quarta-feira, 28 de abril de 2021

"Venham conhecer e se reconhecer nesta viagem", escreve historiadora Lúcia Barbosa em visita a 2ª BJ ARTE no Museu de Bom Jardim



A professora, historiadora e bibliotecária Lúcia Barbosa, fez uma publicação alusiva ao visitar  a 2ª Bienal BJ ARTE  no Museu de Bom Jardim. Registramos sua alegria e satisfação com o evento patrocinado pela Lei Aldir Blanc. Confira a bela mensagem postada no seu perfil do Facebook :
"Quando um sonho torna-se realidade e é compartilhado com toda sociedade, vira história.
Parabéns
professor Edgar!
Parabéns
aos artistas de Bom Jardim! Venham conhecer e
se reconhecer nesta viagem. Museu é cultura! Vamos aprender todos os dias, a valorizar nossa cultura". (Lúcia Barbosa).

Lúcia Barbosa relembra suas memórias afetivas no Museu de Bom Jardim. Painel histórico da tradicional festa de São Sebastião. Criação Edgar S. Santos. Arte no Concreto: Sandro Roberto Leite.


Tela Caboclo de Lança: Gleibson Cavalcanti para 2ª BJ ARTE

Mural artístico do Museu de Bom Jardim. Criação Edgar S. dos Santos - Alvenaria: Clécio e Pinturas de Sandro Roberto Leite. 
Registro Fotográfico de Lúcia Barbosa em 10 de fevereiro de 2021..
Imagens 1 em  https://www.facebook.com/photo?fbid=795345507719001&set=pcb.795346311052254 
Imagem 2 em https://www.facebook.com/photo?fbid=795345641052321&set=pcb.795346311052254
Imagem 3 em https://www.facebook.com/photo?fbid=795345814385637&set=pcb.795346311052254
Imagem 4 em https://www.facebook.com/photo?fbid=795346241052261&set=pcb.795346311052254


Professor Edgar Bom Jardim - PE

segunda-feira, 26 de abril de 2021

Oriente Médio: Como França e Reino Unido dividiram a região entre entre si há um século


O então ministro britânico David Lloyd George, o ex-chefe do governo francês Alexandre Millerand e o ex-presidente italiano Francesco Nitti na Conferência de San Remo. (13/05/1920)

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O britânico David Lloyd George, o francês Alexandre Millerand e o italiano Francesco Nitti conduziram a Conferência de San Remo, na qual foi oficializada a distribuição do Oriente Médio.

Certa manhã, em abril de 1920, a França e o Reino Unido deram início a uma conferência em uma pequena cidade na Riviera italiana, com o objetivo de formalizar a divisão do Oriente Médio otomano.

Os franceses ficariam com o Líbano e a Síria, enquanto os britânicos assumiriam o controle do Iraque e da Palestina, conforme acordado na conferência de San Remo, realizada de 19 a 26 de abril de 1920, há 101 anos.

Essa divisão entre as duas grandes potências coloniais da época havia sido acertada quatro anos antes, em uma reunião secreta na qual, com o consentimento da Rússia, o francês François Georges-Picot e o britânico Sir Mark Sykes negociaram o famoso Acordo de Sykes-Picot.

Naquela semana de primavera italiana foi apenas lançada a base não só para as atuais fronteiras do Oriente Médio, mas também para muitos problemas que continuam até hoje.

"As consequências do que aconteceu em San Remo são profundas e não apenas pelo que aconteceu naquela conferência. Por muitos anos a França e a Grã-Bretanha tomaram decisões que acabaram criando Estados sem nações, porque as nações não tinham o direito de se expressar", afirmou à BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC) Jean-Paul Chagnollaud, professor de ciência política da Universidade de Cergy-Pontoise e especialista em Oriente Médio.


