sábado, 15 de maio de 2021

Quando o Estado mata nossos filhos a Justiça não acontece, diz mãe de João Pedro, um ano após o crime



João Pedro

CRÉDITO,REPRODUÇÃO/FACEBOOK

Legenda da foto,

João Pedro, 14, morto em 18 de maio de 2020; bala que o matou tinha mesmo calibre da usada pelos policiais que invadiram a casa em que ele brincava com os amigos

Já faz um ano desde que a professora de educação infantil Rafaela Coutinho Matos viveu os piores dias de sua vida. João Pedro, seu filho de 14 anos de idade, foi morto com uma bala de fuzil durante uma operação policial no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, enquanto brincava com amigos na casa dos tios.

O crime ocorreu no mesmo mês do assassinato de George Floyd, nos Estados Unidos, cujo vídeo do policial branco com os joelhos sobre o pescoço do homem negro gerou protestos em todo o mundo.

No Brasil, a comoção em torno do assassinato de João Pedro foi tão grande que, no mês seguinte ao crime, o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), proibiu em decisão liminar (provisória) a realização de operações policiais em comunidades do Rio durante a pandemia do novo coronavírus, exceto em "hipóteses absolutamente excepcionais", com anuência do Ministério Público.

As cenas do pesadelo real de Rafaela voltaram com ainda mais força na semana passada, quando uma operação policial em no Jacarezinho, na Zona Norte do Rio, terminou com a morte de 28 pessoas, e o título de mais letal operação da história.

Pela TV, as imagens do noticiário lembravam muito das cenas vistas por Rafaela no dia em que João Pedro morreu: o helicóptero da polícia sobrevoando a comunidade, as manchas de sangue e os buracos de bala pelas paredes. "Eu fiquei observando porque é a mesma polícia, a mesma polícia que tirou a vida do João", disse ela em entrevista à BBC News Brasil.

Em janeiro de 2021, a história de Rafaela e João Pedro foi contada em documentário exibido pela BBC News Brasil e pela BBC News. De lá para cá, a espera de Rafaela por Justiça apenas se prolongou, já que, desde então, nenhuma nova prova ou etapa da investigação avançou.

Se nos Estados Unidos o caso de George Floyd já foi solucionado - o ex-policial Derek Chauvin foi condenado pela Justiça americana e aguarda sentença a ser anunciada em junho - a morte de João Pedro continua sem punição. Rafaela conta que nada avançou desde outubro do ano passado.

Embora a bala encontrada no abdome de João Pedro tenha o mesmo calibre da usada pelos policiais que participavam a operação, de acordo com o laudo cadavérico, os três policiais investigados pelo crime continuam trabalhando normalmente não só em atividades de escritório, como é praxe em policiais investigados, mas na na Coordenadoria de Recursos Especiais (Core), unidade de elite da Polícia Civil.

"Para nós mães que o Estado vem e mata nossos filhos, essa Justiça não acontece. Essa justiça é demorada, a impunidade está, sim, descarada", diz. "Porque a gente vê outros casos como o do Henry [Henry Borel Medeiros, de 4 anos, assassinado em março], em que não foi a polícia que cometeu o crime, e é um caso que já foi até solucionado em menos de um ano. A gente vê também o caso do George Floyd lá nos Estados Unidos, que foi também no mesmo mês do de João, teve toda essa comparação e é um caso que está se resolvendo também. Essa impunidade aqui no Brasil é muito difícil. A gente vê outros casos sendo solucionados e quando envolve a polícia é sempre muito difícil ser solucionado."

Rafaela Coutinho Matos
Legenda da foto,

Rafaela diz que ficou sem saber o que dizer quando Rebeca, a filha caçula de 5 anos de idade, perguntou porque a polícia matou o irmão dela

A BBC News Brasil fez contato, por telefone e por e-mail, com as assessorias das polícias Civil e Militar, bem como do governo do estado do Rio de Janeiro, mas não obteve resposta sobre as perspectivas de solução do caso ou sobre em quais operações os policiais suspeitos do crime já participaram este ano.

