domingo, 13 de junho de 2021

Fascismo: entenda o conceito


Benito Mussolini e Adolf Hitler. Foto: History Channel

Benito Mussolini e Adolf Hitler. Foto: History Channel

fascismo é um movimento político, econômico e social. Ele se desenvolveu em alguns países europeus no período após a Primeira Guerra Mundial. Principalmente naqueles que enfrentavam graves crises econômicas, como a Itália e a Alemanha. Apesar disso, esse conceito é frequentemente mencionado em discussões políticas atuais.

Entre as principais características desse sistema estão a concentração do poder nas mãos de um único líder, o uso da violência e o imperialismo. Mas não é só isso. Confira o que foi o fascismo, como ele ocorreu e quais as principais dificuldades em relação à sua definição – e ainda colocamos dicas de filmes desse período no final do post!

Você também pode conferir este conteúdo em formato de vídeo:

Definição de fascismo

Diferente de outras correntes de pensamento político, o fascismo é um termo de difícil definição. Podendo apresentar diversos significados dependendo do enfoque escolhido e das características acentuadas. Assimainda não existe um conceito de fascismo universalmente aceito.

Segundo o filósofo e historiador Norberto Bobbio, o termo fascismo se refere principalmente à sua dimensão histórica. Esta, constituída pelo fascismo italiano e posteriormente pelo fascismo alemão.


Apesar da dificuldade em encontrar uma única definição para o fascismo, as características observadas em diversos regimes fascistas possibilitam a elaboração de uma definição geral, que frisa os aspectos mais comuns desse regime. Confira quais são esses aspectos a seguir.

Conheça outras correntes de pensamento político!

O que é fascismo?

De forma geral, o fascismo é um regime autoritário com concentração total do poder nas mãos do líder do governo. Esse líder deveria ser cultuado e poderia tomar qualquer decisão sem consultar previamente os representantes da sociedade. Além disso, o fascismo defende uma exaltação da coletividade nacional em detrimento das culturas de outros países.

Além de totalitários, os governos fascistas objetivavam expandir seu território por meio de conflitos internacionais. Para isso, realizavam altos investimentos na produção de armas e equipamentos de guerra.

Para garantir a manutenção de seu governo, os líderes fascistas controlavam os meios de comunicação de massa, por onde divulgavam sua ideologia e controlavam todas as informações disseminadas. Qualquer crítica ao governo era aniquilada mediante uso da violência e do terror. Aqueles considerados inimigos de um governo fascista eram punidos com prisão ou morte.

O fascismo na Itália

Com o fim da Primeira Guerra Mundial, a Itália passava por uma forte instabilidade social, política e econômica. Mesmo integrando o grupo de países vitoriosos na Primeira Guerra, a Itália foi ignorada nos tratados pós-conflito. Acabando por não conquistar benefícios que compensassem as perdas sofridas durante a guerra. Ao mesmo tempo, a lenta industrialização e as gritantes diferenças socioeconômicas entre o norte e sul do país dificultavam o crescimento econômico do país, o que gerava desemprego e cada vez mais miséria.

Este contexto mobilizou diversos grupos a encontrarem uma solução para o decadente sistema em que se encontrava o país. O que resultou no crescimento dos partidos mais alinhados à esquerda, como os comunistassocialistas e anarquistas.

É no contexto de surgimento desses grupos que surgiu o fascismo, destacando-se como líder Benito Mussolini. Mussolini comandou um grupo chamado Fascio de Combate que, posteriormente, formaria o Partido Nacional Fascista (PNF).

Em 1922, os fascistas realizaram a Marcha sobre Roma. Uma manifestação pedindo que o Rei Vitor Emanuel III transferisse o poder para as mãos do Partido Nacional Fascista. Pressionado, o rei convidou Mussolini para fazer parte do governo.