"Muitos dos problemas que vemos hoje na Palestina, no Líbano, no Iraque ou na Síria estão obviamente ligados ao que aconteceu em 1920 e depois em 1921, 1922 e 1923", diz Chagnollaud, que é também diretor do Instituto de Pesquisas e Estudos do Mediterrâneo e o Oriente Médio (iReMMO).

O centenário da assinatura do tratado Sykes-Picot em 2016 despertou grande interesse da imprensa. No entanto, os cem anos da Conferência de San Remo passaram, na maior parte, sem destaque.

Isso talvez se deva ao fato de que o primeiro acordo foi feito de forma sigilosa entre François Georges-Picot e Sir Mark Sykes, dois aristocratas que acreditavam na ideia de que as pessoas no Oriente Médio estariam melhor sob o domínio europeu.

Promessas britânicas

Os árabes ignoraram por muitos anos que a França e o Reino Unido estavam tramando um tratado que enterraria uma promessa feita a eles pelos britânicos. O Reino Unido havia dito que, se os árabes se rebelassem contra os otomanos (adversários dos britânicos na Primeira Guerra Mundial), a queda daquele império os tornaria livres e independentes.

A vitória dos Aliados no Oriente Médio durante a Primeira Guerra Mundial foi um dos gatilhos para a desintegração do Império Otomano.

Após esse evento, o mandato francês para a Síria e os mandatos britânicos no Iraque e na Palestina foram criados, conforme planejado, todos sob a supervisão da Liga das Nações (órgão que antecedeu a ONU).

"Os britânicos ajudaram os árabes da região a se rebelarem contra o domínio otomano, mas durante a guerra eles fizeram promessas a diferentes grupos", disse Priya Satia, historiadora especialista em Império Britânico e professora da Universidade de Stanford, à BBC Mundo.

"Eles prometeram aos árabes que poderiam governar independentemente a Palestina, prometeram aos franceses que dividiriam alguns dos territórios com eles e há ainda a promessa que fizeram com a Declaração de Balfour", disse ele.

'Eles não estavam prontos para a independência'

Mas na Conferência de San Remo, o então primeiro-ministro britânico David Lloyd George, o ex-primeiro-ministro francês Alexandre Millerand, o primeiro-ministro italiano Francesco Nitti e o embaixador japonês Keishirō Matsui concordaram que nem toda a região estava pronta para a independência.

"Em San Remo, as conversas se concentraram especialmente nos mandatos dos territórios que a França e o Reino Unido já haviam dividido. Em particular, houve um longo debate que durou várias horas sobre o tema da Palestina e a Declaração de Balfour", disse Jean -Paul Chagnollaud.

Assinada em 2 de novembro de 1917, em plena Primeira Guerra Mundial, a Declaração Balfour era um documento no qual o governo britânico prometia ao povo judeu um "lar" na região da Palestina.

Os britânicos e os franceses planejavam dividir a região do Levante, também conhecida como Levante Mediterrâneo, de maneira sectária.

O Líbano foi concebido como um refúgio para os cristãos (especialmente os maronitas) e os drusos.

Capa do Le Petit Journal.

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A conferência de San Remo teve muito destaque na época, mas hoje foi ofuscada pelo Acordo Sykes-Picot

A Palestina seria o lar de uma comunidade judaica considerável, enquanto o Vale do Beca, próximo à fronteira entre o Líbano e a Síria, seria para os muçulmanos xiitas.

A Síria, por sua vez, seria para os muçulmanos sunitas.

Fronteiras feitas 'com lápis e régua'

Embora a geografia ajudasse a justificar em parte essas fronteiras, a maioria dos especialistas concorda que elas foram feitas basicamente "com um lápis e uma régua", sem um maior conhecimento da região, e que as linhas traçadas por franceses e britânicos não correspondiam às divisões sectárias, tribais ou étnicas do Oriente Médio.

Também houve divergências na Conferência de San Remo. O francês Alexandre Millerand e o britânico David Lloyd George não concordaram totalmente em alguns pontos.

