sexta-feira, 23 de abril de 2021

Auxílio emergencial: Com benefício reduzido em 2021, Brasil terá 61 milhões na pobreza

Pés negros descalços, próximos a um par de chinelos, sobre chão de terra batida

CRÉDITO,ARNALDO CARVALHO/GETTY IMAGES

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Mulheres e a população negra são mais afetadas pela piora das condições de vida no país

Com o valor menor do auxílio emergencial este ano, o Brasil deve somar 61,1 milhões de pessoas vivendo na pobreza e 19,3 milhões na extrema pobreza, segundo estudo publicado nesta quinta-feira (22/04) pelo Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades da Universidade de São Paulo (Made-USP).

Em 2021, são consideradas pobres as pessoas que vivem com uma renda mensal per capita (por pessoa) inferior a R$ 469 por mês, ou US$ 5,50 por dia, conforme critério adotado pelo Banco Mundial. Já os extremamente pobres são aqueles que vivem com menos de R$ 162 mensais, ou US$ 1,90 por dia.

Em 2019, os brasileiros vivendo abaixo da linha da pobreza somavam 51,9 milhões. Isto significa que, em 2021, o Brasil terá 9,1 milhões de pobres a mais do que antes da chegada do coronavírus ao país.

No ano anterior à pandemia, os extremamente pobres eram 13,9 milhões. Assim, em apenas dois anos, 5,4 milhões de brasileiros se somarão a esse grupo que convive com a carência extrema.

Para as pesquisadoras Luiza Nassif-Pires, Luísa Cardoso e Ana Luíza Matos de Oliveira, autoras do estudo, o aumento da miséria esperado para esse ano revela que o auxílio emergencial com valor médio de R$ 250 é insuficiente para recompor a perda de renda da população mais pobre em meio à pior fase da crise de saúde pública provocada pela covid-19.


"Já havia um crescimento da pobreza antes da pandemia, isso só não se agravou no ano passado devido ao auxílio emergencial de R$ 600 a R$ 1.200", observa Oliveira.

"O novo modelo do auxílio, que sofreu um corte significativo, está deixando grande parte da população desamparada", acrescenta a economista, lembrando ainda que a queda de 4,1% do PIB (Produto Interno Bruto) em 2020 só não foi maior devido ao benefício, que permitiu a parcela significativa da população manter um nível mínimo de consumo.

As economistas destacam ainda que as mulheres e a população negra são as mais afetadas por essa grave piora das condições de vida no país.

Menino estuda em frente a uma janela, em uma casa de tijolos aparentes

CRÉDITO,IGOR ALECSANDER/GETTY IMAGES

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Bolsa Família, salário mínimo e maior acesso à educação levaram à redução da pobreza no Brasil até 2014

Pobreza vem crescendo desde 2015

Até 2014, a pobreza diminuiu durante anos no Brasil, graças ao avanço de políticas sociais como o Bolsa Família, os ganhos reais do salário mínimo e a ampliação do acesso à educação.

Em 2015, sob efeito da crise econômica, a tendência se inverteu e a miséria voltou a crescer ano após ano. A trajetória de alta, no entanto, foi interrompida em 2020, graças ao efeito do auxílio emergencial.

O benefício foi criado em abril do ano passado, com valor de R$ 600, que podia chegar a R$ 1.200 para mães solteiras chefes de família. Foram pagas cinco parcelas nesses valores cheios e outras quatro com os valores reduzido à metade, num total de R$ 295 bilhões.

Em julho de 2020, mês em que o efeito do benefício atingiu o seu auge, a taxa de extrema pobreza do país foi reduzida a 2,4% e a de pobreza a 20,3%, estimam as pesquisadoras, com base em dados da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) Contínua e da Pnad Covid-19 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

Foram os patamares mais baixos já registrados para esses indicadores em pelo menos 40 anos, conforme uma série mais longa produzida pelo pesquisador Daniel Duque, do Ibre-FGV (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas).

