domingo, 25 de agosto de 2019

Amazônia é 'bem comum', dizem brasilianistas


Floresta AmazônicaDireito de imagemREUTERS
Image captionA Amazônia é do mundo ou dos brasileiros?
A forma como o governo de Jair Bolsonaro vem lidando com o meio ambiente dá munição à tese de que a Amazônia não é do Brasil, mas "um bem comum" da comunidade internacional, dizem brasilianistas ouvidos pela BBC News Brasil.
Segundo eles, essa percepção não é nova, mas acaba reforçada quando o presidente brasileiro decide colocar em xeque os dados do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) ou culpa ONGs de estarem por trás do desmatamento, em vez de "assumir seus erros e confrontar o problema".
Os especialistas ressalvaram, contudo, que a soberania brasileira sobre a Amazônia deve ser respeitada. Criticaram, ainda, a postura dos países ricos, cujo desenvolvimento foi atrelado à poluição do meio ambiente.
O termo "bem comum" foi usado pelo presidente francês Emmanuel Macron neste sábado durante um pronunciamento para lançar o início da cúpula do G7 (o grupo das maiores economias do mundo), que acontece até segunda-feira em Biarritz, na França. As queimadas na Amazônia foram incluídas na pauta de discussões.
"A Amazônia é nosso bem comum. Estamos todos envolvidos, e a França está provavelmente mais do que outros que estarão nessa mesa (do G7), porque nós somos amazonenses. A Guiana Francesa está na Amazônia", afirmou Macron
O jornal francês Le Monde, um dos mais importantes do mundo, também recorreu ao mesmo termo usado por Macron em editorial intitulado "Amazônia, bem comum universal".
Na sexta-feira, Bolsonaro prometeu "tolerância zero" com o crime ambiental e disponibilizou as Forças Armadas para combater os incêndios.
Segundo Anthony Pereira, diretor do Brazil Institute da Universidade King's College, em Londres, no Reino Unido, "a maneira como o governo brasileiro vem lidando com as questões ambientais ligou os alertas em todo o mundo".
"As ações do governo acabam alimentando essa tese de que a comunidade internacional deveria cuidar da Amazônia. Quando o Bolsonaro demite o diretor-geral do Inpe ou culpa as ONGs pelas queimadas, mobiliza a opinião pública internacional", diz ele à BBC News Brasil.
"Mas isso não pode servir de desculpa para violar a soberania do Brasil sobre este território. A Amazônia é brasileira", acrescenta.
Pereira lembra que não há uma "grande diferença" entre a comunidade internacional e a opinião pública no Brasil.
"Talvez os estrangeiros ignorem o fato de que a imensa maioria dos brasileiros, incluindo os eleitores de Bolsonaro, seja contrária às queimadas na Amazônia", diz.
"Entendo a preocupação internacional sobre a necessidade de o Brasil enfrentar esses incêndios, pois a floresta é importante para a regulação do clima global, mas o governo brasileiro tem capacidade para enfrentar este problema sozinho", acrescenta.
Reprodução do editoral do jornal francês Le MondeDireito de imagemREPRODUÇÃO/LE MONDE
Image captionEditoral do jornal francês Le Monde diz que a Amazônia é "bem comum universal"
Uma pesquisa Ibope divulgada nesta semana revelou que a ampla maioria da população brasileira, incluindo eleitores de Jair Bolsonaro no segundo turno das eleições presidenciais de 2018, defende um aumento do combate ao desmatamento ilegal da Floresta Amazônica. A enquete foi realizada em parceria com a plataforma de campanhas Avaaz.
Questionados sobre se "o presidente Jair Bolsonaro e o Governo Federal devem aumentar as medidas de fiscalização para impedir o desmatamento ilegal na Amazônia", 96% dos entrevistados responderam que concordam total ou parcialmente.
Emmanuel MacronDireito de imagemAFP
Image captionPresidente da França, Emannuel Macron ameaçou deixar acordo União Europeia-Mercosul

'Arrogância'