"Os franceses apoiaram a inclusão da Declaração Balfour no mandato, mas também queriam que os direitos políticos do povo palestino fossem garantidos. Toda essa questão gerou muito debate", explica Chagnollaud.

Leo Amery em 1940.

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O político e jornalista britânico Leo Amery foi um dos responsáveis ​​pela redação da Declaração de Balfour

Antes havia dúvidas se haveria um único mandato britânico ou uma área controlada pelos americanos, mas após meses de discussões diplomáticas, os britânicos concordaram em incluir os franceses na reorganização do território.

O papel dos EUA

"Os britânicos aceitaram o mandato francês porque simplesmente perceberam que não tinham os meios financeiros para controlar todo o Oriente Médio", detalha Henry Laurens, professor de História Mundial Árabe Contemporânea no Collège de France e autor de um grande número de obras sobre a história europeia e otomana nos séculos 19 e 20.

Os americanos, por sua vez, se retiraram das negociações depois que seu Senado rejeitou o Tratado de Versalhes, que marcou o fim da Primeira Guerra Mundial.

A conferência também abordou a questão da Armênia e de como seriam suas fronteiras (os EUA haviam rejeitado a criação de um mandato para a Armênia). Também foram discutidas a possibilidade de um estado curdo e o destino final de certos territórios do Império Otomano.

Com o Tratado de Sèvres, assinado quatro meses depois, em agosto de 1920, os otomanos cederam oficialmente as áreas acordadas, aceitando a criação dos mandatos britânico e francês.

Foi mais um passo para a queda do Império Otomano e a criação da Turquia, que ocorreria três anos depois.

Foi em San Remo que as cláusulas desse tratado foram redigidas.

Três princípios da repartição

Inicialmente, o Acordo Sykes-Picot planejava dividir o Oriente Médio em Estados independentes, sujeitos a Londres e Paris, e estabelecer áreas de controle no Iraque.

Sykes e Picot

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Sykes e Picot não consideraram as diferenças étnicas, religiosas, linguísticas ou culturais, lançando assim as bases para os conflitos internos atuais

Mas esse plano foi abandonado com o surgimento em 1919 da ideia de criar mandatos.

Uma vez que isso fosse decidido, a única coisa que faltaria fazer era definir as fronteiras desses mandatos — saber onde terminava a Palestina e começava a Síria.

Em San Remo, as potências coloniais definiram três princípios para criar as fronteiras.

O primeiro defendia uma ligação entre a Palestina e a Bíblia. Lloyd George utilizou o Atlas da Geografia Histórica da Terra Santa, publicado em 1915 pelo reverendo escocês George Adam Smith, para definir os limites da região.

"Um segundo princípio era que os franceses não queriam que seu mandato tivesse colônias judaicas", explica Henry Laurens, do Collège de France.

"É assim que o pequeno território entre a Síria e o Líbano, chamado Galileia, acabou sendo incluído no mandato britânico da Palestina e não no mandato francês da Síria, porque ali havia assentamentos judeus", diz o especialista em mundo árabe.

E, finalmente, o Reino Unido queria que houvesse continuidade territorial entre seus mandatos palestino e iraquiano.

"Isso explica o tipo de corredor que vemos hoje que vai da Jordânia ao Iraque, se virmos em um mapa, o que significa que a Síria não tem uma fronteira comum com a Arábia Saudita", diz Laurens.

'Paris e Londres desenharam o mapa e os árabes o coloriram'

Para Henry Laurens, os franceses e os britânicos definiram as fronteiras, mas foram as elites locais que se encarregaram de tomar o poder.

"A imagem que costumo usar é a de que franceses e ingleses desenharam o mapa e os árabes coloriram", diz.

"É por isso que as fronteiras que foram estabelecidas nos anos 20 do século passado perduram até hoje: as elites políticas de Jerusalém assumiram o controle da Palestina, as elites políticas de Beirute assumiram o controle do Líbano, as de Damasco assumiram o controle da Síria, e Bagdá assumiu o controle do Iraque. "

Mas isso, segundo o historiador, não foi feito em um dia, mas sim ao longo de várias décadas.