A título de comparação, essas mesmas taxas eram de 6,6% e 24,8% em 2019, antes da pandemia. Agora em 2021, a expectativa é de que a extrema pobreza atinja 9,1% da população e a pobreza chegue a 28,9%.

Casas coloridas em uma favela densamente ocupada

CRÉDITO,PATRICK ALTMANN/GETTY IMAGES

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População de baixa renda ficou sem auxílio nenhum de janeiro a março de 2021

Neste ano, a população de baixa renda ficou sem auxílio nenhum de janeiro a março. Em abril, o pagamento começou a ser feito primeiramente apenas através do aplicativo da Caixa, o que dificultou o uso do recurso por parte das famílias, que têm dificuldade de acesso à internet.

O valor do benefício foi reduzido a uma média R$ 250, variando entre R$ 150 para pessoas que moram sozinhas, R$ 250 para domicílios com mais de uma pessoa e R$ 375 para mães solo.

O universo de beneficiários foi diminuído de 68,2 milhões de pessoas em 2020, para 45,6 milhões de famílias em 2021.

O saque foi restrito a uma pessoa por família e limitado a indivíduos que já receberam o auxílio em 2020 - o que significa que quem perder a renda esse ano, não poderá contar com a ajuda.

O montante autorizado pelo Congresso para o auxílio emergencial em 2021 é de R$ 44 bilhões, comparado aos R$ 295 bilhões do ano passado. Está previsto o pagamento de quatro parcelas este ano, ante nove parcelas pagas em 2020.

"Estamos no pior momento da pandemia em termos sanitários, com diversas cidades voltando a restringir atividades e, justamente agora, foi reduzido o estímulo fiscal", observa Oliveira, que é professora visitante da Flacso Brasil (Faculdade Latino-​Americana de Ciências Sociais) e coordenadora-geral da secretaria executiva da Frente Parlamentar Mista em Defesa do Serviço Público.

"Isso deve ter um impacto não só para a população vulnerável, mas também um efeito macroeconômico muito grande. Então é um problema para os mais pobres e para o Brasil como um todo."

Mulheres negras são as mais prejudicadas

Embora a redução do estímulo fiscal afete o Brasil como um todo, são as mulheres negras as mais prejudicadas pela redução do auxílio emergencial em 2021, aponta o estudo lançado nesta quinta-feira pelo Made-USP.

Antes da pandemia, a pobreza atingia 33% das mulheres negras, 32% dos homens negros e 15% das mulheres brancas e dos homens brancos. Com o auxílio reduzido de 2021, esses mesmos indicadores devem subir a 38%, 36% e 19%.

Já a taxa de extrema pobreza, antes da crise, era de 9,2% entre mulheres negras, 8,9% entre homens negros, 3,5% entre mulheres brancas e 3,4% entre homens brancos.

Com o benefício emergencial nos valores de 2021, a miséria deve chegar a percentuais muito acima dos verificados antes da crise: respectivamente, 12,3%, 11,6%, 5,6% e 5,5%.

Mulher negra de lenço na cabeça com olhar triste, com menino sorridente ao fundo

CRÉDITO,IGOR ALECSANDER/GETTY IMAGES

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'Como a posição das mulheres no mercado de trabalho já é mais vulnerável, quando há uma crise, elas são mais atingidas', diz pesquisadora

"De modo geral, as mulheres estão mais sujeitas à pobreza", observa Nassif-Pires, professora no Levy Economics Institute do Bard College (EUA).

"Elas são mais propensas a terem emprego informal, estão segregadas em ocupações que pagam menos e existe um hiato salarial entre homens e mulheres mesmo dentro de uma mesma ocupação. Além disso, elas mais frequentemente têm dependentes do que os homens", diz a economista.

"Então, há toda uma questão que vem de antes da pandemia, mas tudo isso se agrava com a crise, porque, devido à informalidade maior, é mais fácil para elas perderem o emprego", destaca, acrescentando que a pandemia também exigiu maior produção dentro de casa, em atividades de cuidado dos filhos e de idosos, que são no geral realizadas pelas mulheres.