Christopher Sabatini, especialista em América Latina no think tank de relações internacionais Chatham House, em Londres, no Reino Unido, concorda.
"Bolsonaro caiu na armadilha que ele mesmo criou. As decisões de seu governo no tocante ao meio ambiente vêm recebendo muitas críticas. Além disso, a forma como ele reagiu a essas críticas é muito preocupante. Toda essa situação (no G7) poderia ter sido evitada se ele tivesse tido uma reação mais controlada".
Sabatini critica, por outro lado, o que chamou de "arrogância" dos países mais ricos ao discutir a Amazônia na cúpula do G7. Reforçou ainda que a soberania do Brasil sobre a Amazônia não deveria ser questionada.
"A China é uma das maiores poluidores do mundo, mas ninguém pensa em puni-la por causa de sua política energética. Tampouco ninguém está pensando em punir os Estados Unidos porque o país saiu do Acordo de Paris. Este é o outro lado da equação do clima. Mas é importante", ressalva.
"Os países que, em seu processo de desenvolvimento, contribuíram com as emissões de gás carbônico agora querem proteger a Amazônia. Eles poluíram nos últimos dois séculos. É uma visão colonialista", conclui.
Uma fonte do governo brasileiro ouvida pela BBC News Brasil afirmou que, embora Bolsonaro tenha demorado em responder à crise gerada pelas queimadas na Amazônia, Macron fez "uma bela jogada de marketing ao encontrar um tema de consenso, a proteção da floresta, em uma cúpula esvaziada por divergências".
Neste sábado, o premiê do Reino Unido, Boris Johnson, sugeriu que Macron esteja usando a preocupação sobre as queimadas na Amazônia como uma "desculpa" para interferir com o livre comércio. No dia anterior, o presidente francês havia dito que Bolsonaro mentiu sobre a Amazônia e ameaçou deixar o acordo de livre comércio recentemente assinado entre Mercosul e União Europeia.
Pereira, do King's College, lembra ainda que a tese de que a Amazônia "pertence ao mundo" não é nova.
"No livro a Diplomacia na Construção do Brasil 1750-2016, o ex-embaixador Rubens Ricupero escreve sobre o conflito entre Brasil, de um lado, e Estados Unidos, França e Reino Unido, do outro, sobre o acesso ao rio Amazonas nas décadas de 1850 e 1860. Não estou certo de que a expressão foi usada naquela época, mas essas três potências argumentavam que, sob o espírito do livre comércio e do liberalismo, suas embarcações deveriam ter o direito de navegar pelo rio. O governo brasileiro finalmente abriu o Rio à navegação internacional em 1866", conclui.
Professor Edgar Bom Jardim - PE

sexta-feira, 23 de agosto de 2019

Mundo: o mistério das centenas de ossadas humanas em lago gelado do Himalaia

Ossos no lago Roopkund, no HimalaiaDireito de imagemHIMADRI SINHA ROY/NATURE COMMUNICATIONS
Image captionOs ossos de centenas de pessoas foram encontrados em 1942 por um guarda florestal
O aparecimento de ossos de centenas de pessoas em um lago na Cordilheira do Himalaia tem sido há décadas alvo de inúmeras teorias.
Seriam os restos mortais de um exército? Viajantes surpreendidos por uma tempestade? Peregrinos punidos por uma deusa?
Um novo estudo afasta quase todas as hipóteses existentes, mas, em vez de esclarecer o mistério, o complica ainda mais.
O Lago Roopkund, conhecido popularmente como Lago dos Esqueletos, fica 5.029 metros acima do nível do mar, no Estado de Uttarakhand, na Índia. É um pequeno corpo d'água de 40 metros de diâmetro localizado na rota do festival de peregrinos Nanda Devi Raj Jat, realizado a cada 12 anos.
Em 1942, um guarda florestal que trabalhava na área fez uma descoberta macabra: o degelo havia exposto os ossos de 500 a 600 pessoas.


Explicações para as causas das mortes e como os ossos chegaram a um lugar tão remoto se multiplicaram desde então.
Foi dito que eram soldados japoneses invasores. Um exército indiano retornando da guerra. Um rei e uma rainha com seu cortejo que, em sua celebração, irritaram a deusa da montanha Nanda Devi e foram fulminados por ela. Ou viajantes que ficaram presos por uma tempestade de granizo por volta do século 9.
Uma equipe internacional formada por arqueólogos, geneticistas e outros especialistas da Índia, dos Estados Unidos e da Europa assumiu a tarefa de desvendar o mistério e publicou nesta semana suas descobertas na revista científica Nature Communications.

