terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

'Pacote anticrime' de Sérgio Moro: por que alguns advogados e juristas questionam a proposta


O objetivo é endurecer o combate à corrupção, ao crime organizado e a crimes violentos - o pacote será enviado ao Congresso Nacional nos próximos dias.
"É um projeto simples e com impacto para enfrentar estes três problemas", disse Moro ao apresentar a proposta. "A sociedade tem de ter presente que o governo pode ser um ator; não tem condições de resolver todos os problemas, mas pode liderar um processo de mudanças", disse o ministro.
Alguns juristas e advogados criminalistas ouvidos pela BBC News Brasil, porém, fazem críticas a pontos da proposta apresentada pelo ex-juiz da Lava Jato - entre eles, o início do cumprimento da pena em regime fechado, na cadeia, para alguns tipos de crimes com penas menores que oito anos; as mudanças na definição das organizações criminosas; e a ausência de medidas mais efetivas para reorganizar o sistema prisional. Por outro lado, a proposta foi bem recebida por associações de profissionais que atuam na área - juízes, procuradores e policiais federais.
Sérgio Moro apresentou o pacote numa reunião em Brasília, com os governadores de 12 Estados brasileiros - os governos estaduais possuem algumas das principais responsabilidades na área de segurança, como a manutenção das polícias civil e militar, e da maioria dos presídios.
Estavam presentes os governadores Eduardo Leite (RS), Camilo Santana (CE), João Doria (SP), Helder Barbalho (PA), Ibaneis Rocha (DF), Marcos Rocha (RO), Ratinho Júnior (PR), Renato Casagrande (ES), Ronaldo Caiado (GO), Rui Costa (BA), Antonio Denarium (RO), Mauro Carlessi (TO), segundo informações da Agência Brasil. Outros quatro Estados (AC, AP, PE e RJ) enviaram os vice-governadores. Ao todo, 24 Estados e o DF enviaram representantes.

Quais são as críticas ao pacote de Moro?

Um dos principais advogados criminalistas do país, Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, disse que o projeto de Moro é "absolutamente frustrante". "Um pacote só com uma promessa de recrudescimento da legislação penal, e castrador de uma série de direitos consolidados ao longo dos séculos", escreveu o advogado numa mensagem enviada a seus contatos no WhatsApp.
"Se este projeto (como um todo) passa, o que teremos é um aumento considerável da população carcerária e, como efeito óbvio, um enorme número de novos membros a serem recrutados pelo crime organizado e pelas organizações criminosas", disse ele - Kakay defende vários réus da Lava Jato no Supremo Tribunal Federal.
Ministério da Justiça à noiteDireito de imagemWILSON DIAS / AGÊNCIA BRASIL
Image captionA sede do Ministério da Justiça, onde Moro trabalha agora
Na visão do advogado criminalista Fernando Castelo Branco, as medidas de Moro, na prática, tratam basicamente de um recrudescimento de penas e piorar as condições de progressão de regime. "Tudo é coerente com um juiz federal recém-alçado à condição de ministro da Justiça. Mas que, talvez até por esse enfoque, não tenha tido uma visão um pouco mais ampla e necessária", avalia.
"Nós temos o terceiro maior índice de população carcerária do mundo, o que não é um mérito. Nós estamos com aproximadamente 800 mil detentos, o que há 30 anos beirava 90 mil pessoas, então é um aumento muito significativo (...). Vejo com um pouco de tristeza a falta de visão que esse ministro teve com a situação carcerária. Não se combate o crime, e não se cria um projeto anticrime sem pensar num processo de adequação desse sistema falido", disse ele, que é professor de processo penal da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo e coordenador de pós-graduação do Instituto de Direito Público (IDP-SP).
Um dos pontos mais criticados do projeto diz respeito à ampliação das hipóteses em que um crime cometido por um policial pode ser considerado legítima defesa.
"A legítima defesa é regulada no Código Penal. Há um projeto de reforma do código penal (no Congresso). Houve uma discussão intensa sobre esse projeto. Agora, há essa iniciativa que atravessa o projeto (do Congresso)", diz o especialista Alaor Leite. Ele é mestre e doutor em direito pela Universidade de Munique, na Alemanha, e assistente científico na Universidade de Humboldt, em Berlim.
Para Leite, a legítima defesa, enquanto conceito, "diz respeito às possibilidades de matar cidadãos justificadamente. Essas hipóteses são bastante restritas e precisam bastante restritas. Há uma discussão grande, no direito penal mundial, sobre se sequer os agentes do Estado, os policiais, podem recorrer à legítima defesa. Ou se seria necessário uma lei específica. O nosso código já é suficientemente generoso nesse aspecto".
Segundo Leite, o Código Penal brasileiro reconhece "uma espécie de causa de justificação em branco, que é o estrito cumprimento do dever legal. Este é causa de grande parte dos arquivamentos de inquéritos policiais relacionados a mortes em operações".
"Além disso, agora, há uma figura, a legítima defesa, que tem os seus pressupostos alargados. Apesar do discurso do ministro tratar essa extensão como uma mera especificação ou esclarecimento do que seria a legítima defesa, não se trata disso. A palavra 'prevenir', ali colocada, indica que há uma antecipação desse direito", afirma.
Como esta parte da proposta de Moro altera a chamada "parte geral" do Código Penal, Leite teme que uma alteração deste tipo "tenha efeitos para todos os crimes em espécie", e pode "acarretar numa mudança estrutural" do direito penal no país.