"Em casais heterossexuais, frequentemente é a mulher que abre mão do emprego", lembra a professora do Bard College. Além disso, com as escolas e creches fechadas, muitas mulheres tiveram que deixar seus trabalhos fora de casa por não terem com quem deixar as crianças.

"Em resumo, como a posição das mulheres no mercado de trabalho já é mais vulnerável, quando tem uma crise, elas são mais atingidas", sintetiza Nassif-Pires.

Com relação à população negra, a pesquisadora é enfática quanto à origem das maiores taxas de pobreza desta parcela dos brasileiros: a herança da escravidão.

"Essa é a resposta rápida, mas, para além disso, há todo um racismo estrutural que resulta que, mesmo para um grupo de pessoas com a mesma escolaridade, há diferenças no nível salarial, nos tipos de ocupação e na taxa de informalidade entre negros e brancos."

"Então existe um racismo muito forte dentro do mercado de trabalho que coloca a população negra numa posição um tanto mais precária em termos de trabalho formal", observa.

'Estados deveriam complementar auxílio'

Para Oliveira, a pesquisa deixa evidente que são as mulheres negras as que mais estão sofrendo com a crise atual.

"Fica claro que precisamos de políticas específicas voltadas para esse grupo", diz a pesquisadora. "Precisamos também entender como a política fiscal e a política econômica como um todo impactam especificamente essa parcela da população."

A professora da Flacso-Brasil destaca, por exemplo, que cortes de recursos destinados à saúde, educação e assistência social afetam diretamente essa população mais vulnerável.

Além disso, a pandemia traz o risco de que avanços conquistados nas últimas décadas na redução da desigualdade racial e de gênero se percam, caso o Estado não dê uma resposta, na forma de medidas de apoio a essa população.

"Recomendamos a continuação do auxílio enquanto a pandemia durar e o pagamento de auxílios adicionais por Estados e municípios, para complementar esse valor tão baixo do auxílio federal de 2021", diz Cardoso, pesquisadora de pós-doutorado na UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).

Um menino e três meninas negras no batente de uma porta em casa de tijolos sem acabamento

CRÉDITO,IGOR ALECSANDER/GETTY IMAGES

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'A pobreza tem um caráter geracional. É muito provável que impacto que as famílias estão sofrendo agora tenha reflexos no futuro', afirma economista

"Além disso, indicamos também a elaboração de políticas voltadas aos jovens e crianças que estão em casa, como políticas de acesso à internet para os alunos de escolas públicas, porque a pobreza tem um caráter geracional", afirma a economista e demógrafa.

"Então esse impacto de agora que as famílias estão sofrendo não vai durar apenas um ano ou dois. É muito provável que isso se estenda e tenha reflexos no futuro também."

Para Cardoso, a demora do governo para retomar o auxílio em 2021 e os baixos valores estabelecidos mostram o descaso do governo com a população e com o combate às desigualdades. "Essas coisas deveriam ser prioridades", avalia.

Quanto à viabilidade de se estender o auxílio enquanto durar a pandemia, Nassif-Pires avalia que a restrição financeira imposta pelo teto de gastos é uma limitação política.

"O espaço fiscal poderia existir, mas existe um embate político por esse espaço", afirma.

"Pensando de forma estratégica, o custo do auxílio emergencial não é somente o seu valor de face, porque há um retorno disso. Ele faz com que a economia continue funcionando, então seu custo líquido é muito menor do que aquele que vai aparecer no Orçamento."

Além disso, a professora destaca que o auxílio emergencial tem papel fundamental no controle da pandemia.

"As pessoas que estão na extrema pobreza e na pobreza não têm a possiblidade de escolher cuidar de sua saúde. Elas estão numa situação de vida ou morte diária e não podem deixar de trabalhar, mesmo que estejam doentes ou trabalhando em situações precárias e expostas à pandemia", diz a economista.

"Manter a economia funcionando apesar da emergência de saúde, às custas de as pessoas precisarem se expor para sobreviver, tem impacto sobre a própria continuidade da pandemia. O problema econômico é resultado do problema sanitário."