Pesquisa identificou que há ossos de três grupos diferentes no local

Lago Roopkund, no HimalaiaDireito de imagemATISH WAGHWASE/NATURE COMMUNICATIONS
Image captionO lago glacial Roopkund está a mais de 5 mil metros acima do nível do mar
Até agora, os esqueletos não haviam sido submetidos a um exame tão abrangente devido à sua localização - avalanches ou deslizamentos ocorrem com frequência na área.
Peregrinos e curiosos que passam por ali às vezes manipulam os restos mortais.
Do ponto de vista científico, a única vantagem de estarem ali é o ambiente frio, que preserva não apenas os ossos, mas também o DNA neles e até mesmo em alguns restos de roupas e carne.
Os pesquisadores dataram e analisaram os ossos de 38 pessoas e determinaram que a maioria morreu há cerca de mil anos, mas não simultaneamente - algumas haviam morrido mais recentemente, no início do século 19.
Mapa da área do Lago RoopkundDireito de imagemNATURE COMMUNICATIONS
Image captionO lago está na rota do festival de peregrinos Nanda Devi Raj Jat
Os autores separaram as ossadas em três grupos, de acordo com sua origem: um formado por 23 indivíduos do sul da Ásia, outro composto por 14 indivíduos com ligações ao Mediterrâneo oriental, especificamente Grécia e Creta, e um indivíduo do Sudeste Asiático.
Todos os restos do sul da Ásia datam de cerca do ano 800, embora não tenham chegado ali ao mesmo tempo. Os ossos de origem mediterrânea indicam que estas pessoas eram do início do século 19, assim como a pessoa do sudeste da Ásia.
A equipe também encontrou diferenças entre o perfil alimentar dos dois primeiros grupos. O estudo indica que os indivíduos eram saudáveis ​​em geral.
Alguns eram robustos e altos e outros, menores - o que confirma que os restos são de pelo menos dois grupos distintos.
A equipe não detectou parentesco (de terceiro grau ou mais próximo) entre os indivíduos, o que também descarta a versão de que os esqueletos pertenciam a grupos familiares.
Assim, os resultados refutam as teorias anteriores de que a origem dos esqueletos se deve a um único evento catastrófico.

O que aconteceu então?

Montanha Nanda Devi, no HimalayaDireito de imagemGETTY IMAGES
Image captionO estudo lança uma luz sobre a origem dos ossos nas proximidades do Lago Roopkund, mas não esclarece o mistério
A análise do DNA revelou uma proporção equilibrada entre homens e mulheres, um fato difícil de conciliar com a teoria de que esses indivíduos poderiam fazer parte de uma expedição militar.
"Também não achamos evidências de que estavam infectados com patógenos bacterianos, então, a teoria de que morreram de uma epidemia não se sustentaria, embora que não encontrar evidências de DNA patogênico em ossos grandes pode simplesmente significar que sua concentração é muito baixa para ser detectada", escrevem os autores.
Os pesquisadores não conseguiram dar uma resposta clara para a origem dos ossos. Em seu estudo, apontam que a hipótese de morte em massa durante um festival de peregrinação é viável, pelo menos para os indivíduos do sul da Ásia.
Nanda Devi, montanha no Estado de Uttarakhand, ÍndiaDireito de imagemREUTERS
Image captionNa área onde o lago está, deslizamentos de rochas ou avalanches são frequentes
"Mas o segundo grupo é mais perturbador. É tentador teorizar que eles vêm de populações indo-gregas da linhagem de Alexandre, o Grande. No entanto, isso é improvável, já que tal grupo deveria ter uma mistura mais típica do sul da Ásia", dizem os cientistas.
Como os indivíduos deste grupo morreram em séculos mais recentes, argumentam os autores do estudo, seria interessante para futuras pesquisas analisar os arquivos da época para determinar se houve relatos de grandes grupos de viajantes estrangeiros mortos na região.
De qualquer forma, saber que os ossos vieram de lugares inesperados ou desmantelar teorias anteriores não resolve o mistério fundamental: como os restos mortais de centenas de pessoas foram parar em um remoto lago de montanha na Índia?