Possíveis questionamentos no STF

Advogado criminalista, Thiago Turbay coordena um grupo na seccional de Brasília da entidade que produz análises sobre projetos de lei e outras mudanças legislativas. O grupo, neste momento, está dedicado a analisar as medidas do pacote de Moro. Segundo Turbay, há alguns pontos do pacote anticrime que podem ter sua constitucionalidade questionada no Supremo Tribunal Federal, o STF.
Um dos principais é a mudança no código penal para fazer com que as penas de condenados por alguns crimes, como peculato e corrupção, sejam cumpridas em regime inicial fechado, ou seja, na cadeia. Hoje, pessoas condenadas a penas menores que oito anos não ficam na cadeia em tempo integral.
Sede do STFDireito de imagemGIL FERREIRA / STF
Image captionTanto a OAB nacional quanto a de Brasília estão analisando o pacote detidamente
"Se eu digo que a pena tem necessariamente que começar em regime fechado, eu fecho todo o espaço para a dialética. Não interessam as circunstâncias, as particularidades do caso. Há uma série de pressupostos que precisam ser considerados na hora de fixar o regime (se fechado, semiaberto, aberto). Sem falar que há um percentual alto de sentenças que são depois reformadas nas instâncias superiores", diz Turbay, que é sócio do escritório Turbay Boaventura Advogados.
Segundo o advogado, outros pontos que se chocam com decisões anteriores do STF ou passíveis de questionamento são a criminalização do chamado Caixa 2 (doações de campanha não declaradas à Justiça Eleitoral); e a figura do "denunciante do bem" ou "whistleblower".
Turbay critica ainda a mudança no trecho da lei das interceptações telefônicas. Segundo a proposta de Moro, a interceptação de ligações ou mensagens de internet poderá ser feita "por qualquer meio tecnológico disponível" - hoje, há ferramentas especializadas e seguras para este tipo de interceptação, e não reforçar o seu uso é um erro, diz o advogado.
Ao mesmo tempo, o Conselho Nacional da OAB formará uma comissão para analisar o projeto.
"Alterações legislativas desse alcance têm consequências profundas e devem ser realizadas com o devido tempo e com a oportunidade de amplo debate entre os vários setores da sociedade (...). Não podemos cair no equívoco de supor que será possível resolver os complexos problemas da segurança pública apenas com uma canetada", disse o presidente do Conselho Nacional da Ordem, Felipe Santa Cruz.