  • Thais Carrança
  • Da BBC News Brasil em São Paulo
Professor Edgar Bom Jardim - PE

quinta-feira, 22 de abril de 2021

Descobrimento do Brasil: os bastidores da viagem de 44 dias que levou Pedro Álvares Cabral ao país


Pintura do desembarque de Cabral em Porto Seguro

CRÉDITO,OSCAR PEREIRA DA SILVA

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Frota de Cabral tinha nove naus, três caravelas e uma pequena embarcação com mantimentos

Há 521 anos, o navegador português e sua tripulação enfrentaram tormentas, calmarias e doenças. Dos 1,5 mil homens que zarparam de Portugal, apenas 500 conseguiram voltar, sãos e salvos, para casa.

"A praia das lágrimas para os que vão. A terra do prazer para os que voltam". É assim que os portugueses costumam se referir ao Porto do Restelo, em Lisboa, de onde partiram as expedições de Vasco da Gama, em 1497, e de Pedro Álvares Cabral, em 1500.

Prevista para acontecer em um domingo, 8 de março, a partida da armada de Cabral, um fidalgo de origem nobre de apenas 33 anos, foi adiada, por causa do mau tempo, para o dia seguinte.

"Vale lembrar que 'fidalgo' quer dizer 'filho de algo', ou seja, 'filho de alguém'. E Cabral era filho de uma família que, desde 1385, mantinha vínculos estreitos com a Coroa. Além do mais, casou-se com uma mulher riquíssima, Isabel Gouveia, neta de reis", afirma o jornalista e escritor Eduardo Bueno, autor de Brasil: Terra à Vista! - A Aventura Ilustrada do Descobrimento (2000).

A frota de Cabral era formada por nove naus, três caravelas e uma naveta de mantimentos. Além do formato das velas, o que diferenciava uma embarcação da outra era o tamanho: enquanto as caravelas mediam 22 metros de comprimento e transportavam até 80 homens, as naus podiam chegar a 35 metros e tinham capacidade para 150 tripulantes.


"A frota era composta por uma variedade de profissionais: havia o capitão e, abaixo dele, o piloto, responsável pela navegação, o mestre e contramestre, que lideravam os marinheiros, e o condestável, que comandavam a artilharia", explica Antônio Carlos Jucá, diretor do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Ilustração da nau de Fernando Gonda

CRÉDITO,EDITORA L&PM

Com o tempo bom e o vento favorável, Cabral e sua tripulação zarparam de Lisboa, rumo a Calicute, na Índia, no dia 9 de março de 1500. Curiosamente, o homem a quem o então rei de Portugal, Dom Manuel I (1469-1521), o Venturoso, confiara a maior, a mais cara e a mais poderosa armada portuguesa nunca tinha comandado uma esquadra antes.

"Se houve imprevistos? Bem, ocorreu um enorme imprevisto, sim: a chegada ao Brasil", afirma Paulo Pinto, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova de Lisboa, em Portugal.

"A armada tinha como destino a Índia e tocou a costa brasileira por acidente. É possível que Portugal já suspeitasse da existência de terras naquela região, mas a verdade é que Cabral e seus homens foram apanhados de surpresa. A chegada ao Brasil foi, portanto, um acidente de percurso de uma jornada que tinha objetivos estratégicos bem definidos. A Índia era a prioridade número um da coroa de Portugal."

'Mar Tenebroso'

Com apenas oito dias de viagem, a frota enfrentou sua primeira tormenta. Tão forte que, próximo ao arquipélago de Cabo Verde, a nau comandada por Vasco de Ataíde, que transportava 150 homens, sumiu do mapa. A cada três navios que partiam de Portugal, um era "engolido pelo mar".

Não à toa, o Atlântico era conhecido como "Mar Tenebroso". "Além de perder um de seus barcos, Cabral teve de enfrentar, no primeiro trecho da viagem, 20 dias de calmaria", relata José Carlos Vilardaga, professor de História da América na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

"Quando isso acontecia, o barco ficava quase totalmente parado no meio do oceano. Isso aumentava o tédio e o calor a bordo."