Hoje essas fronteiras são frequentemente usadas como exemplo dos "grandes males do Ocidente" na região, mas Laurens ressalta que ninguém realmente as questionou e "os locais as adotaram muito rapidamente".

Líderes europeus e da Liga das Nações reunidos em San Remo, 17 de abril de 1920.

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Representantes da Europa e da Liga das Nações reunidos em San Remo em abril de 1920.

"Desde muito cedo, quem emigrava de outras regiões era considerado estrangeiro. Já na década de 1930, um sírio nascido no Iraque era tratado como estrangeiro. E quando refugiados palestinos chegaram à Síria, Líbano ou Jordânia em 1948, eles também foram tratados como estrangeiros. "

"Isso mostra que apenas um quarto de século após a definição das fronteiras, elas existiam de verdade e haviam sido internalizadas."

A outra conferência de San Remo

Ao mesmo tempo, naquela semana, uma segunda conferência sobre a distribuição de recursos petrolíferos foi realizada em San Remo.

A grande demanda por energia durante a guerra mostrou às grandes potências que era importante que elas tivessem suas próprias fontes de petróleo.

Laurens lembra que, ao oficializar os mandatos, franceses e britânicos também realizaram conversas sobre o destino do "ouro negro" da região, algo que haviam começado a negociar no início de 1919.

Sede total em La Défense

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A Total é hoje uma das maiores petroleiras do mundo, mas poucos sabem que seu nascimento foi impulsionado pelas decisões tomadas na Conferência de San Remo

Conforme acordado, a França receberia um quarto do capital da Turkish Petroleum Company, que mais tarde se tornaria a Iraq Petroleum Company.

"Depois o percentual foi reduzido por motivos técnicos, mas a verdade é que esta distribuição do petróleo teve consequências tremendas. Uma delas é que deu origem à Compagnie française des pétroles (CFP) que hoje se chama Total."

Alguns ganharam, a maioria perdeu

Jean-Paul Chagnollaud, da Universidade de Cergy-Pontoise, diz que alguns na região ficaram satisfeitos com a cisão.

"Os libaneses ficaram, em sua maior parte, felizes com seu mandato, embora isso lhes tenha causado muita dor e sofrimento."

"Os israelenses também ficaram muito felizes com a Declaração de Balfour e o estabelecimento de uma 'casa nacional' na Palestina. Acho que eles foram, de fato, os grandes vencedores."

No entanto, o especialista ressalta que em outros lugares as divisões arbitrárias causaram "muitos problemas".

Após a fundação de Israel, em 14 de maio de 1948, a tensão mudou de uma questão local para uma questão regional. Para os palestinos, começou a chamada Nakba ("destruição" ou "catástrofe"). E a violência entre os palestinos, que continuam reivindicando seu Estado, e os israelenses continua até hoje.

Enquanto isso, no Iraque persiste uma luta entre os xiitas, que são a maioria, os sunitas — aos quais o ex-presidente Saddam Hussein pertencia — e os curdos, que exigem uma nação independente.

A Síria de hoje, que pertencia ao mandato francês, é composta por uma maioria sunita, seguida por minorias alauitas — às quais pertence a família governante de Assad — mas também é habitada por comunidades cristãs, drusas e judaicas.

Em 2011, os sírios começaram — inspirados pela Primavera Árabe — um levante pacífico contra o presidente Bashar al-Assad que rapidamente tomou uma guinada violenta e terminou em uma guerra civil brutal e sangrenta que arrastou potências regionais e internacionais.

101 anos depois, as consequências da Conferência de San Remo (e a subsequente divisão do Oriente Médio) são vistas em toda parte no que se tornou uma das regiões mais tumultuadas do mundo.

