terça-feira, 24 de agosto de 2021

Fotógrafo registra há 50 anos a natureza que o Brasil está destruindo





Ribeirinhos do rio Jufari brincam nas raízes da Sumaúma. Amazonas, 2016

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Ribeirinhos do rio Jufari brincam nas raízes da Sumaúma. Amazonas, 2016

"A fotografia tem um papel importante porque ela é uma crônica. Quando feita com arte e com informação, é a crônica da beleza e do extermínio. Eu venho acompanhando o processo de desertificação desse país. É impressionante."

Em 2021, o fotógrafo Araquém Alcântara completou 70 anos, 50 deles dedicados a preservar em imagens a natureza que o Brasil está destruindo.

Com o que considera um olhar amadurecido para o exercício de paciência e contemplação que é a fotografia de natureza, Araquém volta à Amazônia neste fim de agosto para registrar o que é esperada para a ser a pior temporada de queimadas dos últimos anos, em meio à forte seca que assola o Brasil e ao enfraquecimento da fiscalização ambiental promovido pela gestão Jair Bolsonaro (sem partido).

Ao mesmo tempo, planeja para novembro o lançamento do livro comemorativo dos seus 50 anos de profissão; para o primeiro semestre de 2022, um livro sobre a Amazônia voltado ao público europeu; e ainda sem data, um terceiro livro, sobre a fauna brasileira para escolas.

Mico-de-cheiro com filhote no Parque Nacional da Serra do Divisor. Acre, 2006

CRÉDITO,ARAQUEM ALCANTARA

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Mico-de-cheiro com filhote no Parque Nacional da Serra do Divisor. Acre, 2006

Também prepara uma mostra do seu trabalho para influenciar os líderes mundiais na tomada de decisões na COP26, a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas de 2021, prevista para acontecer de 31 de outubro a 12 de novembro em Glasgow, na Escócia.


"Meu trabalho é resistência da memória. Mais de 50% do Cerrado já foi; restam só migalhas, nem 1% das matas de araucárias; e a Amazônia começa a entrar no seu ponto de declínio, no seu ponto de savanização e daqui a pouco não produz mais chuva", diz Araquém à BBC News Brasil.

"O [historiador americano] Warren Dean em determinado momento se pergunta: 'Não deveria esse holocausto produzido pelo homem ser relatado de geração para geração? Não deveria o manual de história aprovado pelo Ministério da Educação começar assim: Crianças, vocês vivem em um deserto, vamos lhes contar agora como foi que vocês foram deserdadas'", afirma o fotógrafo, citando o autor de A Ferro e Fogo, clássico da história ambiental sobre a devastação da Mata Atlântica brasileira.

"É preciso documentar, é preciso mostrar isso, é preciso gritar por mudança já. Ainda bem que, para isso, eu tenho o texto e a foto."

Fogo na Transamazônica. Janeiro de 2010

CRÉDITO,ARAQUEM ALCANTARA

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Fogo na Transamazônica. Janeiro de 2010

'Comecei cantando minha aldeia'

Nascido em Florianópolis, em 1951, Araquém estudou em colégio interno, num seminário carmelita de Itu, no interior de São Paulo. A princípio um amante da escrita, se apaixonou pela imagem numa sessão de cinema promovida em Santos pelo agitador cultural francês Maurice Lègeard.

"Eu era meio 'hippão' — ou totalmente 'hippão' —, cabeludão à la Jimi Hendrix. Era um janeiro de 1970, eu tinha 17 anos, nem sabia direito que filme era, e de repente me aconteceu", lembra o fotógrafo.

"O filme se chamava A Ilha Nua, de Kaneto Shindô, e eu vendo aquilo ali fui ficando transido no escuro diante de tanta beleza. Quando acabou o filme, teria uma festa, eu falei à namorada que não iria. 'Eu vou para a praia, preciso pensar'. Na praia do Gonzaga em Santos, tirei o tênis, fui andando pela beirada da água e me veio um insight. No dia seguinte, virei fotógrafo."

Menino Karajá brinca com pirarucu no Rio Araguaia. Goiás, 2014

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Menino Karajá brinca com pirarucu no Rio Araguaia. Goiás, 2014

Ele conta que começou a fotografar com uma câmera emprestada. "Fui fotografar as putas do cais e os urubus de Santos, tema do meu primeiro ensaio."