O Descobrimento do Brasil, de Aurélio de Figueiredo

CRÉDITO,MUSEU HISTÓRICO NACIONAL

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Ao todo, os 13 navios transportavam 1,5 mil homens, entre médicos, boticários, religiosos, calafates e até condenados à morte que aceitavam trocar sua pena pelo exílio

Ao todo, os 13 navios transportavam 1,5 mil homens, entre médicos, boticários, religiosos, calafates e até degredados, isto é, condenados à morte que aceitavam trocar sua pena capital pelo exílio em terras desconhecidas. Na maioria das vezes, eram os primeiros a desembarcar. Se fossem atacados por selvagens, não fariam muita falta.

Do total de 1,5 mil homens, apenas 500 conseguiram voltar, sãos e salvos, para casa. O restante morreu no mar, vítima de naufrágios ou de doenças, como o escorbuto, que provocava sangramento nas gengivas. Em algumas expedições, a proporção de médicos para marinheiros era de um para três mil. Viajar era tão arriscado que, antes de zarpar, muitos marujos já deixavam seus testamentos assinados.

A presença de mulheres a bordo não era permitida. Já crianças e adolescentes podiam embarcar. A maioria, de nove a 15 anos, era alistada pelos pais que, em troca, embolsavam o soldo dos filhos. Durante a viagem, desempenhavam as funções de grumetes e de pajens.

"A vida dos 'miúdos' a bordo era um inferno. Muitas vezes, eles sofriam abusos sexuais", relata Bueno em Brasil: Terra à Vista!.

O Cabo do Tormentas

A tripulação, em linhas gerais, podia ser dividida em marinheiros, soldados e religiosos. Os marinheiros executavam as tarefas náuticas, como içar velas, baixar âncoras ou manejar instrumentos, como o astrolábio, usado para medir a altura do Sol ao meio-dia e das demais estrelas à noite.

Alguns dos mais tarimbados navegadores da época, como Bartolomeu Dias (1450-1500), participaram da aventura. Doze anos antes, ele ficou famoso por ter sido o primeiro a contornar o cabo da Boa Esperança, ao sul da África.

Por uma trágica ironia, na madrugada do dia 23 de maio, uma tormenta desabou sobre a frota de Cabral e afundou outros quatro navios. Quatrocentos homens, incluindo Dias, foram "engolidos pelo mar". Onde estavam? Próximos ao cabo da Boa Esperança, chamado de Cabo das Tormentas antes da viagem bem-sucedida do próprio Dias.

Pedro Alvares Cabral

CRÉDITO,BIBLIOTECA DA ACADEMIA DE CIÊNCIAS DE LISBOA

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Estima-se que, na época do descobrimento, havia entre 500 mil e um milhão de indígenas habitando o litoral brasileiro

Já os soldados, a maioria sem formação militar, eram os responsáveis pela artilharia e munição. As embarcações portuguesas, aliás, foram as primeiras a singrar os mares com artilharia pesada a bordo. As nove naus que compunham a frota de Cabral eram equipadas com pesados canhões.

Os religiosos — em sua maioria, frades franciscanos — eram incumbidos de rezar missas e ouvir confissões. Seu superior era Dom Henrique Soares de Coimbra (1465-1532). Foi ele que, no dia 26 de abril, na praia de Coroa Vermelha, no litoral da Bahia, celebrou a primeira missa no Brasil, assistida de perto pela tripulação e, ao longe, por cerca de 200 indígenas.

"Devido à escassez de água e comida, as condições de vida a bordo eram muito ruins. A mortalidade, em geral, girava em torno de 2% a 3% da tripulação, mas podia ultrapassar os 10% do total. Assim, os doentes eram logo aconselhados a se confessar e a receber a extrema-unção", relata Antônio Carlos Jucá de Sampaio, diretor do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Banquete de ratos

Os tripulantes não desfrutavam de qualquer conforto. Pelo contrário. Como os porões dos navios eram usados para estocar os tonéis com água, mantimentos e munição, os marinheiros dormiam no convés, ao relento, em colchões de palha.