BBC
Professor Edgar Bom Jardim - PE

Queimadas sempre ocorreram, mas nunca incentivadas por discurso de um presidente, diz Marina Silva



Marina SilvaDireito de imagemJUAN BARRETO/AFP/GETTY IMAGES
Image captionGoverno Bolsonaro criou condições para queimadas descontroladas na Amazônia, diz Marina Silva
Em uma rápida avaliação da gestão de Ricardo Salles a frente do Ministério do Meio Ambiente, a ex-ocupante do cargo Marina Silva é sucinta: "ele cometeu todos os erros".
O principal deles, diz, ocorreu bem no começo, quando Salles aceitou o convite do presidente Jair Bolsonaro para comandar a pasta.
"O segundo erro foi ter aceitado a tarefa de destruir a governança ambiental brasileira", disse Marina, que assumiu o ministério por cinco anos, durante os mandatos de Lula, e foi adversária de Bolsonaro nas eleições presidenciais de 2018.
Em entrevista a BBC News Brasil, Marina falou sobre as queimadas que vêm devastando a região amazônica nas últimas duas semanas e da responsabilidade do atual governo sobre esse cenário.
Segundo a ex-ministra, incêndios sempre ocorreram, mas nunca incentivados pelo discurso de um presidente. Para ela, de todos as gestões que já estiveram à frente do Brasil, incluindo na ditadura militar, esta será a única que não deixará uma contribução à conservação da floresta, mas poderá levar à sua "destruição total".
Contra as acusações de que estaria sumida do debate público, convida os críticos a olharem sua agenda e diz que a atual crise ambiental do Brasil lhe causa "muita tristeza e indignação".
"Para quem trabalhou e conseguiu, por políticas públicas, uma redução de 83% de desmatamento durante dez anos é muito triste ver tudo isso virando cinzas", diz.
Leia os principais trechos da entrevista abaixo.
BBC News Brasil  A senhora publicou um artigo recentemente chamando de "holocausto" a onda de incêndios que atinge a Amazônia. A partir de sua experiência como moradora da floresta, ativista e ministra do Meio Ambiente, qual é a proporção da destruição que vemos hoje em comparação a outros momentos históricos? Por que ela é tão preocupante?
Marina Silva – Primeiro, é a maior quantidade de focos de queimadas na Amazônia desde que se tem monitoramento por satélite. Segundo, 70% dos focos de queimadas que temos hoje no Brasil estão na Amazônia. De cada três focos de queimada em um país da dimensão territorial do Brasil, dois estão na Amazônia.
Terceiro, a perda da biodiversidade, a destruição da floresta e a vulnerabilidade em que ficam as populações locais. E também saber que boa parte desses incêndios são em terras públicas que foram invadidas ilegalmente em função da mensagem totalmente desastrosa, inaceitável que o governo Bolsonaro passou.
Homem diante de fogo na AmazôniaDireito de imagemREUTERS
Image captionAmazônia é o bioma mais afetado por incêndios florestais neste ano, diz Inpe
Ganharam o governo enfraquecendo as ações de fiscalização, os órgãos de controle, dizendo que iam acabar com o Ministério do Meio Ambiente, com a indústria das multas. Criaram toda uma situação para favorecer o que está acontecendo hoje.
Então, para quem trabalhou e conseguiu, por políticas públicas, uma redução de 83% de desmatamento durante dez anos é muito triste ver tudo isso virando cinzas. Virando cinzas a floresta, a biodiversidade, a governança ambiental, as equipes e ainda ver o governo acusando aqueles que a vida toda lutaram para proteger a Amazônia.
BBC News Brasil  É por isso que a senhora usa uma palavra tão forte como holocausto?
Marina Silva – É porque a palavra 'holocausto' significa a destruição avassaladora de algo. E, neste momento, o que eu alerto é que não podemos deixar a tragédia se repetir. No artigo (publicado pelo El País Brasil), eu digo exatamente isso: os sinais estão sendo dados fortemente. Se nada for feito, a gente pode ter uma destruição total. Foi isso que aconteceu com o holocausto dos judeus, não foi?