Inserido na esfera do poder político central, os fascistas puderam iniciar seu projeto autoritário e centralizador. Nas eleições de 1924, depois de uma ampla reforma eleitoral que beneficiava os interesses do PNF, os fascistas conquistaram ⅔ do Congresso, ainda que sob alegações do partido socialista de que as eleições haviam sido fraudadas.

Com os partidários fascistas no poder, começava a ditadura fascista, em que o “duce” Mussolini era o líder da nova política italiana. O poder legislativo foi enfraquecido. Os meios de comunicação foram fechados. Todos os partidos à exceção do PNF foram colocados na ilegalidade e a pena de morte passou a ser legalizada.

Além disso, o Estado passou a controlar a economia e tanto as organizações trabalhistas, quanto qualquer forma de oposição ao governo central foram enfraquecidas e desorganizadas.

Com a crise de 1929, a prosperidade econômica vivida no início do regime fascista começou a ser ameaçada. Tentando contornar esse cenário, o governo Mussolini decidiu entrar para a corrida imperialista, buscando restaurar os domínios do antigo Império Romano. Após invasões das tropas italianas a regiões da África, começaram as tensões diplomáticas que conduziram a Europa para a Segunda Guerra Mundial, momento em que Mussolini se aproximou do regime nazista alemão.

O fascismo na Alemanha

Adolf Hitler em discurso à juventude nazista. Foto: História Digital

Adolf Hitler em discurso à juventude nazista. Foto: História Digital

Na Alemanha, no período após o fim da Primeira Guerra Mundial, surge um regime autoritário bastante conhecido, que compartilhou diversas características do fascismo. Esse regime é o nazismo, que teve como principal líder Adolf Hitler.

Ao sair derrotada da Primeira Guerra, a Alemanha enfrentou uma profunda crise econômica, sobretudo em função do Tratado de Versalhes. O documento declarava oficialmente a Alemanha como derrotada na guerra e impunha sanções ao país, como perda de territórios e proibição de qualquer produção de armas pesadas, além de obrigar a Alemanha a pagar uma indenização aos países vitoriosos.

Esse cenário pós-Primeira Guerra criou nos alemães um sentimento de revanchismo em relação a outros países. O que fortaleceu o extremismo nacionalista no país.

Com o fim da guerra, o regime monárquico alemão chegou ao fim, dando início à República de Weimar. Nesse período, a Alemanha consegue resultados satisfatórios do ponto de vista econômico, principalmente por causa dos investimentos estrangeiros, vindos sobretudo dos Estados Unidos.

Todavia, a crise de 1929 deixa a economia alemã em situação crítica novamente. Nesse momento, o discurso nazista conquista seguidores, prometendo retomar o crescimento do país através de um Estado Forte.

Articulados dentro da República de Weimar e representados pelo Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães, os nazistas conquistaram 37% dos votos nas eleições de 1932, ocupando 230 cadeiras no Parlamento.

Aprenda também: o que é socialismo?

No ano seguinte, os adeptos ao Partido Nazista pressionavam o presidente Paul Von Hindenburg a conceder mais poderes a Hitler. Com a pressão, Hitler foi indicado a chanceler e posteriormente assumiu o cargo de presidente, além de se auto nomear “o Führer ”. Começava assim o regime nazista na Alemanha.

A ditadura de Hitler teve como principais características a militarização da sociedade alemã, a exaltação do líder e o controle por meio da intensiva máquina de propaganda, que utilizava os meios de comunicação para disseminar as ideias nazistas.

As características principais do nazismo são apresentadas na obra Mein Kampf, escrita por Hitler durante seu período na prisão. Uma das suas mais conhecidas medidas foi o antissemitismo, marcado pela visão racista e eugenista da superioridade do homem branco germânico, a chamada raça ariana. Essa visão resultou na morte de mais de 6 milhões de pessoas em campos de concentração, a grande maioria formada por judeus.

Outra característica do regime nazista foi a visão expansionista. Esta, justificada por uma crença de que o mundo deveria ser dominado pela raça ariana. Com o início da Segunda Guerra Mundial, Hitler tentou invadir diversos territórios.