Mas foi o apocalipse da Cubatão dos anos 1980 — cidade que ficou conhecida como "Vale da Morte", devido à elevada concentração de poluentes industriais, impossibilitados de se dispersar pelo paredão da Serra do Mar — que despertou Araquém para a questão ambiental.

"Comecei a cantar minha aldeia. E a minha aldeia, a baixada santista, tinha Cubatão, o rico 'Vale da Morte'. Eu comecei ali a entender o que significava sustentabilidade — ou insustentabilidade. Crianças sem cérebro, a destruição em função da ganância", relata, lembrando das mais de 30 crianças nascidas mortas devido a anencefalia causada pela exposição das mães à poluição excessiva.

"Ao tomar uma chuva ácida nas costas, ali eu comecei a ser um precursor da fotografia de natureza e comecei a minha andança, minha Odisseia, que dura até hoje."

Desde então, Araquém passou por veículos diversos da imprensa nacional (os jornais Cidade de Santos, O Estado de S. Paulo, Jornal da Tarde, O Globo, Tribuna de Santos, a revista IstoÉ), fundou sua própria editora — a Terra Brasil, batizada a partir do livro de mesmo nome, lançado em 1998 e que desde então já vendeu mais de 130 mil cópias, num país onde a tiragem média das obras é de 2,5 mil — publicou 58 livros e ganhou mais de 100 prêmios em todo o mundo.

Mata Atlântica no Parque Estadual Carlos Botelho. São Paulo, 2018

CRÉDITO,ARAQUEM ALCANTARA

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Mata Atlântica no Parque Estadual Carlos Botelho. São Paulo, 2018

A velhice e as redes sociais

Araquém vive agora a experiência de envelhecer como um fotógrafo ainda na ativa.

"Agora, o olhar mais amadurecido já hospeda melhor o silêncio, a percepção, eu já simplifico as coisas. A fotografia é um grande exercício de paciência e de contemplação, sobretudo a de natureza. O verdadeiro fotógrafo de natureza perde 99% de suas fotos, mas aquele 1% corrige tudo sob o céu", afirma, de forma grandiloquente.

Bastante ativo nas redes sociais, o fotógrafo teve no início de agosto uma de suas imagens apagadas pelo Instagram. A fotografia mostrava uma jovem indígena do povo Zo'é dando de mamar ao seu filho, ao lado de uma outra jovem indígena com os seios à mostra.

A rede social alegou que a imagem ia "contra as diretrizes da comunidade sobre nudez".

"Acho muito importante para o meu trabalho e o de outros fotógrafos e artistas a divulgação nas redes sociais. Mas não dá para entender a falta de critério, a burrice dos algoritmos", diz.

"O Instagram precisa mudar seus filtros e os artistas precisam se movimentar nesse sentido. O meu grito de repúdio teve esse objetivo", completa.

Menina Zo'é na Frente de Proteção Etnoambiental do Cuminapanema. Pará, 2007

CRÉDITO,ARAQUEM ALCANTARA

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Menina Zo'é na Frente de Proteção Etnoambiental do Cuminapanema. Pará, 2007

Um andarilho na pandemia

Autodefinido como um "fotógrafo andarilho", Araquém decidiu abandonar o isolamento imposto pela pandemia quando, em meados de 2020, o Pantanal começou a queimar de forma sem precedentes.

"Quando o Pantanal começou a ser incinerado eu pensei: 'Eu não posso ficar aqui'. E aí me expus", lembra o artista. "Nessa ida para o Pantanal, no período em que fiquei lá, eu vi a face do horror. Vi que é possível tudo virar cinza e deserto."

Araquém Alcântara no meio do fogo na Rodovia Transpantaneira. Setembro de 2020

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Araquém Alcântara no meio do fogo na Rodovia Transpantaneira. Setembro de 2020

Esse ano, Araquém volta a campo para uma nova temporada na Amazônia, que deve se estender do fim de agosto a outubro, auge do período de queimadas na região.

"Estou indo para a Amazônia novamente porque as perspectivas são catastróficas", afirma.

"A seca está muito severa e o enfraquecimento todo da fiscalização sugerem mais um ano de recordes", alerta, lembrando que o maior número de focos de queimadas dos últimos 14 anos foi registrado em junho, mês que ainda não é de temporada de fogo.

"É fundamental uma moratória. É fundamental parar o desmatamento já e a fotografia tem um papel importante nisso."

