popular. A jornalista Vivian Oswald conta, em seu livro, que os russos "surpreendem-se ao descobrir que o brasileiro come seu aportuguesado estrogonofe sempre, desde criança".

Estrogonofe

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Estrogonofe, um prato russo, caiu no gosto popular brasileiro

Mas as diferenças estão nos ingredientes. Na Rússia, não vai tomate. E o creme de leite é uma versão um pouco diferente, chamada de smetana, comum aliás aos países de cultura eslava. "O prato costuma ser servido com batatas cozidas ou purê de batatas", detalha a jornalista. "Arroz, muito de vez em quando. E não é lenda: as russas, de fato, têm a receita na ponta da língua."

O mais importante, contudo, é a carne. Ao contrário das invenções brasileiras — com versões de frango e até camarão —, para um russo não é admissível estrogonofe que não seja feito de carne de boi.

Na alta gastronomia os russos também têm seus expoentes. No mesmo estilo do brasileiro Alex Atala — ou seja, com a ideia de fazer um mergulho nas tradições culinárias e reinventá-las com pose contemporânea e preços exorbitantes — o White Rabbit faz sucesso em Moscou. Em comum, ambos são há anos figurinhas fáceis nos rankings dos melhores restaurantes do mundo e estrelam episódios da cultuada série Chef's Table, da plataforma Netflix.

A nostalgia pelo passado

São dois lados opostos, mas muito provavelmente da mesma moeda: a nostalgia russa e a saudade brasileira tem bem aquele espírito que jocosamente costuma ser chamado de "viúvo da ditadura".

Assim como no Brasil muitos celebram com "bons tempos" aquele período de regime militar opressor, muito provavelmente pela memória embaçada pelo passar do tempo, pela censura que não permitia saber das corrupções e das violência impostas pelas instituições, na Rússia não são poucos os que lamentam pelo passado glorioso — no caso, o período socialista soviético.

"[A nostalgia] está na maneira como idealizam o passado da potência que querem ressuscitar com o capitalismo e velhos sonhos prometidos pela propaganda soviética que alguns juram ter sido realizados", comenta Oswald, em seu livro.

"Fala-se com saudade dos tempos em que a vida era mais dura, mas em que os aposentados não precisavam arranjar bicos ou pedir esmolas para viver os anos que lhes restavam depois de uma vida inteira de trabalho", exemplifica ela.

Como brincam os memes, são as "saudades do que não vivi". Quem nunca?

  • Edison Veiga
  • De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil

Professor Edgar Bom Jardim - PE