Além disso, a investigação sofreu alguns revezes: o principal deles foi a extinção, neste ano, do Grupo de Atuação Especializada em Segurança Pública (Gaesp), que tem tem como principais atribuições atuar em "investigações penais relacionadas a crimes cometidos por policiais civis, policiais militares e agentes penitenciários".

Depois da publicação da reportagem, a assessoria de imprensa da Polícia Militar entrou em contato com a reportagem e informou que quem responde sobre o caso é a Polícia Civil, já que a ocorrência do caso João Pedro não teve participação da PM.

Há cerca de um mês, Rafaela diz que ficou sem saber o que dizer quando Rebeca, a filha caçula de 5 anos de idade, perguntou porque a polícia matou o irmão dela. "Foi até uma resposta difícil para eu dar, porque como você vai dizer que a polícia, que tem que proteger, tira a vida do irmão dela?"

Leia os principais trechos da entrevista, realizada por teleconferência em vídeo:

BBC News Brasil - O que você sabe da investigação sobre a morte de João Pedro?

Rafaela Coutinho Matos - As investigações estão paradas desde o dia em que houve a reconstituição [do crime], no dia 29 de outubro. De lá para cá estamos à espera do laudo da reprodução simulada, que até hoje não nos deram essa resposta. Conviver com essa espera, além de conviver com a dor da perda, é muito mais difícil. Você não consegue nem viver o seu luto, porque você tem que ir em busca por essa Justiça. Não consegue nem ter paz.

A gente aguarda uma resposta da Justiça, uma resposta do Estado, e até hoje não temos essa resposta. O que nós sabemos é que houve a extinção do Gaesp [Grupo de Atuação Especializada em Segurança Pública, do Ministério Público do Rio de Janeiro], foi retirada essa força do Gaesp que investigava os policiais, e isso tudo dificulta muito as investigações também.

BBC News Brasil - Como tem sido a relação com a polícia? Vocês receberam alguma informação sobre as investigações?

Rafaela - A polícia em momento nenhum procurou a gente para falar nada. Os defensores que estão nos apoiando sempre mantêm a gente informado, eles falam que também estão cobrando do Ministério Público e da Polícia Civil essa resposta.

BBC News Brasil - Na primeira semana de maio o noticiário foi tomado novamente pelo tema das operações policiais, com a operação na comunidade de Jacarezinho que acabou com 28 mortos. E justamente em um período em que as operações estavam restritas pelo STF desde a morte do João Pedro, no ano passado. Como foi para você acompanhar esse noticiário um ano depois da morte do João?

Rafaela - Na grande verdade as operações continuaram, mesmo com essa proposta de não haver as operações durante a pandemia, só em casos que tenha que ter mesmo. Em momento nenhum parou. Mas lidar com mais essa chacina, porque foi uma chacina; eu fiquei observando porque é a mesma polícia, a mesma polícia que tirou a vida do João.

É a mesma polícia que vai lá e limpa a cena do crime, que forja tudo. Fiquei pensando: é a Core [Coordenadoria de Recursos Especiais, unidade especial da Polícia Civil] que estava nessa operação, e até mesmo os policiais que tiraram a vida do João Pedro eles poderiam estar nessa operação, tirando outras vidas. [Nota da redação: questionada, a assessoria de imprensa da Polícia Civil não respondeu de quais operações os policiais participaram desde a morte de João Pedro]

Então quando não há uma punição da Justiça, esses policiais ficam aí nas ruas soltos, não são punidos, e tirando outras vidas. Isso é muito triste.

Policial em operação em comunidade

CRÉDITO,REUTERS

Legenda da foto,

Intervenções policiais no Rio de Janeiro deixaram um total de 1.245 vítimas em 2020

BBC News Brasil - Os policiais investigados que participaram da ação que resultou na morte do João Pedro estão trabalhando normalmente?

Rafaela - Continuam trabalhando normalmente. Não foram afastados em momento nenhum.

BBC News Brasil - Nós conversamos em agosto para um documentário da BBC, e na ocasião você falava sobre como a Justiça prioriza alguns casos em detrimento de outros, sobre a lentidão da Justiça. Hoje, um ano depois da morte do João, como você avalia essa falta de respostas até hoje sobre o crime?