  • Norberto Paredes -
  • BBC News Mundo
Professor Edgar Bom Jardim - PE

domingo, 25 de abril de 2021

Os 500 anos do inquérito de Lutero, que abriu o mundo ocidental para a liberdade de pensamento

Gravura que representa Lutero na Dieta de Worms, final do século 16

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Lutero na Dieta de Worms, uma assembleia oficial do Sacro Império Romano Germânico, que marcou ruptura com o catolicismo

Questionar a autoridade papal era crime gravíssimo na Europa daqueles tempos. Propor mudanças na tradicional estrutura da poderosa Igreja Católica consistia em se expor ao risco de um julgamento impiedoso. O religioso Jan Huss (1369-1415) foi tachado de herege e acabou queimado vivo em praça pública.

Por pouco não teve o mesmo destino o monge agostiniano germânico Martinho Lutero (1483-1546). Doutor em teologia, ele era um respeitado professor na Universidade de Wittenberg quando propôs um debate acadêmico que acabaria mudando para sempre a história do cristianismo ocidental — e, consequentemente, abrindo brechas para o direito ao livre-pensamento.

Em 31 de outubro de 1517, ele afixou suas 95 teses na porta da Igreja do Castelo de Wittenberg. Repleto de críticas ao modo como o catolicismo vinha sendo praticado, a publicação provocou reações entre intelectuais, religiosos e autoridades da época.

Três anos mais tarde, em 15 de junho de 1520, o puxão de orelhas no monge germânico veio em forma de bula papal. Em Exsurge Domine, o papa Leão 10° (1475-1521) ameaçou Lutero de excomunhão caso não se retratasse em 70 dias. O germânico não aceitou — e ainda queimou o documento do sumo pontífice.

Em 3 de janeiro de 1521, Leão 5° excomungou Lutero. Esse contexto todo trouxe as ideias do agostiniano para o centro da chamada Dieta de Worms, uma assembleia oficial do Sacro Império Romano Germânico, com funções de órgão deliberativo, que se reuniu entre 28 de janeiro a 26 de maio de 1521, presidida pelo imperador Carlos 5° (1500-1558).


"Decidiu-se que Lutero deveria participar da dieta porque havia uma mistura política e religiosa de suas questões em um contexto de nascimento dos estados nacionais. Eram mudanças religiosas, da piedade cristã, com um sentimento protonacionalista dos estados alemães, que se sentiam explorados por Roma", pontua a historiadora Jaquelini de Souza, professora na Universidade Regional do Cariri e pesquisadora nas Faculdades EST (antiga Escola Superior de Teologia), instituição da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil. "[Do ponto de vista político] era extremamente importante que Lutero se retratasse e, portanto, quebrasse qualquer tipo de argumento de que havia um abuso econômico contra os principados alemães."

"[A Dieta de Worms] não foi convocada única e exclusivamente para ouvir Martinho Lutero. [Mas o caso] foi incorporado na agenda da assembleia a pedido do príncipe Frederico. A convocação de Lutero foi um desdobramento de seus escritos críticos à Igreja de Roma", contextualiza a pastora luterana Romi Bencke, secretária-geral do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (Conic).

"Antes da Dieta de Worms já haviam ocorrido outros momentos de grande tensão, como a disputa de Leipzig, em 1519, que reacendeu o processo contra Lutero por parte da igreja romana", completa ela. "A expectativa era que ao se convocar Lutero [para Worms] se conseguisse encontrar uma mediação para o conflito e os tumultos que estavam ocorrendo em território alemão."

Chamado então para prestar contas, Lutero chegou a Worms em 16 de abril. Sob risco de ser perseguido no trajeto ou mesmo na reunião, portava um salvo-conduto expedido pelo imperador.

No dia seguinte, às 16h, há exatos 500 anos, apresentou-se à assembleia, conduzido por dois oficiais do império. Antes, ele foi advertido que só deveria se manifestar em resposta aos questionamentos, nada além disso. O presidente da sessão perguntou se ele reconhecia a autoria dos livros a ele atribuídos e se renunciava às suas heresias. Foram lidos os nomes de 25 obras.