Procuradores, juízes e peritos defendem o projeto

Apesar das críticas de juristas, aspectos do projeto de Sérgio Moro receberam o apoio de profissionais e entidades que atuam no combate à corrupção - procuradores do Ministério Público Federal, juízes e peritos federais.
O presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), José Robalinho, disse que as mudanças propostas são coerentes com a ideia de endurecer o combate ao crime - embora outros temas mereçam análise mais cuidadosa, como a parte sobre a legítima defesa. Em janeiro, a entidade já tinha publicado nota defendendo a adoção dos acordos do tipo "plea bargain" no Brasil.
Sérgio MoroDireito de imagemMARCELO CAMARGO / AGÊNCIA BRASIL
Image captionMoro recebeu apoio de procuradores, juizes e diversos políticos
O juiz federal Fernando Mendes, que preside Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), disse que o projeto é "bastante positivo para a sociedade", e que a entidade defende há anos vários pontos que estão no texto, como a prisão após a segunda instância.
"De modo geral, o projeto formulado pelo Ministério da Justiça é essencial para tornar mais efetivo o processo penal, em sintonia com a agenda de combate à impunidade", disse Mendes.
Já a Associação Nacional dos Peritos Criminais (APCF) aplaudiu a iniciativa de ampliar a coleta de material genético e biométrico de pessoas que cometem crimes - para a entidade, a medida vai melhor a capacidade do Estado brasileiro de resolver crimes.
"Dar efetividade a esse instrumento (o banco de DNA) é essencial para aumentar a taxa de resolução de crimes, encontrar culpados e acabar com a impunidade", disse a associação, em nota.
O projeto de Moro também parece ter encontrado apoio entre políticos - foi elogiado pelo vice-presidente da República, o general da reserva Hamilton Mourão; por diversos governadores de Estados, e por congressistas da Câmara e do Senado.