Rafaela - Eu avalio que a Justiça para nós mães que o Estado vem e mata nossos filhos, essa Justiça não acontece. Essa justiça é demorada, a impunidade está, sim, descarada. Porque a gente vê outros casos , como o do Henry, que são pessoas que não foi a polícia que cometeu o crime, e é um caso que já foi até solucionado em menos de um ano.

A gente vê também o caso do George Floyd lá nos Estados Unidos, que foi também no mesmo mês do de João, teve toda essa comparação e é um caso que está se resolvendo também. Essa impunidade aqui no Brasil é muito difícil. A gente vê outros casos sendo solucionados e quando envolve a polícia é sempre muito difícil ser solucionado.

BBC News Brasil - Na época o caso do João causou muita comoção, justamente quando começaram também os protestos em torno da morte do George Floyd no mundo tudo. Essa reação das pessoas mudou de lá para cá?

Rafaela - Eu não vi tantas mudanças, mas eu vi que quando o STF suspendeu as operações durante a pandemia eu percebi que outras vidas foram poupadas quando estava se cumprindo. Mas de uns meses para cá eu tenho visto que realmente têm ocorrido outras mortes, né.

Não vi muita mudança mas acredito que com a morte do João, por ter causado toda essa comoção, essa sensibilidade, as pessoas estão vendo realmente como é que a polícia faz quando entra nas favelas, quando entra nas comunidades. Eles não querem saber se a pessoa é trabalhador, se a pessoa não é envolvida com nada, eles querem mesmo é tirar a vida, eles querem mesmo é ceifar vidas. Onde o Estado teria que proteger e zelar pelas vidas, e não é isso o que tem acontecido.

BBC News Brasil - Na época do documentário da BBC, no ano passado, você contava muito sobre a rotina de reconstrução da sua família, em continuar a vida, em como isso afetou a sua saúde mental, do seu marido, da sua filha. Como tem sido esse ano?

Rafaela - Tem sido bem difícil, né. Que a gente pensa 'ah, tá muito recente, tá muito difícil'. Mas parece que quanto mais o tempo vai passando, mais difícil fica. Porque a saudade aumenta, a ausência acaba sendo maior. Por que com esta questão de se aproximar um ano também, são 365 dias, né.

Eu não me imaginava nem um dia conseguir sobreviver sem o João. Então a gente tem tentado recomeçar. Eu voltei a trabalhar, tem sido difícil, mas é um momento também em que você acaba ocupando sua mente um pouco. Mas na volta para casa a realidade volta. A gente tem tentado seguir, mas tem sido difícil. Até mesmo com a nossa filha Rebeca, mudança de comportamento. Ficam alguns traumas, tanto com a Rebeca, quanto comigo, quanto com o meu esposo.

Protesto contra a morte de George Floyd

CRÉDITO,REUTERS

Legenda da foto,

Os protestos contra a morte de Floyd repercutiram muito além dos Estados Unidos

BBC News Brasil - A Rebeca tem hoje 5 anos, certo? Você conversa sobre o assunto com ela?

Rafaela - Olha, eu percebo que ela foge às vezes do assunto, se a gente quiser conversar com ela. Mas se ela ouve o nome do João Pedro, seja na televisão, ela logo para, ela quer ver, quer assistir. Mas às vezes ela me pergunta. Um mês atrás ela me perguntou por que a polícia matou o irmão dela. Foi até uma resposta difícil para eu dar, porque como você vai dizer que a polícia que tem que proteger tira a vida do irmão dela?

Daí o que veio a minha mente para falar no momento é que foi um erro que eles cometeram, eles erraram e eles não assumiram o erro que eles cometeram. Então às vezes quando eu vou falar 'ô filha, tá tão difícil', e ela fala 'por causa de João, né, mãe?' Mas ela procura o não conversar a respeito, mas fala algumas coisas de vez em quando.

BBC News Brasil - Atualmente, o que você espera da Justiça?

Rafaela - Eu espero que realmente a Justiça seja feita, que os culpados sejam punidos. Porque é isso que a gente espera, que eles vão a júri popular, que sejam presos, que sejam expulsos. Porque se eles cometeram o erro eles têm que ser condenados pelo erro que eles cometeram. Eles tiraram a vida de uma criança.