Em 1941, Hitler tenta invadir a União Soviética. Com o inverno rigoroso, as tropas alemãs foram cercadas e derrotadas. Nesse momento, o governo nazista atinge seu declínio e, em 1945, Hitler é derrotado e seu regime chega ao fim.

Afinal, o fascismo é de direita ou esquerda?

Já explicamos que ainda não existe uma definição universal sobre o fascismo, e que o termo é entendido sobretudo por meio da análise de características em comum encontradas nas experiências fascistas ocorridas na história. Por isso, torna-se difícil situar o fascismo dentro do espectro ideológico.

Comumente, o fascismo é tido como parte da extrema-direita, principalmente pela sua notável oposição ao socialismo. As experiências fascistas contaram com amplo apoio dos banqueiros e industriais, tanto na Itália quanto na Alemanha.

O fascismo, contudo, também se opôs ao liberalismo, sobretudo na defesa do Estado forte e dos interesses de massa em detrimento dos interesses individuais.

De acordo com Norberto Bobbio, as divergências entre o fascismo italiano e o alemão aparecem ao se notar que o primeiro apresentou um caráter revolucionário e radical de esquerda, enquanto o segundo foi essencialmente reacionário e radical de direita. (Dicionário de Política, pág. 468)

Sobre o Nazismo alemão, preparamos um vídeo para esclarecer, de uma vez por todas, qual era sua posição. Confira!

Quer entender as posições políticas esquerda e direita? Confira aqui! 

O fascismo no mundo

Embora o fascismo na Itália e na Alemanha sejam as experiências mais conhecidas, as experiências fascistas não se restringiram a elas. Em Portugal, por exemplo, o regime fascista foi comandado por Antônio de Oliveira Salazar entre 1932 e 1968. Já na Espanha, apareceu durante o governo de Francisco Franco, de 1939 a 1976.

A influência dos regimes fascistas chegou até mesmo ao Brasil. Logo após a Revolução de 1930 surge o integralismo, que influenciado pelo fascismo italiano combatia os defensores do pensamento de esquerda. Sua principal liderança foi Plínio Salgado.

Ainda que tenha entrado em crise após a Segunda Guerra Mundial, o fascismo continua a ganhar força em contextos de crise, seja ela econômica, política ou social. Alguns aspectos da ideologia fascista aparecem até hoje em grupos e partidos políticos, como os na Europa que defendem plataformas políticas baseadas na aversão a estrangeiros.

Filmes para entender o fascismo

Por último, deixamos aqui algumas dicas de filmes para que se passam na época do fascismo e do nazismo para aprender enquanto come uma pipoquinha:

  • A vida é bela
  • O menino do pijama listrado
  • A lista de Schindler
  • O leitor
  • A escolha de Sofia
  • Prelúdio de uma guerra
  • A onda

E aí, você já viu algum desses filmes? Recomenda outra obra? Queremos saber sua sugestão!


Fonte: politize.com.br/fascismo/
Professor Edgar Bom Jardim - PE

Como Portugal comprou o Nordeste dos holandeses por R$ 3 bi



(Wikipedia)

CRÉDITO,WIKIPEDIA

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Quadro do pintor brasileiro Victor Meirelles de Lima retrata Batalha dos Guararapes (1648/1649), que encerrou período do domínio holandês no Brasil

Mesmo depois de terem sido derrotados, os holandeses receberam dos portugueses o equivalente a R$ 3 bilhões em valores atuais para devolver o Nordeste ao controle lusitano no século 17.

O pagamento ─ que envolveu dinheiro, cessões territoriais na Índia e o controle sobre o comércio do chamado Sal de Setúbal – correspondeu à época a 63 toneladas de ouro, como conta Evaldo Cabral de Mello, historiador e imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL), no livro O negócio do Brasil, que está sendo relançado em uma nova edição ilustrada pela Editora Capivara, de Pedro Correia do Lago, ex-presidente da Fundação Biblioteca Nacional. A edição original foi lançada em 1998.