Rodovia Cuiabá-Santarém. 2017

CRÉDITO,ARAQUEM ALCANTARA

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Rodovia Cuiabá-Santarém. 2017

As fotografias da viagem de agora devem ser aproveitadas no livro sobre a Amazônia voltado para o mercado europeu, que deverá ser dividido em três partes: A Terra, O Homem e O Desequilíbrio — uma referência aos Sertões de Euclides da Cunha, cuja obra seminal sobre o conflito de Canudos é dividida entre A Terra, O Homem e A Luta.

Primeiro fotógrafo a documentar todos os parques nacionais do Brasil, Araquém avalia que a mudança da política ambiental nacional no período recente é "criminosa".

"É uma coisa catastrófica, um crime de lesa humanidade", afirma. "A questão fundiária na Amazônia precisa ser resolvida e é preciso manter a floresta em pé imediatamente. Os governos ignoram a ganância das quadrilhas de grileiros, em nome de um falso progresso que só enriquece uma minoria."

"Eu sou uma testemunha ocular dessa barbárie, porque fotografo a natureza desse país há meio século. E me parece que o [antropólogo, historiador, sociólogo e escritor] Darcy Ribeiro tinha razão quando ele disse há vinte anos atrás: 'Só o engajamento total da opinião pública mundial pode salvar a Amazônia'. Então meu grito é um grito por atitude, minha fotografia está a serviço da vida."

Tamanduá-mirim cego e queimado na Transamazônica. Pará, 2005

CRÉDITO,ARAQUEM ALCANTARA

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Tamanduá-mirim cego e queimado na Transamazônica. Pará, 2005

Por

  • Thais Carrança
  • Da BBC News Brasil em São Paulo
Professor Edgar Bom Jardim - PE

segunda-feira, 23 de agosto de 2021

Por que politização das PMs ameaça democracia, segundo especialistas



Jair Bolsonaro faz continência diante da bandeira do Brasil

CRÉDITO,REUTERS

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Bolsonaro convocou manifestações de apoiadores para 7 de setembro

O coronel da Polícia Militar do Estado de São Paulo Aleksander Lacerda foi afastado do comando da PM nesta segunda (23/08) por desrespeitar o regulamento da corporação e postar publicamente ataques ao STF, ao governador do Estado e convocação para atos bolsonaristas em 7 de setembro.

O fato de um oficial ter perdido o constrangimento de fazer um ato político e manifestar publicamente opiniões antidemocráticas é mais um indício de que o risco de um motim bolsonarista nas policiais estaduais "nunca esteve tão alto", segundo pesquisadores de segurança política ouvidos pela BBC News Brasil.

As recentes manifestações de Lacerda - e de outros oficiais - "mostram o grau de deterioração político-partidária e ideológica dentro da PM", diz o pesquisador Renato Sérgio de Lima, presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Ele vê como correta a decisão do governador João Doria de afastar o policial do comando da PM no interior, onde era responsável pelo comando de sete batalhões, com 5 mil policiais.

O episódio é especialmente grave por se tratar de um oficial da ativa, afirma Lima. Se antes a percepção era de que os oficiais (de tenente a coronel) estavam mais comedidos que os praças em sua aderência ao bolsonarismo radical, agora a adesão aberta parece ter chegado até mesmo ao comando - o que amplia o risco de uma insurgência antidemocrática, já que são eles os responsáveis por reforçar a hierarquia na corporação.


É muito preocupante que os oficiais, que têm a função de manter a disciplina e a ordem em uma corporação com a missão de proteger a democracia e a Constituição, não se sintam mais constrangidos em fazer a defesa aberta de ataques à democracia", diz Lima. "O oficial que faz ato político está atentando contra a própria corporação."

As regras da PM determinam que os policiais, embora possam ter preferências políticas pessoais, não podem se engajar em atos políticos - muito menos apoiar atos antidemocráticos.

"O policial é um cidadão como qualquer outro, mas com a diferença de que está investido de um cargo político que exige que ele seja mais comedido. Ele representa o Estado, não pode ameaçar ruptura democrática", diz Lima.

Renato Sérgio de Lima

CRÉDITO,DANILO RAMOS/FBSP

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'O oficial que faz ato político está atentando contra a própria corporação', diz Renato Sérgio de Lima

Militantes livres para serem violentos

Para o professor da FGV (Fundação Getulio Vargas) Rafael Alcadipani, que pesquisa organizações policiais, o principal problema envolvendo a penetração do bolsonarismo nas polícias não é o perigo de um "golpe militar clássico", onde elas ativamente ataquem as instituições com armas, mas o risco de omissão - ou seja, o risco de policiais decidirem não agir diante de militantes extremistas e violentos.