Quantas crianças mais vão ter que morrer e continuar essa impunidade? Eles fazem isso porque eles sabem que é a proteção de proteger esses policiais que cometem esses erros. Então esperamos sim a justiça, que eles sejam punidos.

  • Ligia Guimarães - 
  • Da BBC News Brasil em São Paulo
Professor Edgar Bom Jardim - PE

sexta-feira, 14 de maio de 2021

Como viviam as pessoas escravizadas pela Igreja no Brasil


Trabalhadores escravizados perfilados carregando enxadas e cestos para o trabalho no campo, observados por feitor. Litografia de Fréderic Sorrieu sobre foto de Victor Frond

CRÉDITO,ARQUIVO NACIONAL / DOMÍNIO PÚBLICO

Legenda da foto,

Mosteiros e conventos tinham pessoas escravizadas que eram obrigados a professar a fé católica, participando de missas, momentos de orações e recebendo os sacramentos

As grandes instituições religiosas do Brasil colonial e imperial tiveram negros escravizados — e muitos. Pesquisas recentes apontam para um número de escravos muito acima da média do que havia nas grandes propriedades rurais, práticas de incentivo à procriação para aumentar a quantidade de mão de obra e até mesmo uma tabela de preços para quem quisesse comprar a alforria — com critérios específicos para precificar cada ser humano.

Os escravizados mantidos por mosteiros e conventos também eram obrigados a professar a fé católica, participando de missas, momentos de orações e recebendo os sacramentos.

Os que se rebelavam quanto à conversão costumavam ser punidos com castigos "de forma exemplar" ou seja, com intensidade suficiente para convencer os demais a não repetir gestos de desobediência.

De quebra, a luta pela aquisição de liberdade — ou seja, a compra de uma carta de alforria — costumava ser mais difícil para um escravo de ordem religiosa do que para alguém que estivesse sob o jugo de um senhor leigo.

Por outro lado, a libertação dos escravizados por mosteiros e conventos ocorreu 17 anos antes da assinatura da Lei Áurea, em 1871.

"Escravos da religião"

Autor do recém-lançado livro Escravos da Religião (Ed. Appris), pesquisador na Universidade Federal Fluminense (UFF) e idealizador do podcast Atlântico Negro, o historiador Vitor Hugo Monteiro Franco revira arquivos da Ordem de São Bento desde 2014.

O material foi tema de sua iniciação científica, de sua monografia de conclusão de curso, de seu mestrado e, agora, está sendo esmiuçado em seu doutorado.

"Uma das principais descobertas foi o próprio termo 'escravos da religião'", conta ele.

"Não foi um termo que eu criei. É o termo na época que encontrei em livro de batismos. Foi um choque para mim."

Na ocasião, ele estava analisando os registros dos nascidos no século 19 em propriedade rural mantida pelos beneditinos na Baixada Fluminense, a Fazenda São Bento de Iguassú.

"Na hora de qualificar os pais, o monge não os qualificava como 'escravos da Ordem de São Bento', mas sim como 'escravos da religião'."

Para o pesquisador, residia aí uma diferença fundamental entre o modo de vida dos escravos mantidos por instituições religiosas: o fato de o senhor não ser uma pessoa, mas sim uma entidade.

"Parece simples, mas não é. A situação geral da escravidão no Brasil é de escravos privados, de senhores leigos. No caso dos 'da religião', eles não pertenciam a um monge específico, eram de propriedade coletiva. E isso teve repercussões na vida dessas pessoas para sempre, porque influenciava na forma, no dia a dia deles", diz o historiador.

Franco ressalta que o cotidiano desses negros escravizados estava "regulado" pelos hábitos religiosos do catolicismo e da vida monástica.

"Por mais que a sede dos religiosos estivesse no centro do Rio e a fazenda na Baixada Fluminense, sempre havia um monge cuidando de lá. Era o chamado padre fazendeiro", contextualiza.