O que poderá mudar na lei com o pacote anticrime

O pacote anticrime de Sérgio Moro está organizado em 19 pontos - e cada um deles contempla um número de medidas. A BBC News Brasil explica abaixo as principais mudanças:
1. Prisão após a segunda instância
A Constituição brasileira estabelece que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença", ou seja, depois de esgotadas todas as instâncias da Justiça. No entanto, desde 2016 o Supremo Tribunal Federal entende que é possível, sim, o início da pena depois da condenação pela 2ª Instância da Justiça. O STF marcou para abril um julgamento que pode rever esta decisão.
Agora, o projeto de Moro propõe uma série de alterações no Código de Processo Penal, na Lei de Execução Penal e no Código Penal para garantir o início do cumprimento de pena logo depois da condenação em 2ª Instância, que passaria a ser a norma - embora possa haver exceções.
2. Mais efetividade para o tribunal do Júri
No Brasil, o Tribunal do Júri só é convocado para casos de crimes dolosos contra a vida - quando há a intenção de matar. A proposta de Moro altera o Código Penal para garantir que as decisões tomadas neste tipo de julgamento sejam cumpridas imediatamente - eventuais recursos que o réu possa apresentar não interromperão o processo.
3. Mudanças no "excludente de ilicitude"
A lei atual já isenta de culpa o policial que age "usando moderadamente os meios necessários" para defender-se de "agressão, atual ou iminente", a si ou a outra pessoa.
O projeto de Moro faz uma pequena alteração na redação deste parágrafo do Código Penal, para aumentar o número de hipóteses que se enquadram dentro da categoria de legítima defesa. Passará a ser isento de culpa o policial que "previne" a agressão a si ou a outros, ou que "previne agressão ou risco de agressão à vítima mantida refém".
O juiz também poderá "reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la" ao policial se "o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção".
Este foi um dos pontos mais polêmicos do projeto. Moro disse que a alteração não representa "nenhuma licença para matar", e que a alteração apenas coloca na lei "o que os juízes já fazem na prática".
"O policial não precisa esperar levar um tiro para ele poder tomar alguma espécie de reação, o que não significa que se está autorizando que se cometam homicídios indiscriminadamente", disse Moro.
4. Regime fechado para corrupção
Hoje, pessoas condenadas a penas menores que oito anos não vão para a cadeia - isto é, só cumpre pena em regime fechado os condenados cujas penas sejam maiores que isto.
A proposta de Sérgio Moro altera este ponto e passa a prever que os condenados pelo crime de peculato (quando um servidor público se apropria de algo indevidamente) e de corrupção passiva e ativa comecem a cumprir pena em regime fechado - "salvo se de pequeno valor a coisa apropriada ou a vantagem indevida".
Neste ponto do projeto, intitulado "Medidas para endurecer o cumprimento das penas", Moro também propõe regras mais duras para a progressão de regime (do fechado para o semiaberto, por exemplo) dos presos por crimes hediondos.
"A progressão de regime ficará também subordinada ao mérito do condenado e à constatação de condições pessoais que façam presumir que ele não voltará a delinquir", diz outro trecho.
5. Organizações criminosas
Hoje, integrantes de organizações criminosas não precisam ir necessariamente para presídios de segurança máxima. Pela proposta de Moro, essas pessoas, quando presas com armas, terão necessariamente de começar a cumprir penas em unidades deste tipo.
Condenados por este crime também não terão direito à progressão de regime, e os líderes das facções poderão passar até três anos em presídios federais (hoje, este limite é de um ano).
6. Confisco de bens de criminosos
Hoje, a lei determina que pessoas condenadas só possam ter seus bens confiscados se ficar provado que estes têm relação com o crime cometido.
Pela proposta, crimes punidos com mais de seis anos de prisão já possibilitarão o confisco dos bens do criminoso, desde que estes sejam maiores do que os que seriam compatíveis com a renda lícita da pessoa.
Obras de arte ou outros que tenham valor cultural poderão ser perdidos para museus públicos. Os órgãos de segurança também poderão usar os bens apreendidos - veículos, equipamentos, etc. - em seu trabalho.
7. Banco de dados: DNA, íris, face e voz
Hoje, condenados por alguns tipos de crimes - como estupro - têm amostras do seu DNA coletadas e guardadas num banco de dados, até que ocorra o prazo de prescrição.
Na proposta, todos os autores de crimes dolosos (quando há a intenção de cometer o crime) terão o DNA coletado. Além disso, a lei autoriza o Ministério da Justiça a criar o Banco Nacional Multibiométrico: esta base de dados armazenará informações de impressões digitais, e também de íris, face e voz - esta tecnologia já existe e é usada em alguns tipos de smartphones, por exemplo.
8. Caixa 2 poderá ser crime
Hoje, a prática de Caixa 2 (quando o candidato ou partido recebe doações de campanha não informadas à Justiça Eleitoral) é considerada falsidade ideológica eleitoral (é julgada por pela Justiça Eleitoral, com penas mais brandas).
O pacote anticrime de Sérgio Moro cria o crime de Caixa 2 no Código Penal - a definição é a mesma da atual, mas a pena fica mais elevada, com dois a cinco anos de reclusão.
9. "Plea bargain", ou solução negociada
O projeto introduz no direito brasileiro uma figura que ainda não existe por aqui: o acordo (mediante confissão) com o Ministério Público. Nos Estados Unidos, este instrumento é chamado de "plea bargain".
Nesta modalidade, o réu confessa sua culpa diante da acusação, e o Ministério Público não chega a apresentar denúncia - o que evita um novo processo judicial. Em troca da confissão, o Ministério Público pode negociar benefícios na hora de cumprir a pena.
O projeto estabelece uma série de condições - para início de conversa, este acordo só vale para quem comete crimes não violentos, com pena máxima menor que quatro anos. Este é um dos pontos mais detalhados do projeto, com mais de três laudas destinadas a ele.
10. "Denunciante do bem", ou delator
O projeto cria a figura do "denunciante de bem" ou "whistleblower" (palavra inglesa para delator ou vazador) - voltada para a pessoa que não está envolvida no crime do qual tem conhecimento.
Além de assegurar a proteção a esta pessoa, o informante também pode receber recompensa de até 5% do valor arrecadado, caso as informações dele resultem na recuperação de dinheiro desviado.
Esta medida já estava no pacote das "Dez Medidas Contra a Corrupção", apresentado por meio de um projeto de lei de iniciativa popular e desfigurado pelo Congresso em 2016.
Professor Edgar Bom Jardim - PE