"Se as manifestações bolsonaristas ficarem violentas, o risco é de uma polícia radicalizada deixar militantes invadirem o Congresso, invadirem tribunais", afirma Alcadipani.

"A polícia é quem precisa garantir que essas coisas não aconteçam. Nós temos hoje, no espírito da corporação, um forte compromisso de garantir a Constituição? Temos homens e mulheres dispostos a dar a vida para garantir a democracia?", questiona.

Para Lima, o nível de "contaminação e radicalização" ideológica nas Polícias Militares e nas Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica) é semelhante, mas há algumas diferenças que tornam a radicalização da PM mais preocupante.

"As Forças Armadas são apenas três, e elas têm regras mais fortes de controle hierárquico. Já as polícias têm alguns vácuos de controle e supressão de comportamentos problemáticos", diz o pesquisador.

Alcadipani diz que a polícia precisa decidir se quer manter a militarização - não é possível ser militar apenas em parte e querer benefícios de um civil, como poder se manifestar politicamente em público.

João Doria

CRÉDITO,WILSON DIAS/AGÊNCIA BRASIL

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O governador de São Paulo, João Doria (PSDB), afastou comandante da PM que fazia propaganda de atos pró-Bolsonaro

"Se você é militar, precisa seguir a hierarquia. Um coronel não pode atacar o governador. É preciso que o governo tenha pulso firme para mostrar que esse tipo de manifestação não é aceitável", defende.

O que pode ser feito?

O controle sobre setores radicalizados da polícia seria possível internamente se "os oficiais estivessem totalmente ciosos do dever de proteger as instituições", diz Lima, presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. "No momento em que eles próprios defendem posições radicalizadas, isso preocupa muito."

Para contrapor esse problema, é preciso que os governos estaduais "não entrem no jogo de Bolsonaro". "Se o discurso foi ideológico, eles (os governadores) já saem perdendo", aponta o pesquisador.

O caminho mais produtivo seria fazer ações concretas e vigorosas de modernização das polícias e dos mecanismos de controle e supervisão.

"É preciso pensar em ter planos de cargos e salários - pesquisas apontam que entre um soldado e um coronel, há uma distância de 15 vezes do menor para o melhor salário. É preciso pensar nas condições de vida dos policiais, nas condições de trabalho, encontrar consensos em vez de antagonizar as polícias como um todo."

Além disso, diz, os governadores precisam se unir e dar uma resposta coesa ao problema da politização e radicalização da polícia.

"É preciso afastar os casos mais explícitos e graves, mas também recorrer às demais instituições de Estado, como Ministério Público, Judiciário e Legislativo, para fazer mudanças estruturais", diz Lima. "É preciso articular as instituições e fazer mais ou menos como a Alemanha, que extinguiu unidades especializadas que estavam contaminadas pelo neonazismo."

Ele lembra que a revolta constitucionalista de 1932, em São Paulo, só foi controlada quando o Exército contou com o apoio da Polícia Militar de Minas Gerais e da Brigada Militar do Rio Grande do Sul. "É a força do pacto federativo. Por isso é importante o movimento de conversas entre governadores", diz Lima.

Alcadipani aponta que é "urgente" um programa para despolitizar as polícias.

"Isso inclui proibir qualquer tipo de manifestação política e criar uma quarentena de 2 anos fora da instituição para que militares possam se candidatar a cargos políticos", afirma.

"Você não pode ter oficiais que estão sendo pagos com dinheiro público para fazer proselitismo político", diz.

  • Leticia Mori
  • Da BBC Brasil em São Paulo
  • 23/08/2021
Professor Edgar Bom Jardim - PE

'Me formar virou um pesadelo': os brasileiros endividados com o Fies




Michele Pereira

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Michele começou a ser cobrada pela dívida no Fies há quatro anos. Porém, ela nunca pagou nenhuma parcela

O ingresso no ensino superior foi a concretização de um sonho, mas anos depois se tornou um pesadelo. Essa é a definição de Michele Pereira sobre o diploma de Administração que ela conquistou no fim de 2015.

"Venho da periferia e, até então, ninguém tinha ensino superior entre os meus familiares mais próximos. Achava que a universidade seria a minha chance de crescimento profissional e financeiro", declara Michele à BBC News Brasil.

O pesadelo, diz ela, teve início há quatro anos, quando começou a ser cobrada para pagar as mensalidades do Financiamento Estudantil (Fies). Até hoje, Michele não pagou uma parcela sequer, pois argumenta que não teve condições financeiras para isso.

