domingo, 15 de outubro de 2017

'Não podemos ensinar as meninas do futuro com livros do passado'


Livro didático da Tanzânia mostrando garotas e rapazes
Image captionPesquisadores da Unesco encontraram estereótipos de gênero em livros didáticos de todo o mundo | Unesco/Relatório GEM

Em um livro didático na Tanzânia, meninos são retratados como fortes de atléticos, enquanto as meninas parece orgulhosas em seus vestidinhos de babados. Já na escola primária no Haiti, alunos aprendem que as mães "cuidam das crianças e preparam a comida", enquanto os pais trabalham "no escritório".
Um livro ilustrado paquistanês onde todos os políticos e pessoas poderosas são homens. Na Turquia, um cartum mostra um garoto sonhando em ser médico. Enquanto isso, uma garota se imagina como uma noiva de vestido branco.
A lista continua - e não tem fronteiras geográficas.
De acordo com vários especialistas, estereótipos de gêneros são encontrados - de maneira bastante semelhante - em livros didáticos de todos os continentes. É um problema que está "embaixo dos nossos narizes".
"Há estereótipos de homens e mulhares camuflados no que parecem ser papeis bem estabelecidos para cada gênero", diz a socióloga Rae Lesser Blumberg.

Livro didático no Haiti
Image captionUm livro em francês do Haiti diz que "a mãe cuida das crianças e cozinha, enquanto o pai trabalha no campo ou no escritório" | Unesco/Relatório GEM

A especialista, da Universidade da Virginia, pesquisa livros didáticos em todo o mundo há mais de uma década, e diz ter visto as mulheres serem sistematicamente excluídas dos textos e ilustrações, ou retratadas em papeis subservientes.
"Estereótipo de gênero é um tema de menor destaque na educação. Não ocupa as manchetes dos jornais enquanto milhões de crianças permanecem fora da escola", afirma.

Livro didático com estereótipos de gênero
Image captionNa maior parte dos livros, homens são apresentados como os que recebem e administram o dinheiro, enquanto mulheres cuidam da família | Unesco/Relatório GEM

Apesar de o índice de matrículas escolares ter aumentado dramaticamente desde o ano 2000, a Unesco estima que mais de 60 milhões de crianças nunca pisaram em uma sala de aula - 54% delas são meninas.
"Esses livros perpetuam a desigualdade de gênero. Não podemos educar as crianças do futuro com livros do passado."

Livro didático da Tunísia
Image captionEm um livro da Tunísia, mulheres aparecem cozinhando ou limpando a casa, enquanto meninos podem brincar de serem músicos | Unesco/Relatório GEM

Invisíveis

Em 2016, a Unesco, agência de educação da ONU, divulgou um alerta usando palavras duras.
Atitudes sexistas são tão comuns que livros didáticos frequentemente sabotam a educação das garotas e limitam suas carreiras e expectativa de vida, diz a Unesco - e eles representam um "obstáculo escondido" no caminho da igualdade de gênero.
Seja a medida em linhas de texto, proporção de personagens nomeados, menções em títulos, citações em índexes ou outros critérios, "as pesquisas mostram que as mulheres são muito subrepresentadas em livros e no currículo em geral", diz o pesquisador Aaron Benavot, da Universidade de Albany, no Canadá, e ex-diretor do relatório Global Education Monitorin (GEM) de 2016 da Unesco.
Mas o problema tem mais facetas do que se sabe, de acordo com especialistas.

Livro didático do Congo
Image captionSegundo a Unesco, os textos didáticos costumam "sabotar" a educação e meninas e mulheres, e limitar suas expectativas de carreira | Unesco/Relatório GEM

O aspecto mais evidente seria o uso de um linguajar considerado enviesado, já que, normalmente, palavras no masculino são usadas como sinônimo de humanidade.
Em seguida, há o problema da invisibilidade, já que as mulheres costumam estar ausentes dos textos, e seus papeis na história e na vida cotidiana são subordinados aos personagens masculinos.
"Havia um livros sobre cientistas do qual eu me lembro especialmente, e a única mulher nele era (a física e química) Marie Curie", disse Blumberg.
"Mas por acaso ela foi mostrada descobrindo o rádio? Não, ela aparecia olhando timidamente sobre o ombro do marido enquanto ele falava com outra pessoa - um homem que parecia elegante e distinto."
Em terceiro lugar, há os estereótipos tradicionais sobre trabalhos que homens e mulheres fazem, tanto dentro quanto fora de casa, assim como expectativas sociais clichês e traços que são atribuídos a cada um dos gêneros.