Martinho Lutero, em pintura do século 16

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Lutero propôs debate acadêmico que acabaria mudando para sempre a história do cristianismo ocidental — e, consequentemente, abrindo brechas para o direito ao livre-pensamento

Lutero não respondeu. Preferiu pedir mais tempo. Queria pensar numa resposta mais precisa, talvez ciente de que estava protagonizando um momento histórico. Seu pedido foi aceito e ele recebeu a ordem para retornar à assembleia no dia seguinte, 18 de abril, no mesmo horário.

As respostas de Lutero

Sobre as obras, o monge agostiniano reconheceu a autoria de todas, embora as tenha dividido em três grupos distintos. Afirmou primeiro que aquelas que eram bem-recebidas até por seus adversários não tinham de ser rejeitadas. Sobre as que criticavam os abusos do cristianismo e do papado, ressaltou que rejeitá-las seria encorajar a continuidade de tais desvios. Por fim, disse que, sobre as que atacavam indivíduos, ele se desculparia pela eventual dureza de suas palavras, mas não rejeitaria a substância delas — condicionando que poderia renegá-las caso lhe mostrassem erros baseados nas Sagradas Escrituras.

Mas as frases que entrariam para a história foram as que ele disse para responder se renunciaria às heresias. "A não ser que eu esteja convencido pelo testemunho das Escrituras ou pela razão clara, sou limitado pelas Escrituras que citei e minha consciência é cativa à palavra de Deus. Não posso e não irei me retratar de nada, uma vez que não é nem seguro nem correto agir contra a consciência. Esta é minha posição."

"Ele reconheceu que as publicações eram realmente dele e se negou a revogar seus escritos pois, segundo ele, sua teologia não era incoerente com o Evangelho", explica Bencke. "Em função disso, Carlos 5° declarou Lutero inimigo da cristandade."

"Lutero se manteve firme em sua postura de não se retratar e sua fala acabou se tornando uma das mais belas passagens da história do cristianismo", define Souza.

"Sua resposta foi icônica. Ao dizer que não é bom alguém agir contra a própria consciência, sua declaração marcou época. Futuramente, um dos primeiros direitos individuais passa a ser o direito de crença, de consciência", enfatiza o teólogo e historiador Sérgio Ribeiro Santos, coordenador do curso de História na Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Diante disso, o veredicto foi que Martinho Lutero deveria ser tratado como herege. Enquanto se determinava qual seria o seu destino, o monge fugiu. Seu salvo-conduto, em tese, deveria protegê-lo na viagem de volta, mas àquela altura era muito provável que ele fosse preso e punido.

Foi salvo porque tinha um protetor: o príncipe eleito da Saxônia, Frederico 3° (1483-1525), mandou capturá-lo e passou a abrigá-lo como hóspede no castelo de Wartburg. A favor, contava o bom relacionamento que o príncipe tinha com o papa.

Imperador Carlos 5° em pintura do século 16

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Imperador Carlos 5° declarou Lutero inimigo da cristandade

Nesse período Lutero teria realizado a tradução da bíblia para a língua alemã — um marco fundamental na ideia de que todos, e não só uma casta privilegiada, deveriam ter acesso aos textos religiosos.

Conforme atenta o historiador Santos, esse apoio de setores aristocráticos germânicos foi o que possibilitou que o destino de Lutero não tivesse sido a fogueira como seus antecessores."Ideias de reforma já haviam sido antes debatidas, mas ainda não havia uma adesão inclusive política para dar força a esse movimento religioso", afirma. "Lutero, quando fez isso, teve apoio de príncipes. E a cisão desses príncipes com Roma, por motivações políticas. Isso fortalece o movimento de reforma."