"Ele fazia o trabalho espiritual: batizava as pessoas, casava-as, sepultava-as. Os beneditinos eram um tipo de senhor que conhece muito bem sua escravaria, anotando tudo em muitos detalhes."

"Os monges conheciam cada momento, cada fase da vida dos seus escravizados. Por mais que as propriedades fossem enormes, eles tinham o controle administrativo sobre aquelas pessoas, ao contrário dos senhores leigos, que muitas vezes tinham um contato muito pequeno com os escravizados", compara.

"Isso dava (aos religiosos) um poder muito grande. Ser 'escravo da religião' significava ter sua vida controlada por uma instituição religiosa", acrescentou Monteiro Franco.

Escravos participam da festa de Santa Rosália. “Fête de Ste. Rosalie, Patrone des nègres”. Gravura contida na obra “Voyage pittoresque dans le Bresil”, de Johann Moritz Rugendas e M. de Golbery, 1835.

CRÉDITO,ARQUIVO NACIONAL / DOMÍNIO PÚBLICO

Legenda da foto,

Em 1871, somente os beneditinos tinham um total de 4 mil escravizados

E não era um rebanho pequeno para ser controlado. De acordo com as pesquisas de Franco, quando os religiosos emanciparam seus escravos, em 1871, somente os beneditinos tinham um total de 4 mil escravizados.

"Eram três as principais ordens religiosas escravistas do Brasil: os jesuítas, os beneditinos e os carmelitas. Em menor escala, os franciscanos também", elenca.

A primazia da Companhia de Jesus foi até o século 18. Em 1759, contudo, os jesuítas foram expulsos do Brasil.

E aí os beneditinos assumiram essa posição. Durante o século 19, período analisado pela pesquisa de Franco, a Fazenda de Iguassú costumava ter um número constante de cerca de 130 escravos.

"Destoava muito das outras fazendas da região, em que havia em média 10 escravos por senhor", afirma o pesquisador.

Mas essa propriedade não era a maior das beneditinas. Em Jacarepaguá, a fazenda dos religiosos tinha mais de 300 escravos. Em Campos dos Goitacazes, 700.

"E essas são só as três maiores propriedades dos monges de São Bento", diz Franco. "É muita gente. Era a principal ordem escravista do Brasil. Eu nem considero a Ordem de São Bento uma grande proprietária [de escravos]. Era uma megaproprietária, estava acima dos grandes proprietários, era a elite da elite."

Incentivo à gravidez

Uma maneira de garantir a abundância de mão de obra escrava era o incentivo que os monges davam para que as escravizadas tivessem muitos filhos.

"As mulheres que procriavam pelo menos seis filhos conseguiam privilégios, tais como não realizarem trabalhos 'penosos'", conta o historiador Robson Pedrosa Costa, autor do livro Os Escravos do Santo (Editora UFPE) e professor no Instituto Federal de Pernambuco e na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

A partir de 1866, os benefícios às mães de pelo menos seis filhos passaram a ser a liberdade gratuita — desde que elas "estivessem devidamente casadas", pontua o historiador.

Mapa que situa a propriedade dos beneditinos na Baixada Fluminense

CRÉDITO,REPRODUÇÃO/ ‘ESCRAVOS DA RELIGIÃO’

Legenda da foto,

Mapa que situa a propriedade dos beneditinos na Baixada Fluminense

Para os monges senhores de escravos, religião era uma coisa, negócios eram outra. Pelo menos é o que fica claro em outro achado do historiador Monteiro Franco: nos registros de batismo, a maior parte das crianças era registrada como sendo filho de mãe solteira.

Havia uma razão econômica para isso. "Até pouco tempo atrás se acreditava que as ordens religiosas de maneira geral incentivavam o casamento por causa do valor cristão do matrimônio e também para um fator de incentivo da reprodução da comunidade escrava, do ponto de vista senhorial", pontua o pesquisador. "Mas o que encontrei foi a maior parte das mulheres como mães solteiras."

Segundo ele, isso não significa que essas mulheres não tivessem relacionamento estável ou que vivessem na promiscuidade.

A questão chave estava na propriedade da criança que nasceria dessa gravidez. Em caso de mãe e pai sacramentalmente unidos, poderia haver alguma discussão se o filho pertenceria ao senhor da mãe ou do pai.