Sinais é o que não faltaram: os que se omitiram, os que se acovardaram, os que não levaram a sério. Quando aconteceu já não tinha mais o que fazer. Não podemos repetir a história. E neste momento, o sinal é muito forte. Ele está sendo dado na forma de 38 mil focos de incêndio, numa das formas mais perversas que pode existir.
Então, é preciso que se tomem todas as medidas. Nós, ex-ministros do Meio Ambiente, estamos, juntamente com alguns membros da sociedade civil, propondo ao Congresso que crie uma comissão especial para criar medidas de combate ao desmatamento e recuperar as políticas ambientais. E que seja composta ouvindo os especialistas, os gestores públicos, as comunidades locais, os índios, os empresários que têm compromisso com a agenda ambiental, porque não são todos que concordam com o que está acontecendo.
BBC News Brasil  Ao falar sobre os incêndios, o presidente Jair Bolsonaro disse, entre outras coisas, que ONGS estariam por trás das queimadas para "chamar atenção", porque "perderam a teta". Como avalia os pronunciamento do presidente sobre o assunto? E que impactos declarações como essas trazem?
Marina Silva – Elas só agravam o problema. Porque ninguém, em sã consciência, pode dar credibilidade a uma fala dessas.
Agrava o problema por que temos um governo que não tem noção do mal que está fazendo ao Brasil, do ponto de vista ambiental, social, econômico, das nossas relações diplomáticas, dos nosso acordos internacionais.
Esse tipo de declaração não é verossímil, não tem condição. A sensação que eu tenho é que o presidente parece inconscientemente incompetente sobre esses assuntos.
Exige competência você estar na Presidência da República, liderar processos e é preciso ter consciência das incompetências para se assessorar com quem pode lhe complementar.
Monóxido de carbono (10^18 moléculas/cm2), 21 de agosto
O ministro Salles é um antiambientalista. Ele é o operador da inconsciência da incompetência do Bolsonaro.
BBC News Brasil  A senhora anunciou pelo Twitter que a Rede vai entrar no STF com o pedido de impeachment do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Como avalia a gestão dele? E que erros o ministro cometeu até agora?
Marina Silva – Ele cometeu todos os erros. O principal erro foi ter aceitado a nomeação, não sendo um ambientalista. O segundo erro foi o de, não sendo um ambientalista, alguém que tem compromisso com o meio ambiente, ter aceitado a tarefa de destruir a governança ambiental brasileira.
Isso diz tudo. Ele desmontou o Serviço Florestal, a Secretaria de Mudanças Climáticas, a Agência Nacional de Águas. Ele desmoraliza a ação dos agentes públicos da área ambiental e do Inpe. É algo que não tem padrão.
E eu digo isso... não conheço o ministro. Estou me atendo a fatos, a resultados, e não tem como dizer diferente. Não dizer o que estou dizendo seria uma espécie de omissão ou conivência, porque é isso que está acontecendo.
BBC News Brasil  A senhora fez essa análise a partir do número de focos de incêndio registrados nas últimas semanas?
Marina Silva Exato. Incêndios sempre existiram, mas nunca foram incentivados e suscitados pelo governo, como um discurso público desde a campanha.
Por mais que houvesse governos mais refratários, uns fizeram mais, outros menos, e dentro de todos havia resistência , nunca ninguém fez uma apologia a desconstrução da gestão ambiental do Brasil.
BBC News Brasil  Opiniões se dividem sobre as origens e motivações dessas queimadas e algumas pessoas argumentam que 60% delas acontecem em propriedades particulares, o que limitaria as ações do Estado. A pergunta que se faz nessas discussões é a seguinte: é justo culpar o governo Bolsonaro pelos incêndios?
Marina Silva Se um prédio particular estiver pegando fogo, o governo não vai fazer absolutamente nada? Está queimando um prédio, totalmente particular, as pessoas que moram lá não são funcionárias do governo e ninguém vai socorrer porque é um prédio particular?