Tragédia de Brumadinho: a história da 'sirene humana' que arriscou a vida e salvou centenas no desastre de Mariana


Paula Geralda AlvesDireito de imagemARQUIVO PESSOAL
Image captionDe moto, Paula Geralda Alves foi até o povoado de Bento Rodrigues para alertar sobre o rompimento da barragem da Samarco em Mariana
"Corre, a barragem estourou! Corre todo mundo!". Os gritos de Paula Geralda Alves e a buzina da pequena moto dela, apelidada carinhosamente de Berenice, foram a sirene que não tocou em Mariana (MG), quando a barragem da Samarco - de propriedade da Vale e da holandesa BHP - se rompeu em 2015.
Ao saber do desastre em primeira mão por uma frequência de rádio de um veículo da Samarco, Paula arriscou a vida para avisar a população de Bento Rodrigues. Em vez de correr para cima de um morro e se proteger, subiu na moto e desceu até o povoado, que ficava a menos de 6 km da barragem de Fundão.
A estrutura que armazenava rejeitos das minas da região não era equipada com sirenes de alerta. Só o som avassalador de árvores se rompendo seria ouvido segundos antes de Bento Rodrigues ser engolida pela lama.
Mas os gritos de Paula salvaram as cerca de 400 pessoas que moravam no povoado e que correram em desespero para um local seguro após o alerta. 19 pessoas morreram, mas o número de vítimas poderia ter sido muito maior.
Agora, apenas três anos depois da tragédia em Mariana, também não houve alerta de sirenes quando a barragem da mina Córrego do Feijão, da Vale, se rompeu. E não havia Paula Geralda.
Pelo menos 134 pessoas morreram e 199 continuam desaparecidas nesta que pode se tornar a pior tragédia humana da história em acidentes com barragens.
"Mais uma vez aconteceu um crime e dessa vez foi pior ainda, porque foi uma tragédia humana. Pensei que Mariana serviria de alerta, pensei que aprenderiam a lição", disse Paula Geralda à BBC News Brasil.
casa destruída em Bento RodriguesDireito de imagemJOSÉ CRUZ/AGÊNCIA BRASIL
Image captionCasas de Bento Rodrigues foram destruídas e 19 pessoas morreram, mas tragédia seria muito maior se Paula Geralda não tivesse arriscado a vida para alertar os moradores