Em valores atuais, o montante equivaleria a 480 milhões de libras esterlinas (ou cerca de R$ 3 bilhões). O cálculo foi feito à pedido da BBC Brasil por Sam Williamson, professor de economia da Universidade de Illinois, em Chicago, nos Estados Unidos, e cofundador do Measuring Worth, ferramenta interativa que permite comparar o poder de compra do dinheiro ao longo da história.

"Esta foi a solução diplomática para um conflito militar. O pagamento fez parte da negociação de paz. O que não quer dizer que a guerra não tenha sido necessária", afirmou Cabral de Mello à BBC Brasil.

'Investimento'

(Wikipedia)

CRÉDITO,WIKIPEDIA

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Bandeira da Nova Holanda, como ficou conhecida a colônia da Companhia Neerlandesa das Índias Ocidentais no Brasil

Os holandeses ocuparam o Nordeste por cerca de 30 anos, de 1630 a 1654, em uma área que se estendia do atual Estado de Alagoas ao Estado do Ceará. Eles também chegaram a conquistar partes da Bahia e do Maranhão, mas por pouco tempo.

Por trás das invasões, havia o interesse sobre o controle do comércio e comercialização do açúcar.

Isso porque, como conta Cabral de Mello, antes mesmo de ocupar o Nordeste, os holandeses já atuavam na economia brasileira com o apoio de Portugal, processando e refinando a cana-de-açúcar brasileira.

(Wikipedia)
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Gravura holandesa retrata o cerco a Olinda em 1630

"Quando o reino português foi incorporado pela Espanha, essa parceria acabou. Os espanhóis romperam esse acordo, que rendia altos lucros aos holandeses. Além disso, a relação entre os holandeses e os espanhóis já não era boa, já que a Holanda havia se tornado independente do império espanhol", diz o historiador.

Cabral de Mello faz alusão a um momento histórico em particular, quando a Holanda, que até então fazia parte do império espanhol na Europa, obteve sua independência, em 1581.

A emancipação não foi bem recebida pelos espanhóis que, entre outras medidas, encerraram a parceria que os holandeses tinham com os portugueses no processamento e refino da cana-de-açúcar no Brasil, dado que, naquela ocasião, Portugal havia se tornado parte do reino espanhol.

Nesse sentido, a invasão do Brasil pelos holandeses foi uma espécie de "revanche" contra a Espanha.

Durante o período em que ocuparam parte do Nordeste, os holandeses foram responsáveis por inúmeras mudanças importantes, inclusive urbanísticas, principalmente durante o governo de Johan Maurits von Nassau-Siegen, ou Maurício de Nassau.

Com o intuito de transformar Recife na "capital das Américas", Nassau investiu em grandes reformas, tornando-a uma cidade cosmopolita. Apesar de benquisto, ele acabou acusado por improbidade administrativa e foi forçado a voltar à Europa em 1644.

Após o fim da administração Nassau, a Holanda passou a exigir a liquidação das dívidas dos senhores de engenho inadimplentes, o que levou à Insurreição Pernambucana e que culminaria, mais tarde, com a expulsão dos holandeses do Brasil.

'Sem heroísmo'

(Wikipedia)
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Quadro do pintor espanhol Juan Bautista Maíno retrata reconquista de Salvador pelas tropas hispano-portuguesas (1635)

Naquele ano, Portugal já havia se separado da Espanha, mas demorou para enviar soldados para retomar o Nordeste. A região só foi reintegrada em janeiro de 1654.

Cabral de Mello, que é especialista no período de domínio holandês, diz que a tese de que os holandeses foram expulsos pela valentia dos portugueses, índios e negros "não é completa".

"Os senhores de engenho locais financiaram a luta pela expulsão dos holandeses, já que deviam mundos e fundos à Companhia das Índias Ocidentais, que lhes havia emprestado dinheiro. Eles, no entanto, não tinham como pagar a dívida", explica o historiador.