Aliás, as propriedades particulares [na Amazônia] têm 80% de reserva legal, é isso que diz a lei. A reserva legal, ainda que seja do proprietário, é de interesse público. E [segundo] os dados do Inpe, e de todos que fazem monitoramento do desmatamento, as maiores áreas desmatadas até agora são em terra pública, terras da União.
Se as propriedades privadas resolveram tocar fogo indiscriminadamente, seja em florestas seja em pastagens, com certeza foram estimuladas pelo discurso do governo, assegurando a eles que ficariam impunes. Foi o próprio presidente que prometeu acabar com a indústria da multa.
BBC News Brasil  Bolsonaro culpou ONGs pelas queimadas. Quem a senhora culpa pela situação calamitosa da floresta?
Marina Silva A acusação que o presidente fez às ONGs é injusta e não é verossímil. O que está acontecendo hoje de forma descontrolada é resultado da política antiambiental do governo. Foram eles que suscitaram, que estimularam esse tipo de atitude.
Desmatamento sempre existiu, queimadas sempre existiram, é um problema grave. Mas é a primeira vez que se tem uma situação fora de controle. É a maior quantidade de focos de calor vistos na Amazônia desde que é feito o monitoramento.
Isso tem uma explicação. Por que em todas as gestões, foi preciso trabalhar com pessoas tocando fogo para desidratar a floresta e depois derrubá-la para pecuária ou exploração de madeira. Isso sempre aconteceu, mas essa forma descontrolada [vista hoje] é em função da desativação das políticas de prevenção contra o desmatamento, do enfraquecimento dos órgãos de fiscalização e de desacreditar os dados de satélites, além de [o governo] sinalizar que iria regularizar as áreas ocupadas ilegalmente, diminuindo a reserva legal e acabando com ela.
O filho do presidente da República [Flávio Bolsonaro] apresentou um projeto, que depois teve que retirar por pressão do próprio agronegócio, porque criaria um problema [ao acabar com a reserva legal em propriedades rurais]. O agronegócio brasileiro não é todo essa desgraça que nós estamos vendo.
BBC News Brasil  Além deste governo, as gestões passadas, das quais a senhora participou, não teriam responsabilidade sobre a situação atual? Este é um argumento constante nos debates sobre o assunto.
Marina Silva – O desmatamento que já aconteceu, aconteceu. Mas o Ibama, pelo menos na minha gestão, recebeu um concurso público para aumentar seus quadros. Durante a minha gestão, ganhou um órgão auxiliar, o Instituto Chico Mendes, com o qual inclusive quiseram acabar.
Durante minha gestão, o Ibama criou o Serviço Florestal Brasileiro, que eles levaram para o Ministério da Agricultura. Todos os órgãos ambientais foram fortalecidos. Criamos 20 milhões de hectares de unidades de preservação, que eles estão querendo descriar, se já foram criados, ou reduzir. Tivemos uma política de aumentar as áreas das populações tradicionais: eram cinco milhões quando eu cheguei, quando saí eram dez milhões.
O que existe historicamente é que todos os governos, uns mais e outros menos, e até a ditadura militar, deixaram uma contribuição. É a primeira vez que você tem um ministro que entrou para desmontar.
Todos os outros ministros ficavam brigando por seus orçamentos, por seus quadros, para que sua agenda pudesse prosperar. É a primeira vez que você tem um governo que diz que vai acabar com o ministério, não acaba [com ele] do ponto de vista legal, mas acaba do ponto de vista prático. Disse que não ia sair do Acordo de Paris, porque teve pressão inclusive do agronegócio para não sair, e na prática já saiu, porque o que está acontecendo hoje faz com que o Brasil não consiga alcançar as metas com as quais nos comprometemos.
BBC News Brasil  Durante sua gestão no Meio Ambiente foi criado o plano de combate ao desmatamento da Amazônia e o Fundo Amazônia. Como a senhora se sentiu com o bloqueio dos recursos da Alemanha e da Noruega?
Marina Silva – [Senti] muita tristeza e indignação de ver o presidente da República fazendo uma provocação sem nenhum padrão, dizendo que o fundo, que era para apoiar atividades econômicas sustentáveis, comunidades e fortalecer a governança ambiental, iria ser usado, a partir de agora, para regularizar áreas invadidas e desmatadas ilegalmente. Isso é uma afronta.