Após se formar, ela não conseguiu trabalho na área em que se formou. Por não ter pagado o financiamento, as parcelas acumularam e o nome de Michele foi negativado.

Casos como o dela não são difíceis de encontrar entre pessoas que concluíram o ensino superior por meio do Fies. A situação se tornou ainda mais grave em meio à crise causada pela pandemia de covid-19.

Em julho do ano passado, o Fies teve o maior percentual de inadimplência da história: 54.3% dos contratos não foram pagos naquele mês, segundo o Ministério da Educação, responsável pelo programa.

Atualmente há cerca de 1 milhão de inadimplentes com o financiamento, conforme a pasta — pessoas que estão com mais de 90 dias de atraso no pagamento das parcelas.

Para especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, é fundamental que o governo discuta formas para facilitar os pagamentos das mensalidades.

O Ministério da Educação afirma, em nota à BBC News Brasil, que tem avaliado junto com o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) "a publicação de nova renegociação de dívidas". Porém, ainda não há previsão de quando isso ocorrerá.

Computador ligado no site do Fies

CRÉDITO,AGÊNCIA BRASIL

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Nos últimos anos, contratos do Fies diminuíram em meio ao aumento da inadimplência

'Imaginava que sairia da faculdade ganhando R$ 7 mil'

Michele iniciou o curso superior em 2012, em uma instituição particular de Governador Valadares (MG). Era o primeiro governo Dilma Rousseff (PT) e o Fies estava no auge. Nesse período, o número de contratos disparou de cerca de 76 mil em 2010 para 732 mil em 2014.

Quando ingressou no ensino superior, Michele trabalhava em uma cooperativa de crédito. Foi justamente por causa do emprego que ela decidiu cursar Administração, pois queria conquistar um cargo melhor no local. Sem condições financeiras para arcar com as mensalidades, recorreu ao Fies de forma integral.

Os objetivos dela estavam traçados: concluir o ensino superior, conseguir um salário maior e pagar o financiamento sem impactar muito a sua renda.

"Imaginava que sairia da faculdade ganhando uns R$ 7 mil. Me lembro que quando comecei no curso havia um banner que dizia que profissionais de Administração ganhavam de R$ 4 mil a R$ 7 mil", comenta.

Ela se formou quatro anos após ingressar no ensino superior. A realidade ao concluir o curso foi completamente diferente da que esperava no passado. Michele estava desempregada e precisava se dedicar integralmente ao filho recém-nascido.

Quando começaram as cobranças do Fies, sequer cogitou pagar as parcelas. "Não tinha a menor condição naquele momento", desabafa. Ela foi colocada no cadastro de inadimplentes.

Quando o filho cresceu um pouco, Michele começou a procurar emprego. O nome sujo a impediu de encontrar vaga em uma área na qual ela sempre quis trabalhar. "Desde que eu era menor aprendiz, trabalhava em instituições financeiras, e sempre foi onde eu quis continuar trabalhando", comenta.

"Passei por etapas de entrevistas em instituições financeiras, mas esses lugares não me contratavam porque meu nome está com restrição. Isso é complicado, sequer dão a oportunidade de mostrar trabalho", diz.

Desde que concluiu o curso superior, ela passou cerca de três anos sem um emprego fixo. Hoje, Michele trabalha como vendedora. "Já fiz umas 10 entrevistas para diversos empregos relacionados à Administração, mas o meu nome sujo me impede de ser contratada. Só consegui trabalhos em outras áreas, mas queria mesmo era atuar na minha área, que é para a qual eu estudei e fiz vários cursos".

Ela não tem, ao menos por enquanto, previsão para pagar as parcelas que deixou para trás, que hoje estão em torno de R$ 15 mil. "Há juros em cima de juros e a dívida está cada vez maior", diz. O contrato do Fies previa que ela quitasse R$ 43 mil referentes ao curso ao longo de 15 anos.

"Valeu a pena me formar e ter um diploma de ensino superior. Mas isso virou um pesadelo quando terminei o curso e caí na realidade", lamenta.

'Hoje a gente vive decidindo se come ou paga a dívida'

Ivan e Ilse Silva

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Ivan e Ilse tiveram de suspender os pagamentos das mensalidades do Fies em razão de dificuldades financeiras na pandemia

No cenário da pandemia de covid-19, os pagamentos do Fies também foram afetados. Diante da crise sanitária, que impactou duramente a economia, a dívida do financiamento se tornou um duro problema para muitos.