"Naquela época, tomar banho era raro até em terra firme, quanto mais em viagens oceânicas. A marujada urinava no mar e defecava em baldes. As condições eram insalubres", esclarece Ronaldo Vainfas, professor de História Moderna na Universidade Federal Fluminense (UFF).

Pedro Alvares Cabral2

CRÉDITO,FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL

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Durante toda a viagem, os marinheiros dormiam no convés, ao relento, em colchões de palha

"Talvez o melhor depoimento sobre a insalubridade das viagens atlânticas para o Brasil esteja na obra do francês Jean de Léry (1534-1611): quando os biscoitos acabavam ou estragavam, os marujos comiam ratos. Havia até uma cotação para o preço do rato nos navios."

Os momentos de lazer eram poucos. "Enquanto uns improvisavam rodas de cantoria, outros preferiam jogar cartas", exemplifica Vilardaga. O cardápio dos marujos consistia em água (1,5 litros por dia) e biscoito (600 gramas diários). Já os capitães da frota, todos de origem nobre, tinham direito a vinho (1,5 litro por dia) e a carne e peixe (15 kg por mês).

"Apesar de estarem no mesmo barco, o acesso à comida, basicamente biscoitos, carne em banha e peixes salgados, e água potável, armazenada em tonéis de madeira e racionada para durar toda a viagem, acontecia conforme o status social. Ou seja, seus lugares nas hierarquias da sociedade da época tendiam a ser replicados a bordo", explica Aldair Rodrigues, professor do Departamento de História da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Além das mordomias, os capitães ganhavam um ótimo salário. Só Cabral, o capitão-mor, embolsou 10 mil cruzados — algo em torno de 35 quilos em ouro. Quem não obedecia às ordens de seus superiores ou descumpria as regras da embarcação não era jogado aos tubarões, mas mandado, de castigo, para o porão. Infestado de ratos e baratas, o lugar era, para dizer o mínimo, uma imundície.

'Terra à vista!'

Ao todo, a jornada durou 44 dias. No dia 21 de abril, os marinheiros começaram a avistar os primeiros "sargaços" (um tapete flutuante de algas marinhas) nas águas e "fura-bruxos" (um bando de pássaros semelhantes a gaivotas) nos céus. No dia seguinte, a uns 60 quilômetros da costa, alguém gritou: "Terra à vista!". Era o entardecer do dia 22 de abril de 1500.

Pedro Álvares Cabral

CRÉDITO,FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL

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A jornada de Cabral ao Brasil durou 44 dias

Depois de ancorar sua nau a 35 quilômetros da costa, em frente a um monte batizado de Pascoal, o capitão Nicolau Coelho (1460-1504) foi o escolhido para fazer o reconhecimento do território.

A bordo de um escaler, embarcação pequena, de proa fina e popa larga, movida a remo, ele presenteou os nativos com um gorro vermelho, uma carapuça de linho e um chapéu preto. Em troca, ganhou um cocar de plumas e um colar de contas.

Estima-se que, na época da chegada dos portugueses, havia entre 500 mil e um milhão de indígenas habitando o litoral brasileiro. "Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse as vergonhas", descreveu Pero Vaz de Caminha (1450-1500), um dos sete escrivães da frota, na famosa carta do "achamento do Brasil". "Traziam nas mãos arcos e setas."

Antes de seguir para as Índias, Cabral e seus homens passaram dez dias no paraíso. No dia 2 de maio, partiram rumo a Calicute, deixando para trás dois degredados. Quando os navios desapareceram no horizonte, caíram no choro e foram consolados pelos indígenas.

O exílio dos chorões, porém, durou pouco: em dezembro de 1501, foram recolhidos pela primeira expedição enviada por Dom Manuel I para explorar a mais nova colônia portuguesa.