Então, os beneditinos preferiam não oficializar relações estáveis quando as mulheres de sua fazenda tinham homens de fazendas vizinhas.

Quando ambos eram da mesma propriedade, aí sim, o sacramento do matrimônio era concedido.

Tais condutas fizeram com que os beneditinos conseguissem manter um grande número de escravos no século 19, mesmo com a dificuldade, para os latifundiários escravocratas, decorrentes da Lei Eusébio de Queirós — que, a partir de 1850, proibiu o tráfico negreiro.

"Estas instituições [religiosas] construíram, ao longo dos séculos, grandes corporações, muito semelhantes a grandes empresas pautadas em um complexo sistema organizacional", afirma Costa.

"No caso dos beneditinos, foi possível entender que a instituição foi capaz de construir um sistema de gestão eficiente e duradouro, que garantiu o fornecimento de escravos para as suas propriedades sem recorrerem ao tráfico."

"Claro que eles compraram escravos no século 19, mas foram poucos", completa o professor.

A estratégia consistia em incentivar a procriação e a tentativa de manutenção das famílias. "Eles evitavam ao máximo vender seus escravizados, principalmente a separação de famílias, uma instituição sagrada para os monges. Apenas os cativos considerados 'incorrigíveis' deveriam ser vendidos. Mas eles foram poucos. As famílias escravizadas eram extensas e duradouras. Isso garantia a perpetuação do quantitativo de escravos", explica Costa.

Alforrias

Prática relativamente comum entre escravizados no Brasil, a compra da liberdade era mais difícil para um "escravo da religião". Enquanto no caso daquele que servia a um senhor leigo bastava convencê-lo — com acordos e, muitas vezes, um valor em dinheiro — no caso dos monges era preciso passar por um processo formal.

Capa de 'Escravos da Religião', livro de Vitor Hugo Monteiro Franco

CRÉDITO,REPRODUÇÃO

Legenda da foto,

O historiador Vitor Hugo Monteiro Franco revira arquivos da Ordem de São Bento desde 2014 - foi assim que encontrou o termo "escravos da religião"

Aquele que pleiteava a alforria precisava fazer uma petição aos religiosos. Não havia negociação direta. "Estamos falando de uma propriedade institucional", lembra o historiador Franco. "Não era simples. Os monges liam a petição e colocavam para votação, usando favas pretas para marcar as negativas e favas brancas para sinalizar positivo."

A partir da década de 1850, a Ordem de São Bento criou uma tabela de preços para casos de alforria. Pelo documento, o preço dos escravizados variava conforme saúde, idade e sexo.

"O valor ia aumentando de acordo com a idade até a fase mais produtiva. A partir da adolescência, eles passam a entender que um homem pleno de saúde vale mais do que uma mulher", explica Franco.

"Esse documento mostra com todas as letras qual a posição de um senhor de escravos: transformar as pessoas em commodities", define ele.

Violência e trabalho

Embora haja uma corrente que acredite que a escravidão impetrada por religiosos fosse mais branda do que a conduzida por senhores leigos, pelos valores cristãos supostamente respeitados, Franco não compactua com essa ideia. Primeiramente porque é enfático ao dizer que a privação da liberdade a que um escravo está sujeito já é, por si só, uma grande violência.

Além disso, ele encontrou registros que atestam atos de crueldade. "Tem um caso, em um fazenda de Cabo Frio, também dos beneditinos, em que dois monges foram presos depois de matarem, de tanto espancar, um escravizado. Isso no século 18", conta ele. "Olha o nível da violência."

Ele também se deparou com relatos de fugas em que o escravo, uma vez capturado, era submetido a um "castigo exemplar". O mesmo acontecia para quem não demonstrasse seguir a fé católica.

"Há um registro de uma visitação realizada por um monge (encarregado de vistoriar os trabalhos do padre fazendeiro), que dizia que era bom que o mesmo não descuidasse do espiritual dos escravos, para ver se eles estavam seguindo os preceitos do cristianismo", aponta Franco.

"E, verificando que não estivessem seguindo, que fossem punidos exemplarmente. Se não se redimissem, que fossem vendidos."