"Os holandeses acabaram derrotados, mas não sem antes pressionar Portugal pelo pagamento dessa dívida, inclusive chegando a bloquear o Tejo (Rio Tejo). O pagamento não foi feito em ouro, mas um observador da época fez a correspondência para o metal precioso".

"Portugal teve de pagar 10 mil cruzados (moeda da época) aos holandeses. Também fez parte do acordo a transferência do controle de duas possessões territoriais portuguesas na Índia ─ Cranganor e Cochim ─ e o monopólio do comércio do Sal de Setúbal (matéria-prima importante para a indústria holandesa para a salga do arenque)".

  • Luís Guilherme Barrucho - 
  • Da BBC Brasil em Londres
Professor Edgar Bom Jardim - PE

'Brasil nunca aplicou Paulo Freire', diz pesquisador



José Eustáquio Romão | Foto: Divulgacao

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Amigo pessoal de Freire, Romão diz que críticos do educador "falam bobagem" sobre sua influência na educação brasileira

"Chega de doutrinação marxista. Basta de Paulo Freire". A frase, que aparecia em uma faixa durante a manifestação contra o governo Dilma Rousseff em Brasília, em março de 2015, causou polêmica nas redes sociais e provocou até uma resposta da ONU, defendendo o educador brasileiro famoso mundialmente pela teoria da pedagogia crítica.

Considerado patrono da educação no Brasil desde 2012, Freire dá nome a institutos acadêmicos em países como Finlândia, Inglaterra, Estados Unidos, África do Sul e Espanha, mas, em sua terra natal, tem sido criticado por manifestantes e articulistas pelo que consideram sua "influência esquerdista" no ensino.

O historiador e doutor em Educação José Eustáquio Romão, seu amigo pessoal e especialista em sua obra, discorda: "Paulo Freire nunca foi aplicado na educação brasileira. (...) Ele entra (nas universidades) como frase de efeito, como título de biblioteca, nome de salão."

Foto: Reprodução Twitter

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Manifestantes criticaram Paulo Freire durante protestos anti-governo em março de 2015

Em entrevista à BBC Brasil, ele diz que as ideias e o método de alfabetização de adultos criado por Freire já serviram de base para políticas públicas em diversos países, mas ainda se resumem a experiências pontuais no Brasil.


"Estou convencido de que se aplicarmos hoje (o método), acabamos com o analfabetismo no Brasil em um ano", afirma.

Segundo os dados mais recentes do IBGE, o Brasil ainda possui 13 milhões de analfabetos, apesar da diminuição do índice nos últimos anos.

Romão, que é um dos fundadores do Instituto Paulo Freire e, atualmente, diretor de mestrado e doutorado na Universidade Nove de Julho (Uninove), em São Paulo, passou os últimos 15 anos em busca do manuscrito perdido do livro Pedagogia do Oprimido, obra mais conhecida e traduzida do educador pernambucano, morto em 1997.

O manuscrito, que contém trechos inéditos do livro – publicado nos Estados Unidos em 1970 e proibido pelo regime militar brasileiro até 1974 – sobreviveu à ditadura chilena nas mãos de Jacques Chonchol, ex-ministro de Agricultura no governo de Salvador Allende (1970-1973). Agora, foi devolvido ao Brasil.

Confira alguns dos principais trechos da entrevista.

BBC Brasil: Como o senhor descobriu a existência do manuscrito? E como o encontrou?

José Eustáquio Romão: Foi uma busca de 15 anos. Algumas vezes ele (Paulo Freire) dizia para nós, que éramos amigos mais próximos, que gostaria de rever o manuscrito antes de morrer. Mas, pelo que a gente sabia, os originais do livro tinham sido datilografados.

Paulo era muito desorganizado. Ele escrevia até em guardanapo quando tinha uma boa ideia. Então um de seus amigos juntou essa papelada e datilografou em 1968. Quando Paulo falava de manuscrito, eu achava que ele estava delirandoMas não estava.