"Hoje a gente vive decidindo se come ou paga a dívida do Fies", desabafa a fisioterapeuta Ilse Silva, de Recife, em Pernambuco.

A mulher e o marido usaram o Fies para concluir o ensino superior. Ilse se formou em fisioterapia em 2017. O marido dela, Ivan, concluiu o curso de Engenharia de Produção em 2015.

Os dois trabalhavam nas respectivas áreas em que se formaram. Nos primeiros anos, conseguiram pagar as mensalidades de R$ 460 de seus contratos do Fies, R$ 220 de Ivan e R$ 240 de Ilse.

Em 2019, Ivan saiu do emprego para abrir uma empresa de automação residencial. Em março de 2020, ele precisou suspender o investimento, enquanto fazia treinamentos e após comprar equipamentos, por causa da pandemia. A situação ficou ainda mais difícil porque Ilse foi demitida.

Ivan precisou buscar uma nova fonte de renda. Ele se tornou motorista de aplicativo para conseguir pagar as contas da família — o casal tem dois filhos, de 19 e 17 anos.

"Nesse momento comecei a ajustar as contas e a escolher o que manter em dia e o que iria atrasar pela redução financeira em nossa casa. Então, estamos sem pagar o Fies desde março de 2020", diz Ivan à BBC News Brasil.

Nesse período, o casal foi para o cadastro de inadimplentes. Segundo Ivan, o pai dele e a mãe dela, que foram fiadores dos respectivos filhos no Fies, também tiveram os nomes negativados.

Em dezembro passado, Ivan conseguiu um novo emprego na área de Engenharia de Produção, mas ganha menos do que antes. Nas horas vagas, ele continua trabalhando como motorista de aplicativo para complementar a renda. A esposa dele permanece desempregada.

Para Ilse, o Fies se tornou "uma bomba" que só piora a cada dia. "Em 2013, a oportunidade de fazer um curso superior através do Fies era a realização de um sonho, de ser inserido no mercado de trabalho com nível superior. Mas hoje, sem perspectiva nenhuma de trabalho, de nada, o Fies se tornou um acúmulo de dívida", diz a mulher.

"É um constrangimento ficar o tempo todo recebendo ligação de banco, cobrando uma dívida que só cresce e que não tem perspectiva nenhuma de quitar", acrescenta Ilse.

O casal ainda não tem prazo para retomar os pagamentos das parcelas do financiamento. "Voltar a pagar mais de R$ 400 mensais é muita coisa lá em casa. Não estamos em condições de retomar esse pagamento", declara Ivan.

Jovem segura celular enquanto se conecta a site do Enem

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Desempenho no Enem se tornou critério para o Fies há seis anos

A trajetória do Fies

As histórias de Michele, Ivan e Ilse reforçam que o número de inadimplentes do Fies é também um retrato das dificuldades enfrentadas no país. Mas sem o financiamento, dificilmente eles teriam oportunidade de cursar o ensino superior.

O Fies é considerado um programa fundamental no país porque três em cada quatro universitários brasileiros estudam em estabelecimentos privados. Segundo o Censo da Educação Superior 2019, do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) e do MEC, as instituições particulares são responsáveis por 75,8% dos estudantes de curso superior.

"Uma parcela muito importante dos que querem acesso à educação superior não têm meios de custeá-la. Quando olhamos para o ensino superior e notamos que a grande maioria das universidades são privadas, é preciso haver um financiamento. Isso não é apenas ganho individual, é também social", declara Ocimar Alavarse, professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP).

"Uma pessoa com o ensino superior e melhor qualificada produz mais e contribui mais para o desenvolvimento de uma nação", acrescenta Alavarse.

Desde o fim dos anos 90, o Fies já foi utilizado por mais de 3,2 milhões de pessoas para a conclusão do ensino superior, segundo o governo federal.

Nos últimos anos, o financiamento deixou de ser uma alternativa para muitos estudantes. Isso teve início no começo do segundo mandato da ex-presidente Dilma, período em que o programa teve mudanças em suas regras. Na época, o número de beneficiados caiu para 287 mil estudantes, menos da metade do ano anterior.

Especialistas apontam que o Fies deixou de ser um atrativo para muitos estudantes em 2015, quando parou de garantir o financiamento de 100% das mensalidades.

Entre as mudanças de regras para o Fies passou a valer a exigência de que o estudante tenha obtido média acima de 450 pontos no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).