Mas em que trabalhavam os "escravos da religião"?

Boa parte deles fazia um trabalho semelhante a qualquer outro escravo de propriedades rurais. As instituições religiosas tinham muitas terras e nelas cultivavam cana de açúcar e outros insumos valiosos para a economia da época. Quem fazia esse trabalho era a mão de obra escrava.

No caso dos religiosos, contudo, havia também muitos escravos com trabalhos especializados. Carpinteiros, ferreiros, oleiros, sapateiros, boticários, enfermeiros. "Além daqueles que serviam os monges no claustro: botavam a comida na mesa, tocavam o sino da capela, seguravam o livro na hora da missa, e por aí vai", diz o historiador Franco.

Nesse sentido, a Ordem de São Bento investiu em capacitação. Como eles tinham grandes propriedades com necessidades específicas, passaram a treinar os escravos que pareciam mais aptos a trabalhos específicos. "Para eles, era melhor fazer isso do que pagar um sujeito livre para desempenhar esses papéis", afirma.

Esses que tinham ofícios especializados não eram inimputáveis a sofrerem castigos. "Encontrei um registro de um monge que se dedicava a ensinar ferraria a escravos. E ele era tão violento que acabou sendo deslocado de posição", exemplifica Franco.

Desempenhar essas funções especiais, por outro lado, conferia prestígio dentro da comunidade escrava. E muitos desses profissionais acabavam conseguindo fazer trabalhos "por fora" e, assim, juntar dinheiro para, no futuro, comprar a alforria.

Abolição prematura

As ordens religiosas libertaram seus escravos ao longo de 1871, ou seja, 17 anos antes da Lei Áurea. A primeira instituição a fazer isso foi a Ordem de São Bento. Aos poucos, os beneditinos foram seguidos pelos demais religiosos.

Segundo os pesquisadores, esse movimento era resultado de um embate da Igreja Católica com o Estado.

"Havia uma relação de tensão entre Estado e as ordens religiosas", pontua Franco. "Estava ocorrendo um embate político em que cada vez mais a classe política e outros setores da elite brasileira acreditavam que os religiosos tinham propriedades demais, escravizados demais e eram improdutivos. Por outro lado, o Estado via a chance de se apropriar das propriedades dos religiosos."

Ao libertar os escravos na mesma época da promulgação da Lei do Ventre Livre, as instituições católicas geraram uma comoção nacional.

"A abolição não significa simplesmente a questão humanitária por trás da liberdade do indivíduo, mas também uma questão de ordem econômica sobre aqueles que você teria de estar empregando", afirma o historiador Philippe Arthur dos Reis, pesquisador na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

"O custo de manutenção desses indivíduos, em geral era muito mais dispendioso ter os escravos do que importar pessoas de fora e pagar salário", acrescenta.

O historiador Costa lembra que desde a Independência, em 1822, "várias vozes começaram a sugerir que as ordens religiosas eram instituições inúteis e péssimas administradoras de seus bens".

"Quando os debates sobre a abolição se acirraram a partir de 1865, novamente as ordens, consideradas grandes escravistas, foram colocadas na berlinda. Uma lei de 1869 instituiu que as instituições religiosas deveriam libertar todos os seus escravos em um prazo de 10 anos. Até lá, poderiam libertá-los ou criar contratos de prestação de serviço por tempo determinado", detalha o historiador.

"Prevendo uma maior intervenção do Estado e do Parlamento, a Ordem de São Bento do Brasil já havia se antecipado, decretando a liberdade de todo as crianças nascidas a partir do dia 3 de maio de 1866", diz ele.

Essa medida teve impacto nas autoridades. O imperador Dom Pedro Segundo (1825-1891) presenteou o então abade geral com uma caixa de ouro cravejada de diamantes. Já o deputado Tavares Bastos (1839-1875), voz abolicionista, declarou que o gesto era "um ato generoso e solene" — e que deveria ser seguido pelas demais instituições religiosas.

Em 1871 veio a libertação total dos "escravos da religião".

  • Edison Veiga
  • De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil
Professor Edgar Bom Jardim - PE