Desdobramentos

A importância histórica desse evento ocorrido cinco séculos atrás está na reorganização do cristianismo ocidental a partir de Lutero — e, consequentemente, das transformações das próprias sociedades.

"Ele [Lutero] não foi a primeira pessoa que se levantou contra o poder papal e contra os poderes imperiais [do Sacro Império Romano Germânico]. Mas, sem dúvida nenhuma, as consequências [de seu movimento] ocorreram de forma nunca antes vistas para a cristandade ocidental, porque daí de fato começa um desenrolar político, econômico e religioso", comenta Souza.

"Nasceu uma nova divisão para a cristandade ocidental, com a necessidade de se trabalharem questões sobre liberdade religiosa, já que Lutero defendia que não era bom - nem são - ir contra a consciência. Questões sobre a ideia de liberdade de expressão, de resistência ao Estado, tudo isso será desdobramento daquilo que aconteceu em Worms", completa a historiadora. "Claro que não podemos dizer que há um lado do mocinho e um lado do vilão."

Se o movimento possibilitou o nascimento de uma série de outras igrejas, quebrando uma espécie de monopólio ocidental da fé, antes da Igreja Católica, o próprio catolicismo também foi obrigado a se transformar.

Foi em resposta à reforma protestante que o papa Paulo 3° (1468-1549) convocou uma assembleia, o chamado Concílio de Trento. De dezembro de 1545 a dezembro de 1563 diversos ajustes foram propostos dentro da doutrina católica para garantir uma unidade da fé e, ao mesmo tempo, reforçar a necessidade de mais disciplina eclesiástica.

"As transformações foram uma via de mão-dupla", define Souza.

Pesquisadora de história do catolicismo na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, a vaticanista Mirticeli Medeiros afirma que foi depois de Worms que a Igreja Católica "levou a sério um projeto de reforma", já que, "anos antes, a necessidade de mexer nas estruturas da instituição tinha sido negligenciada pelas autoridades católicas".

Frederico 3°, príncipe da Saxônia, em pintura do século 16

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Lutero foi salvo porque tinha um protetor: o príncipe da Saxônia, Frederico 3°, mandou capturá-lo e passou a abrigá-lo como hóspede no castelo de Wartburg

A historiadora Souza explica que Lutero não pretendia fundar uma nova religião, nem abandonar o catolicismo. "Quando ele publicou suas 95 teses, eles chamava para um debate acadêmico, queria conversar com seus pares sobre uma prática que ele considerava abusiva: seu objetivo era combater [a venda de] indulgências", diz ela.

"Quando ele fala em reforma, ele está se referindo ao curso de teologia de sua universidade, porque ele acreditava que reformando-se a teologia, seria reformado o clero, e reformando o clero, seria reformada a piedade do povo", prossegue a historiadora. "Ou seja, ele olhava numa perspectiva de melhoramento. Não pensava, não passava de forma alguma pela sua cabeça, em momento algum, romper com a Igreja católica. Ele buscava o melhoramento da teologia e, portanto, da piedade cristã."

Cristianismo não católico

Mesmo que ele não pretendesse fundar uma nova igreja, o movimento acabou desencadeando para isso. Mas essa cristalização, essa institucionalização, só começaria a ocorrer uma década mais tarde. "A ideia de uma igreja luterana surgiu mais ao fim da vida de Lutero. Mas ele próprio não aceitava a ideia de uma igreja com seu nome", afirma Santos.

Mas mais do que dar origem a um segmento cristão com cerca de 80 milhões de praticantes atualmente no mundo, esse movimento permitiu a criação de todas as igrejas cristãs não católicas do mundo ocidental.

"Obviamente que o que Lutero fez deu liberdade para qualquer um fazer", comenta Souza. "Se o sujeito questiona o papa, ele também dá liberdade para outros o questionarem. Nesse sentido, as igrejas de hoje são herdeiras de Lutero."