Ele foi um dos primeiros a ser preso pelos militares, em abril de 1964, porque havia sido convidado a fazer parte de um projeto do governo João Goulart após o sucesso da sua experiência de alfabetização de camponeses no Rio Grande do Norte, em 1963.

Após 70 dias na prisão, ele conseguiu se exilar na Bolívia e, de lá, foi para o Chile, onde conheceu o ministro Jacques Chonchol, uma figura de destaque na política chilena, que articulou a eleição de Salvador Allende. Chonchol chamou Paulo para trabalhar com ele e os dois ficaram amigos.

Anos depois, Paulo foi convidado a ensinar aos doutores em Harvard (nos Estados Unidos), mesmo sem nenhum título, por causa de seu método de alfabetização de adultos. Antes de ir, decidiu copiar os originais de seu livro e dar este manuscrito de presente ao casal Chonchol.

Só que, depois de Allende, Chonchol era o homem mais visado pela polícia do (general Augusto) Pinochet. Ele só não foi morto no palácio junto com Allende (no golpe militar chileno, em 1973) porque estava em missão, mas chegou a Santiago no dia do golpe. Avisado pelos amigos, ele fugiu pela cordilheira (dos Andes). No fim, foi parar na França e ficou 20 anos no exílio.

A polícia de Pinochet invadiu a casa de Chonchol em Santiago, levou uma série de documentos e queimou livros. Mas o manuscrito de Paulo Freire parecia um documento sem importância, então ficou intacto. Anos depois, a irmã do ex-ministro conseguiu sair do país para visitá-lo na França e levou o manuscrito, achando que poderiam ser documentos pessoais.

Quando eu finalmente consegui localizá-lo, Chonchol me disse que várias vezes teve a tentação de doar o manuscrito para a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) em Paris, mas resolveu não fazê-lo. Eu consegui convencê-lo a devolver o manuscrito para o Brasil.

BBC Brasil: Quais são as principais diferenças entre o livro Pedagogia do Oprimido como é conhecido hoje e o manuscrito?

Romão: A parte do livro em que Paulo Freire fala sobre a "teoria da ação revolucionária" não existe em nenhuma edição em nenhuma parte do mundo. O que nos faz supor que os (editores) americanos tiraram diversas partes – eu já fiz uma leitura comparada e comprovei que não estão lá.

Foto: BBC
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Trechos retirados do livro original por editores americanos descreviam, com diagramas, uma "teoria da ação revolucionária"

Eles tiraram coisas que acharam um pouco mais perigosas para a ideologia liberal norte-americana. Não fazem por mal, mas por princípio ideológico. É uma teoria de esquerda mesmo, diz que o sujeito da história não são as lideranças, é o coletivo das massas oprimidas. Americano não vai admitir isso, nem os Democratas.

BBC Brasil: O que a Fundação Paulo Freire pretende fazer com o original?

Romão: A família dele nos autorizou a fazer mil exemplares do texto, mas não a vendê-los. Estamos distribuindo uma versão digitalizada a editores e às grandes bibliotecas do mundo, para que as novas edições se baseiem nisso aqui.

O manuscrito atualmente está escondido, eu o escondi. Ele vale milhões. Além disso, não queremos que suma novamente (risos).

BBC Brasil: Que relevância teria uma nova edição deste livro num momento em que setores da sociedade fazem duras críticas ao PT - do qual Freire foi membro fundador – e à influência dele na educação brasileira?

Romão: Alguns críticos falam muita bobagem, dizem que a educação brasileira está ruim por que Paulo Freire está sendo aplicado. Primeiro, Paulo Freire nunca foi aplicado na educação brasileira. Estamos lutando para ver se ele entra nas universidades até hoje.

Ele entra como frase de efeito, como título de biblioteca, nome de salão. Isso eu já vi no Brasil inteiro. Mas o pensamento dele não entrou até hoje.

BBC Brasil: Por que não?