Como Paula salvou a cidade

Em 2015, Paula Geralda trabalhava para a Brandt Meio Ambiente, empresa contratada pela Samarco para fazer o reflorestamento de áreas desmatadas pela operação com minas.
Às 16:45 do dia 5 de novembro, ela estava plantando mudas numa área próxima da barragem de Fundão quando começou a ouvir um som estranho, que parecia soar cada vez mais alto e próximo.
"Parecia barulho de avião, onda do mar, helicóptero... Tudo junto. Era o impacto da lama destruindo tudo. Ela vinha igual a um monstro acabando com o que tinha pela frente."
Em busca de informações, o técnico de segurança da Brandt ligou o rádio de uma caminhonete de apoio da Samarco. Na frequência 4, usada para comunicações internas, veio a pior notícia possível naquelas circunstâncias: a barragem de Fundão acabara de se romper.
Paula não pensou duas vezes. "Tenho que avisar o meu povo." Em vez de correr para cima de um morro próximo, onde haveria uma área segura, ela subiu na moto e saiu em disparada com direção ao subdistrito de Bento Rodrigues - na rota da lama.
Paula ao lado de um vizinhoDireito de imagemARQUIVO PESSOAL
Image captionA bordo da moto 'Berenice', Paula buzinou e gritou a plenos pulmões para que todos corressem para cima do morro, para se proteger da avalanche de lama
Os colegas de Paula gritaram desesperados para que ela voltasse. De onde estavam, era possível enxergar o tsunami de rejeitos descendo numa velocidade assustadora. Mas Paula ignorou os chamados, atravessou uma pequena ponte - que poucos minutos depois seria derrubada pela onda de lama - e chegou a Bento Rodrigues.
Lá, usou voz e buzina para alertar a comunidade. "Foge todo mundo! A barragem rompeu. Corre todo mundo."
O que se viu em seguida foi um corre-corre de pessoas desesperadas, mas também muita solidariedade. "Os mais velhos eram ajudados pelos mais novos. Quem não conseguia andar era carregado", conta Paula.
O filho dela, na época com 5 anos de idade, estava em casa com os avós. Paula avisou a família e continuou o trajeto de moto pela cidade, tentando alertar o maior número possível de pessoas.
Rapidamente, centenas de moradores subiram para a área mais alta da região. Lá, Paula reencontrou o filho e os pais. Do topo do morro, era possível ver a lama avançando. Casas, carros e árvores tombavam como se fossem se brinquedos.
pichação em casa de Mariana (MG)Direito de imagemJOSÉ CRUZ/AGÊNCIA BRASIL
Image captionBarragem da Samarco, em Mariana (MG), não tinha qualquer equipamento de sirene para alerta em caso de rompimento
"Atravessei na frente do tsunami de lama para avisar a comunidade. No caminho, eu não parei para olhar para trás", conta Paula.
"Foi só quando eu cheguei lá no alto do morro que eu vi a destruição. Vi que o Bento (como os moradores chamam Bento Rodrigues) tinha acabado."
Os quatro cachorros de estimação e as galinhas ficaram lá embaixo. A casa de Paula foi uma das poucas que ficaram de pé, embora quintal e cozinha tenham sido destruídos e toda a parte interna, inundada pela lama.

O dia seguinte

Quando os bombeiros chegaram a Bento Rodrigues de helicóptero e viram a destruição, acharam que toda a população do vilarejo havia morrido. Foi então que avistaram os moradores ilhados num morro rodeado por lama.
Mas não havia como resgatar a população toda pelo ar. Só pessoas feridas, que não tiveram tempo de se refugiar, foram retiradas pelos helicópteros naquele dia.
Paula, a família e os vizinhos acabaram passando a noite em cima do morro. "Foi uma madrugada de pesadelo, porque sempre vinha alguém dizendo que alguma outra barragem tinha estourado e que dessa vez ia nos alcançar", relata.
No dia seguinte, com a lama mais firme, saíram todos em fila indiana, com auxílio dos bombeiros. Os idosos e pessoas com dificuldade de locomoção foram retirados de jipe.
Paula Geralda em visita à casa que foi destruída, um ano depois da tragédiaDireito de imagemARQUIVO PESSOAL
Image captionA casa de Paula Geralda foi invadida pela lama, mas continuou de pé. Cozinha e quintal foram destruídos e ela perdeu móveis e eletrodomésticos
Paula passou pela casa onde morava. Todas as galinhas haviam morrido, mas foi com alegria que ela constatou que os cachorros estavam vivos.
Dois deles, Maxixe e Petitico, moram hoje em dia com Paula em um apartamento alugado pela Samarco em Mariana. Bento Rodrigues está deserto, ainda coberto de lama.