Por outro lado, ela ressalta que as identidades são muito variadas, dentro do espectro das religiões cristãs. A partir do século 16, uma sucessão de movimentos religiosos passou a ocorrer em diversas partes do Ocidente, com a criação de diversas denominações, com suas próprias teologias e suas próprias maneiras de viver a religiosidade.

"Lutero teve papel importante no processo de estruturação do protestantismo", frisa a pastora Bencke. "No entanto, não compreendo que todas as igrejas protestantes sejam herdeiras do movimento iniciado por ele. O protestantismo já nasceu plural."

Lutero na Dieta de Worms

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Movimento de Lutero permitiu a criação de todas as igrejas cristãs não católicas do mundo ocidental.

A historiadora Souza explica que, ao olhar para o cenário evangélico do Brasil de hoje, a divisão clássica consiste em encarar parte das igrejas como de raízes de migração e missionária, e parte como pentecostalistas.

No primeiro grupo estão o luteranismo — trazido ao Brasil por meio dos imigrantes alemães — e igrejas como a presbiteriana e a metodista — fundadas por missionários estrangeiros. Já as igrejas pentecostais podem ser classificadas em ondas. "Na primeira, a grande ênfase era o falar em línguas [manifestação bíblica do Espírito Santo]. Na segunda, as curas [milagrosas]. E a terceira onda vem com a teologia da prosperidade", contextualiza a historiadora Souza.

"Não tem nada a ver com Lutero essa teologia da prosperidade. Ele combateria isso firmemente", comenta ela. "No evangelicalismo do Brasil [contemporâneo], muitos acusam luteranos de serem liberais, não no sentido econômico ou da teologia, mas do sentido de serem 'frouxos', de não serem tão rígidos, em questões morais. [O luterano] trata essas questões de forma mais leve."

Se 500 anos atrás foi um racha com a Igreja Católica que deu origem ao luteranismo, contudo, hoje há uma amistosidade entre as denominações. "Ao longo dos séculos, as trocas de farpas entre as duas confissões cristãs foram recíprocas", conta Medeiros. "A reaproximação começou a acontecer quando ambas as partes optaram por um processo de purificação da memória, focando mais nos pontos que as unem do que naqueles que as separam."

"Hoje em dia, evita-se a tendência de encontrar o culpado pela separação e prefere-se atribuir às duas partes a responsabilidade pelo ocorrido", complementa a vaticanista. "A reaproximação oficial, sem contar todo o processo de diálogo que começou a acontecer entre alguns grupos ecumênicos europeus, começou em 1967, quando se criou uma comissão bilateral para discutir as controvérsias doutrinais e teológicas que impediam essa reaproximação."

Vários encontros foram promovidos nas décadas seguintes até que, em 1993, as duas instituições redigiram uma declaração conjunta, ratificada seis anos mais tarde. "Foi um marco porque, além de ser um acordo oficial de comunhão, superou uma das questões que mais contribuíram com o cisma do passado. Para se ter uma ideia, afirmou-se, por meio do acordo, que não fazia mais sentido hoje as condenações recíprocas feitas no passado", diz Medeiros. "Foi uma virada de página mesmo. O diálogo entre católicos e luteranos já é visto como um dos pontos que mais têm gerado resultado dentro do movimento ecumênico, para se ter uma ideia."

Ela recorda a visita que o hoje papa emérito Bento 16 realizou à Alemanha em 2011, ainda durante seu pontificado. "Ele disse algo que sinaliza bem em que pé está esse diálogo. Ao comentar as intenções de Lutero no século 16, [Bento 16] acabou revolucionando o magistério papal em relação à questão ao afirmar que, por trás das inquietações do reformador alemão estava uma profunda experiência com a misericórdia de Deus", pontua a vaticanista. "Não dá para imaginar um papa no século 18 ou 19 fazendo um elogio desses à pessoa que, durante anos, foi vista como pivô do cisma ocidental."

  • Edison Veiga
  • De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil
Professor Edgar Bom Jardim - PE