Romão: Antes eu achava que era porque ele não tinha títulos e o Brasil é um país muito credencialista. Isso a gente deveria aprender com os norte-americanos, que o convidaram para Harvard. Eles não fazem questão de diploma, fazem de competência.

Paulo nunca fez Pedagogia, nunca fez licenciatura. Fez Direito à noite, um curso mal feito, abandonou a profissão na primeira causa. Mas era um gênio.

Lendo com mais calma e profundidade a obra dele, vejo que ele faz uma inversão intelectual tão violenta que os intelectuais tremem nas bases. Todos eles têm a mania de considerar que devemos partir da teoria para iluminar a realidade, e Paulo Freire desmonta isso. Ele diz que a legitimidade do conhecimento só vem da prática.

BBC Brasil: Como você responde a críticas sobre o viés de esquerda na obra de Paulo Freire?

Romão: Eu não tenho o conceito de ideologia que (a filósofa) Marilena Chauí tem. Ela considera que ideologia é algo ruim, para mim é apenas a visão de mundo. Todo discurso é ideológico no sentido de que parte de determinada perspectiva, do olhar de quem olha.

Quem faz esse tipo de crítica está considerando que seu próprio discurso não é ideológico. Ao meu juízo, é menos ideológico (de maneira negativa) quem revela a sua visão de mundo logo no início, porque prepara o interlocutor para dizer "há outras visões de mundo, há outras ideologias que interpretariam isso de maneira diferente".

Há um grupo conservador que considera Paulo Freire de extrema esquerda. E há o grupo de esquerda que considera Paulo Freire conservador, idealista. Quem tenta conciliar teorias, como ele tentou conciliar – sem fazer ecletismo – leva tiro de todos os lados.

BBC Brasil: A obra de Freire também é criticada por ter referências a figuras como Che Guevara (guerrilheiro argentino) e Mao Tsé-Tung (líder comunista chinês).

Romão: Quero que me apontem o texto de Paulo Freire em que ele insiste tanto em Mao Tsé-Tung.

BBC Brasil: Pedagogia do Oprimido tem uma referência...

Romão: Ele faz apenas uma referência a uma teoria das mais amenas de Mao. Marx dizia que o motor da história é a classe operária. E Mao dizia que não, que existe o motor, mas que a fagulha do motor são as classes médias, que desencadeiam acontecimentos.

Ele diz que o povo pode fazer coisas irracionais e, por isso, tem que haver coordenação do processo revolucionário e isso nem sempre ocorre pelo proletariado. Marx e os marxistas ortodoxos, inclusive, devem ter se revirado no túmulo com essa.

Além disso, Paulo não aceita o maoísmo puro, nem o marxismo puro. Aliás, ele usava uma metáfora interessante, dizia que era "um barbudo no meio de dois barbudos": Jesus Cristo e Karl Marx.

Por isso, há repercussões políticas importantes na teoria dele. Os freireanos não propõem eliminar o opressor e, sim, salvá-lo também, a partir do momento em que os oprimidos se libertam.

BBC Brasil: O que Paulo Freire diria sobre a violência no regime comunista chinês, no soviético e no cubano?

Romão: Tem um texto seminal dele, que está na Pedagogia da Autonomia, em que ele diz que somente a consciência fanática, que ele chama de fundamentalismo, leva ao processo de violência e destruição.

Ele diz que a tendência do oprimido – ao incorporar o discurso, os valores e a atitude do opressor – é a violência física ou simbólica.

Por isso mesmo a humanidade só avança quando os oprimidos deixam de tentar imitar seu opressor. Quando eles não querem trocar de lugar com o opressor, mas mudar as relações de opressão. E por isso que é raro na história isso ocorrer.

BBC Brasil: Como você responderia aos críticos que dizem que é ruim ter Paulo Freire sendo lido por estudantes porque isso pode, de alguma maneira, "transformá-los em esquerdistas"?

Romão: Não significa transformá-los em esquerdistas porque o que Paulo Freire mais insiste é "não me repita".