Essas alterações foram adotadas após os problemas causados no boom do programa, em razão da alta inadimplência, que foi aumentando cada vez mais ao longo dos anos. Atualmente, conforme o FNDE, as parcelas em atraso somam R$ 7,3 bilhões que deixaram de ser pagos por beneficiários do programa.

No ano passado, o número de contratos do Fies foi o menor dos últimos 10 anos. O governo federal anunciou que havia 100 mil vagas disponíveis para o financiamento. Porém, uma reportagem da Folha de S.Paulo em novembro passado revelou que foram registrados apenas 47.082 novos contratos em 2020.

A reportagem da Folha cita que um dos motivos para a redução dos números de beneficiários foi o impacto da pandemia de covid-19, pois o Brasil passou por um período de incerteza sobre as aulas presenciais e muitos não quiseram se endividar por um curso online. Outro fator foram as mudanças nas regras do programa há seis anos, que até hoje afetam a busca pelo financiamento.

Um dado do Censo da Educação Superior 2019 também ilustra a atual situação do Fies. O levantamento apontou que 45,6% dos alunos da rede privada tinham algum tipo de financiamento ou bolsa em 2019. Desses, 19% eram beneficiários do Fies — cinco anos antes, o programa do governo federal era usado por 53% dos estudantes que precisavam de auxílio no ensino superior privado.

As incertezas do mercado de trabalho

Alunos comemoram colação de grau

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Dificuldades no mercado de trabalho estão associadas com alta inadimplência no Fies, avaliam especialistas

Para aqueles que recorrem ao Fies, após a conclusão do ensino superior é preciso encarar as incertezas do mercado de trabalho e a preocupação com o início da cobrança da dívida. Se houver atraso de 30 dias no pagamento de uma parcela, o nome da pessoa logo é negativado.

Na busca por um trabalho, os dados são pouco animadores. O desemprego segue em alta, com taxa de 14,6% no trimestre encerrado em maio, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), que corresponde a um contingente de 14,8 milhões de desempregados.

No período recente, um fenômeno também aumentou: o de profissionais qualificados e subutilizados.

Entre o quarto trimestre de 2019 e igual período de 2020, o número de trabalhadores com ensino superior subutilizados passou de 2,5 milhões para 3,5 milhões, um aumento de 43%, conforme levantamento feito pela consultoria IDados, a partir da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) Contínua do IBGE.

A subutilização inclui os desempregados, subocupados (que trabalham menos de 40 horas semanais), os desalentados (aqueles que desistiram de procurar emprego); ou os que gostariam de trabalhar, mas por algum motivo — como ter que cuidar dos filhos ou de idosos, por exemplo — não estavam disponíveis.

O levantamento com base na Pnad mostrou que a taxa de desocupação entre os trabalhadores com ensino superior, que é historicamente mais baixa do que a dos trabalhadores em geral, passou de 5,6% no quarto trimestre de 2019, para 6,9% no mesmo período em 2020. Nesse mesmo intervalo, a taxa de desemprego para a população em geral subiu de 11% para 13,9%.

A diferença histórica no nível de desocupação entre os mais e os menos qualificados se explica pela parcela ainda relativamente pequena de pessoas com ensino superior no país.

Segundo o IBGE, 17,4% da população brasileira acima dos 25 anos havia concluído o ensino superior até 2019, dado mais recente.

Uma pesquisa feita no ano passado pelo Sindicato de Mantenedoras dos Estabelecimentos de Ensino Superior (Semesp), apontou que os alunos que concluem o ensino superior têm um aumento de renda mensal de 182%, levando em conta aqueles que já trabalhavam durante a graduação.

Apesar das dificuldades enfrentadas até mesmo por aqueles que têm o ensino superior, especialistas ressaltam que o diploma representa mais oportunidades e a oportunidade de cursar uma universidade precisa chegar a mais pessoas.

"Ter um diploma é importante. Sem isso, você fica aquém no mercado competitivo. O diploma é um filtro até para seleções. Mas claro, não é uma garantia", diz o pesquisador Wilson Mesquita, professor de políticas públicas da Universidade Federal do ABC (UFABC) e especialista em Educação.

O ministro da Educação, Milton Ribeiro, recentemente fez uma declaração que foi contra o que é dito por especialistas. Em 9 de agosto, durante o programa Sem Censura, da TV Brasil, ele disse que a universidade deve ser para poucos.