Tragédia de Brumadinho

A barragem da Samarco em Mariana não tinha qualquer sistema de alerta em caso de rompimento.
O aviso de Paula salvou a população de Bento Rodrigues. Um ano após o desastre, ela recebeu uma medalha do governo de Minas Gerais pelo ato de heroísmo.
Hoje, está desempregada e faz bicos como cabeleireira. Assim como os outros moradores que tiveram os lares destruídos pela lama, ela recebe um auxílio financeiro de um salário mínimo e mais 20% desse valor para cada membro da família, além de uma cesta básica por mês.
Até hoje não recebeu indenização. A construção do local onde os moradores de Bento Rodrigues serão assentados não começou. "Tudo o que eu queria era ter a minha casa de volta."
Três anos depois, a tragédia se repete com uma agravante. Além de terem as casas destruídas, moradores das comunidades próximas à mina Córrego do Feijão, em Brumadinho, perderam, também, parentes, vizinhos e, em alguns casos, a família inteira.
"Aqui em Mariana tivemos a maior tragédia ambiental do mundo e 19 mortes. Agora, em Brumadinho, temos a maior tragédia humana. Mais de 100 mortos e nem todos serão encontrados. É difícil de entender", diz Paula.
Bombeiros resgatam corpos em Brumadinho (MG)Direito de imagemMAURO PIMENTEL/AFP
Image caption'A gente fica desacreditada. De Mariana para cá, disseram que as barragens que temos por aqui receberam sirenes. Mas a gente vê que não dá para confiar', afirma Paula
Após o desastre de Mariana, a instalação de sirenes em áreas de barragens passou a ser obrigatória. Mas os equipamentos não soaram quando a lama avançou pelas comunidades que moravam perto da barragem da Vale.
O presidente da empresa, Fábio Schvartsman, justificou o fato dizendo que a avalanche foi "rápida demais", impedindo o acionamento manual das sirenes. Os equipamentos mais próximos teriam, segundo a Vale, sido os primeiros a serem engolidos pela lama.
Pelo menos dois funcionários responsáveis pelo plano de evacuação morreram, também atingidos pelos rejeitos.
"A gente fica desacreditada. De Mariana para cá, disseram que as barragens que temos por aqui receberam sirenes. Mas a gente vê que não dá para confiar", afirmou Paula à BBC News Brasil.
Casa engolida pela lama em BrumadinhoDireito de imagemREUTERS
Image captionTragédia em Brumadinho foi agravada pela falta de um sistema de alerta que funcionasse
Aos colegas de dor de Brumadinho ela deseja "força e paciência". "Daqui para a frente, a luta deles vai ser grande."
Paula diz que o que mais a entristece é ver que o rompimento da barragem de Mariana, com a destruição do ecossistema do Rio Doce e das casas de centenas de pessoas, não tenha servido de alerta para evitar novas tragédias.
"Não imaginava que isso fosse acontecer de novo. Eu achei que a nossa história, em Mariana, serviria de alerta, que eles aprenderiam."
Professor Edgar Bom Jardim - PE

domingo, 3 de fevereiro de 2019

Brasil:23,3 milhões entraram em situação de vulnerabilidade social



Edinaldo Santana não consegue ganhar o equivalente a um salário mínimo.  Foto: Hamilton Ferrari/CB/D.A Press
Edinaldo Santana não consegue ganhar o equivalente a um salário mínimo. Foto: Hamilton Ferrari/CB/D.A Press
Quando tem sorte, Edinaldo de Santana, 38 anos, consegue R$ 60 num dia ao trabalhar com reciclagem. Desempregado há pelo menos 10 anos, perdeu as esperanças de procurar uma vaga no mercado por “falta de espaço”, segundo ele. Mesmo com ensino médio completo e curso técnico, precisa fazer bicos para garantir a renda mensal e ajudar a pagar as contas da casa, que fica na Estrutural. Ele mora com a esposa e sabe bem o que é viver em aperto financeiro. “Não consigo mais atingir nem o salário mínimo com o meu trabalho”, lamenta.

Santana é um exemplo dos milhões de brasileiros que estão em situação de vulnerabilidade financeira e social. O Brasil atingiu a menor taxa de pobreza em 2014, mas, após a crise econômica e o grande descompasso das contas públicas, o índice aumentou até 2017, segundo cálculos do economista e pesquisador da Fundação Getulio Vargas (FGV) Marcelo Neri. Nesses três anos, mais de 23,3 milhões pessoas foram incluídas nesse saldo perverso.