Os doadores estavam satisfeitos com a gestão e com os resultados e queriam continuar o programa, mesmo sob um governo com o perfil do Bolsonaro, e eles [o governo] fizeram essa provocação. Primeiro, o ministro Salles tentou dizer que o Fundo tinha problemas, foi provado pelo BNDES que não tinha, e então partiram para outra situação. Como alguém vai doar dinheiro para regularizar áreas desmatadas ilegalmente, se o objetivo é manter a floresta de pé, para evitar emissão de CO2?
Aí o governo dispensa R$ 3 bilhões a fundo perdido, que estava indo muito bem, dispensa o trabalho do Inpe, tenta desmoralizá-lo, desqualificá-lo, e contrata uma empresa privada para oferecer aquilo que o Inpe faz há mais de 30 anos.
BBC News Brasil  Lideres ambientais alemães e noruegueses procuraram a senhora para falar sobre o bloqueio?
Marina Silva Tive uma conversa com o ex-ministro do Meio Ambiente [norueguês] Erik Solheim. Fomos nós dois que ajudamos a conceber e viabilizar o Fundo. [A conversa] foi no sentido de que se o governo não voltar atrás para manter o Fundo, com os objetivos para que foi criado, de proteção das populações locais, fortalecimento da governança ambiental, promoção de desenvolvimento sustentável, que se mantenha o Fundo em acesso direto das comunidades, do setor produtivo que tem projetos sustentáveis e dos governos estaduais. E ele está disposto a ajudar.
Chegando no Brasil, porque agora estou na Colômbia, vou pedir uma audiência com os ministros da Noruega e da Alemanha para pensarmos formas de, nesse contexto de crise ambiental e fiscal, não perdermos esses recursos, fazendo um movimento parecido ao que foi feito nos Estados Unidos. O Trump sinalizava uma coisa, mas as empresas e a sociedade faziam outras, se mantinham firmes. Então, tenho dialogado, sim, com essas pessoas para que a gente não perca esses recursos, porque imagina numa situação de crise você dispensar R$ 3 bilhões?
BBC News Brasil  Uma das críticas mais frequentes à senhora é sobre a sua ausência da arena política, o que diminuiria sua projeção no país e sua importância como voz contra o desmatamento. Por que a senhora "desaparece" da vida política por longos período de tempo?
Marina Silva Olhe, a melhor forma de responder essa pergunta é vendo minha agenda e tudo de que eu disponho para dar visibilidade ao meu trabalho nas minhas redes sociais.
Não tenho mandato, tenho um partido pequeno, e trabalho incansavelmente. Agora, não posso obrigar os meios de comunicação a me colocarem na mídia. Mas o fato de não mostrarem o que eu estou fazendo não significa que eu não estou fazendo. Se alguém estiver interessado em saber o que estou fazendo, é só ir nas minhas redes sociais. É só procurar minha agenda. (...)
BBC News Brasil  O Brasil teve uma redução significativa no desmatamento de 2004 a 2012, período que coincide com sua gestão no Ministério do Meio Ambiente. O que é que deu certo naquela época?
Marina Silva O que deu certo foi ter pessoas no Ministério do Meio Ambiente que eram comprometidos com a agenda ambiental. Eram pessoas que tinham compromisso ético, uma visão de quais eram os interesses estratégicos do Brasil numa agenda que a humanidade inteira está correndo atrás e um senso de responsabilidade com patrimônios ambientais do país.
Na minha equipe, tinha economista, geógrafo, biólogos, oceanógrafos, engenheiros, mas todos tinham compromisso com o meio ambiente e não estavam ali porque eram apadrinhados.
Deu certo, porque havia políticas estruturantes que foram feitas para o longo prazo. Não havia política pirotécnica. Fizemos 125 operações da Polícia Federal, colocamos 725 pessoas na cadeia, inclusive funcionários do Ibama. Nunca fiz pirotecnia com isso. Fizemos políticas de Estado, republicanas, com base nos princípios da legalidade, da impessoalidade e da transparência.
Professor Edgar Bom Jardim - PE