Esse é o princípio fundamental da metodologia freiriana de construir conhecimento: "não me repita, mas se considerar que alguma ideia minha resolve algum problema da realidade, reinvente essa ideia em cada contexto". Não sei que influência maléfica nos alunos seria essa.

Paulo Freire | Foto: Instituto Paulo Freire via MEC

CRÉDITO,INSTITUTO PAULO FREIRE VIA MEC

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No Brasil, Freire é criticado por viés de esquerda em suas obras mais conhecidas

BBC Brasil: Algum país realmente aplicou as ideias de Paulo Freire na educação?

Romão: Um país muito simpático ao conjunto da obra do Paulo Freire é a Finlândia, que avançou muito na educação. Cuba também acabou com o analfabetismo com base no método. A Coreia do Sul também. Para você ter uma ideia, o maior seminário internacional sobre Paulo Freire foi realizado na Universidade Nacional da Coreia do Sul há três anos. Estávamos lá debatendo com todas as autoridades coreanas e todos os freirianos do mundo.

Há projetos freirianos na Hungria, no Japão... tem um grupo trabalhando com a alfabetização de decasséguis que sofrem por ir viver lá e não dominar o idioma. Estão usando o método de Paulo Freire para alfabetizá-los na segunda língua. Os grupos que estão tendo sucesso são os que reinventaram. Aplicaram só os princípios, mas têm pontos de partida que são bem diferentes.

O Brasil não aplica sequer esse método. Há experiências de sucesso pontuais, mas isso não é usado como política. Sei também que na Armênia agora estão fazendo uma grande experiência com as ideias de Paulo Freire. E no País Basco.

Certa vez, eu estava no deserto de Góbi, na Mongólia, com o povo nômade, em missão. Em uma tenda, vi os criadores de cabra sendo alfabetizados por dois professores. Eu não entendia nada do que eles falavam, mas um nome soava meio familiar. Era Paulo Freire. Eles estavam com o último capítulo da Pedagogia do Oprimido nas mãos, traduzido para o chinês, que trata justamente do método de alfabetização.

BBC Brasil: O que há de tão extraordinário no método de alfabetização de adultos de Paulo Freire?

Romão: Fui a Angicos, no sertão do Rio Grande do Norte, porque lá, Paulo Freire, com um grupo de estudantes – nenhum deles de Educação – alfabetizou primeiro uma turma de 30 e, no final, 300 camponeses. Por que hoje a gente começa com uma turma de 30 adultos e termina com três? Por que eles não aguentam o curso?

Conseguimos conversar com os alfabetizados daquela época. Eu saí convencido de que, se aplicarmos hoje o que fizeram lá, acabamos com o analfabetismo no Brasil em um ano. É tão simples.

A pessoa precisa aprender que as letras constroem as palavras, mas não vai ter interesse nenhum se não souber pra que a palavra serve na sua vida. Por isso, um "círculo de cultura" substitui a aula. Nele, você vai discutir a vida das pessoas. Parece que está perdendo tempo, mas em um mês eles são alfabetizados, com 40 horas de aula.

José Eustáquio Romão | Foto: Divulgação

CRÉDITO,DIVULGACAO

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Manuscrito de Pedagogia do Oprimido "vale milhões" e está escondido, segundo Romão

Tenho uma experiência escrita à mão por uma pessoa que foi alfabetizada por ele em Brasília, a famosa experiência do tijolo. Tijolo foi uma palavra (usada por Paulo Freire como) "geradora" porque (os alunos) eram operários da construção civil, estavam construindo Brasília.

Ele mostrou aos alunos um tijolo físico, o partiu e colou nele as sílabas da palavra tijolo. E pediu que as pessoas formassem outras palavras a partir daquelas sílabas. As pessoas primeiro gravaram mentalmente as sílabas e as combinaram: jiló, laje, etc. Uma senhora, no entanto, fez uma frase: "Tu já lê". Estava alfabetizada.

  • Camilla Costa
  • Da BBC Brasil em São Paulo
Professor Edgar Bom Jardim - PE