As projeções mostram que, caso o país continue com crescimento econômico baixo, em torno de 2,5% ao ano, só será possível retomar o nível atingido em 2014 em 2030. Ou seja, mais de uma década e meia de atraso. Neri avalia que falta “responsabilidade econômica básica” para transformar os avanços sociais em uma tendência duradoura. “Uma lição da crise atual é olharmos primeiro para os mais pobres, buscando protegê-los, e, assim, preservar o movimento da economia como um todo”, aponta. A pobreza teve seu maior salto, de 19,3%, entre 2014 e 2015 no Brasil, o que correspondeu a 3,6 milhões de pessoas. Nesse período, a taxa passou de 8,4% para 10%. A projeção do economista para 2018 é de que o índice fique em 10,95%.

Dados da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) revelam que o Brasil foi fundamental para a piora nos índices de pobreza na região até 2017. O problema social afetou 184 milhões de pessoas ao término daquele ano, sendo que 62 milhões — ou 10,2% — estão em situação crítica. Enquanto vários países reduziram ou estabilizaram a pobreza extrema, como Paraguai, Colômbia, Costa Rica, Panamá, Chile e Equador, o Brasil registrou alta de 4% para 5,5% do número de pessoas desse grupo entre 2015 e 2017.

Descontrole
Para analistas, 2019 será decisivo, pois é considerado o ano limite para o Brasil não entrar num alto grau de falta de credibilidade econômica e de risco. É como uma espécie de “ou vai, ou racha”, em que o governo de Jair Bolsonaro tem responsabilidade de conseguir aprovar a reforma da Previdência, considerada chave para evitar a expansão descontrolada das despesas públicas.

Alheias a essas discussões, as pessoas que estão na situação de pobreza têm outras preocupações: como conseguir dinheiro para custear a alimentação da família. “Eu cheguei a trabalhar com carteira assinada em 2006. Fiquei um ano e dois meses numa empresa de construção, que parou de existir porque terminou o serviço. Procurei algo depois, mas não encontrei”, conta Santana. Ele afirma, porém, que está otimista. “A esperança é a última que morre”, diz. “Temos de melhorar, pois nossa situação está ficando insustentável”, acrescenta.
Ronaldo Alves de Sousa nem sempre tem condições de pagar por um teto. Foto: Hamilton Ferrari/CB/D.A Press
Ronaldo Alves de Sousa nem sempre tem condições de pagar por um teto. Foto: Hamilton Ferrari/CB/D.A Press
Ronaldo Alves de Sousa, 35, não tem lar fixo. Há três anos, luta desesperadamente pela sobrevivência. “Trabalho, eu não nego”, garante. “Às vezes, consigo juntar dinheiro para um teto na Estrutural, porque só me deixam entrar quando consigo pagar um pouco. Quando não dá, fico na rua mesmo”, lamenta. “Já fiz curso de garçom e de segurança. Mas não tem vaga para mim”, diz. “Hoje trabalho com gesso e faço R$ 400 no mês. Às vezes, R$ 600. Creio em Deus que a situação vai melhorar. Tenho fé”, afirma.

Na opinião do pesquisador Sergei Soares, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), para atingir o crescimento sustentável, o país precisa fazer a reforma da Previdência. “Não há avanço sem mudança, senão, é enxugar gelo. O aumento da pobreza não é resultado de decisões tomadas na área social e, sim, na economia. É preciso consertar”, explica.

Soares ressalta ainda que, mesmo com a melhora da economia, o país não terá, num primeiro momento, diminuição do índice de pobreza. “O mercado de trabalho tem um certo atraso, reage depois de um, dois anos. Só veremos queda na pobreza lá por 2021, com a recuperação do emprego. Para isso, no entanto, é preciso sinalização de que a trajetória de falência das contas públicas será revertida”, argumenta.

No entender de Kaizô Beltrão, pesquisador da FGV, o processo de construção de um país menos pobre é feito a médio e longo prazos, sendo necessárias melhorias na educação. “Para sair da pobrezam é preciso aumentar a empregabilidade e as condições de educação. Tornar as pessoas mais capacitadas permite que haja um desenvolvimento maior da renda, o que tira esse grupo da situação de vulnerabilidade”, avalia.
FonteDP/Correio Brasiliense
Professor Edgar Bom Jardim - PE