Os degredados não foram os únicos a permanecer no Brasil. Na calada da noite, dois grumetes, cansados dos maus-tratos a bordo, roubaram um escaler e fugiram para a praia. Nunca mais se ouviu falar deles.

A naveta de mantimentos, comandada por Gaspar de Lemos, foi mandada de volta a Portugal. Sua missão era comunicar ao rei o "achamento" da nova terra. Até ganhar o nome de Brasil, o território foi chamado de Ilha de Vera Cruz por Pedro Álvares Cabral e de Terra de Santa Cruz pelo rei Dom Manuel I.

O 'achamento' do Brasil

A segunda parte da viagem durou pouco mais de cinco meses. No dia 13 de setembro de 1500, a frota de Cabral, reduzida a seis navios, chegou ao seu destino: Calicute. Na Índia, a esquadra sofreu novas baixas. Pero Vaz de Caminha, o autor da famosa "certidão de nascimento" do Brasil, foi morto, no dia 16 de dezembro, em um ataque de mercadores árabes.

De volta a Portugal, o que restou da esquadra atracou no Porto do Restelo, no dia 21 de julho de 1501.

"Apesar de ter sofrido perdas, a missão foi um sucesso. Depois de seu regresso, Cabral recebeu várias honrarias, mas não voltou a ser nomeado para o comando de qualquer expedição relevante. Isto tem dado origem a algumas interrogações. Historiadores falam que o rei teria ficado insatisfeito com os seus serviços, mas são apenas especulações", pondera Pinto, da Universidade Nova de Lisboa.

Por pouco, o Brasil não fora encontrado por outros navegadores: um português, Duarte Pacheco Pereira (1460-1533), e dois espanhóis, Vicente Pinzón (1462-1514) e Diego de Lepe (1460-1515).

Comandando uma frota de oito navios, Duarte Pacheco Pereira teria explorado o litoral brasileiro, na altura do Maranhão, em dezembro de 1498. "Embora ele dê a entender isso em seu livro Esmeraldo de Situ Orbis, não há nenhum documento que comprove essa tese", garante Bueno.

Por essa razão, a suposta presença de Pereira rondando o litoral brasileiro em 1498, que muitos historiadores descartam a hipótese de que Cabral tenha descoberto o Brasil por acaso.

"O consenso é de que Portugal sabia da existência de terras no Atlântico. Caso contrário, não teria pressionado o papa Alexandre VI para modificar a bula Inter Coetera, de 1493, que deixava os portugueses de fora do Novo Mundo descoberto por Colombo em 1492", observa Vainfas.

"Mas o fato é que a viagem de Cabral ia mesmo para a Índia. Uma tempestade desviou a rota e eles deram em Porto Seguro. Uma coisa é saber que havia terras ali. Outra é montar uma expedição com o propósito de aportar no sul da Bahia. Por isso, o historiador português Joaquim Romero de Magalhães (1942-2018) prefere chamar a viagem de 'achamento' e não de 'descobrimento'."

Quanto a Vicente Pinzón, o explorador espanhol teria atingido o Cabo de Santo Agostinho, no litoral de Pernambuco, no dia 26 de janeiro de 1500 — três meses antes da chegada de Cabral a Porto Seguro, na Bahia.

Experiente, integrou a frota que, sob o comando de Cristóvão Colombo (1451-1506), descobriu a América, em 1492. Poucas semanas depois, em fevereiro de 1500, o primo de Pinzón, Diego de Lepe, também navegou por águas brasileiras.

A Espanha só não reivindicou a descoberta do Brasil por causa do Tratado de Tordesilhas. Mesmo assim, o rei Fernando II de Aragão condecorou Vicente Pinzón e Diego de Lepe pela façanha de eles terem "descoberto" o Brasil.

Este texto foi publicado originalmente em abril de 2020 e atualizado em 22 de abril de 2021.

  • André Bernardo
  • Do Rio de Janeiro para a BBC News Brasil
Professor Edgar Bom Jardim - PE