Mais de uma semana depois, Ribeiro argumentou que fez a afirmação com base na inadimplência do Fies. Ele justificou, durante um evento da Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (ABMES), que a quantidade de inadimplentes do programa pode prejudicar novos financiamentos.

Ministro da Educação Milton Ribeiro

CRÉDITO,ISAC NÓBREGA/PR

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Ministro da Educação, Milton Ribeiro disse que a universidade deve ser para poucos. Posteriormente, argumentou que falou isso por causa da alta inadimplência no Fies

Ribeiro afirmou que é preciso "tomar cuidado" ao oferecer vagas no ensino superior, porque algumas pessoas "não têm ideia de que o fato de terem um diploma de ensino superior não é suficiente".

"É, sim, uma ferramenta importante, mas não suficiente no Brasil como hoje vivemos de ter garantido seu emprego, e depois elas não conseguem pagar o compromisso que fizeram", afirmou, na terça-feira (17/08).

Dias depois, o ministro voltou a dar declarações controvertidas sobre a questão: "Que adianta você ter um diploma na parede, o menino faz inclusive o financiamento do Fies que é um instrumento útil, mas depois ele sai, termina o curso, mas fica endividado e não consegue pagar porque não tem emprego", afirmou.

'É necessário um plano para que o aluno possa quitar o seu débito'

Enquanto o ministro tece críticas à alta inadimplência no Fies, especialistas avaliam que as medidas do Ministério da Educação para resolver o problema foram tímidas.

Nos últimos anos foram abertos dois prazos para renegociação dos contratos. Os resultados foram pouco expressivos e a inadimplência continuou em alta. Especialistas argumentam que as propostas não eram atrativas e incluíam condições que não estavam ao alcance de todos.

Em 2019, por exemplo, a renegociação exigia uma entrada de R$ 1 mil ou de 10% da dívida, o que tivesse o maior valor entre as duas opções. Apenas 2% dos estudantes em dívida com o fundo fizeram acordos nesse período para parcelar os pagamentos atrasados.

Para especialistas, o governo federal precisa conduzir ações que entendam o contexto da crise econômica e motivem o público-alvo a buscar uma forma de renegociar o financiamento.

"No Brasil temos vários incentivos do governo por meio de refinanciamento para empresas, para produtor rural ou para a indústria. Todos os anos a gente vê a Caixa Econômica com incentivo de pagamentos de dívidas com desconto de 100% de multas e juros. Mas para o Fies não existe isso", declara Sólon Caldas, diretor executivo da ABMES.

Caldas diz que não é a favor de uma anistia para essas dívidas. Ele defende que sejam criadas formas de renegociar esse pagamento conforme as condições financeiras de cada pessoa.

"É necessário um plano para que o aluno possa ter condições de quitar o seu débito. Não é possível fazer uma proposta que não se enquadre na atual situação dos devedores. Se eles estão inadimplentes é porque não tiveram condições financeiras para honrar o compromisso", afirma o diretor executivo da ABMES.

Segundo o Ministério da Educação, apesar de permanecer em alta, a taxa de inadimplência do Fies reduziu 2,2% de 2020 para 2021.

O MEC afirma que avalia uma nova renegociação para que os inadimplentes possam retirar seus nomes dos cadastros restritivos de crédito. Mas a pasta não deu mais detalhes sobre o tema.

Em junho, o ministro da Economia, Paulo Guedes, afirmou que o governo estuda refinanciar as dívidas do Fies.

Além disso, há também Projetos de Leis que tramitam no Congresso Nacional para tentar amenizar as cobranças ou até suspender essa dívida durante a pandemia.

Para os endividados por causa do Fies, a esperança é que haja uma nova renegociação para que possam tentar limpar seus nomes. "Renegociar a dívida seria uma opção importante. É preciso algum acordo que motive a gente a voltar a pagar", diz Ivan Silva.

Eleitora do presidente Jair Bolsonaro, Michele Pereira diz acreditar que ele pode pensar em uma estratégia para ajudar aqueles que têm dívidas com o Fies. "Ele poderia impedir a pessoa de parar no Serasa, porque assim ela terá uma oportunidade melhor de trabalho para pagar o financiamento", sugere.

Em setembro do ano passado, Michele enviou uma mensagem a Bolsonaro no Twitter para pedir ajuda, pois queria renegociar a dívida com o Fies para sair da lista de inadimplentes. No entanto, ela não teve resposta.

  • Vinícius Lemos - @oviniciuslemos
  • Da BBC News Brasil em São Paulo
BBC 23/08/2021

Professor Edgar Bom Jardim - PE