Livro didático mostrando profissões na Itália
Image captionPaíses desenvolvidos não escapam: neste livro italiano, todas as profissões são representadas por homens | Unesco/Relatório GEM

Um livro didático italiano dá um exemplo impressionante que ensina vocabulário para ocupações diferentes, com 10 opções diferentes para homens - de bombeiro a dentista - e nenhuma para mulheres.
Enquanto isso, mulheres costumam ser retratadas em tarefas domésticas, desde cozinhar e lavar roupas até cuidar das crianças e dos idosos.
"A preocupação também é que as mulheres seram consideradas passivas, submissas, cumprindo esses papeis estereotípicos de gênero", diz a especialista em educação Catherine Jere, professora convidada na Universidade East Anglia, que também esteve envolvida no relatório GEM.

Estudantes cubanas em HavanaDireito de imagemAFP
Image captionEm alguns países, professores têm estimulado alunos a questionar os próprios livros e identificar o viés de gênero

'Se alienígenas viessem visitar...'

O problema está longe de ser novo. Livros didáticos estão sob escrutínio desde os anos 1980, depois de uma pressão do movimento feminista por reformas na educação, principalmente em países desenvolvidos.
Um estudo de 2011, considerado a maior pesquisa de larga escala já conduzida neste campo - que analisou mais de 5.600 livros infantis publicados durante o século 20 - estimou que homens são representados quase duas vezes mais em títulos e 1,6 vezes mais como personagens centrais.
Desde que o problema foi identificado, dizem os pesquisadores, houve progresso na redução do sexismo, mas ele é "muito lento".

Livro didático americano de 1962
Image captionPesquisadores que analisaram milhares de livros didáticos do século 20 dizem que pouca coisa mudou deste exemplar americano de 1962 até hoje | Unesco/Relatório GEM

Alguns dos livros analisados foram publicados muito tempo atrás, mas muitos continuam sendo usados - especialmente em países onde a renda é mais baixa e em escolas que não têm orçamento para substitui-los.
"Está ficando pior a cada ano, porque o mundo está progredindo, as mulheres estão se dedicando a novos trabalhos e os trabalhos domésticos estão mudando", diz Blumberg. "E os livros não estão melhorando no mesmo ritmo, então o abismo aumenta."
"Se alienígenas viesse nos visitar, não teriam ideia do que as mulheres realmente fazem, em termos pessoais e de trabalho, se lessem nossos livros escolares."

Preocupação universal

As pesquisas também mostram que o problema é praticamente universal. Com apenas algumas diferenças em frequência e intensidade, o sexismo é pervasivo em livros tanto de nações desenvolvidas quanto de países em desenvolvimento.
Os dados são desencontrados, mas uma gama de estudos publicados na última década acumula provas. Um livro de história para crianças do 3º ano fundamental na Índia, por exemplo, simplesmente não mostra nenhuma mulher profissional.

Livros didáticos do Cazaquistão e da Turquia
Image captionMeninos brincam de carrinho e se imaginam como médicos, enquanto meninas sonham com o casamento em livros atuais do Cazaquistão e da Turquia | Unesco/Relatório GEM

Já uma criança no Quênia que esteja sendo educada em inglês verá, nos seus livros, homens ativos tendo "ideias interessantes", enquanto mulheres e meninas cozinham e penteiam cabelos de bonecas.
Homens eram 80% dos personagens em livros feitos pelo Ministério da Educação do Irã. Na Índia, só 6% das ilustrações mostravam mulheres e, na Geórgia, eram 7%.
Livros de matemática em Camarões, Costa do Marfim, Togo e Tunísia tinham uma proporção de personagens mulheres menor que 30%, de acordo com a medição feita em um estudo comparativo de 2007.
Uma pesquisa com livros escolares no Reino Unido e na China também revelou que 87% dos personagens eram do sexo masculino.
Na Austrália, um estudo realizado em 2009 descobriu que 57% dos personagens também eram homens - apesar de que, na população do país, há mais mulheres.
"Algumas pessoas pensam que os livros didáticos de países de renda mais alta seriam um pouco mais modernos, mas na Austrália, duas vezes mais homens eram retratados em cargos administrativos e quatro vezes mais em política e no governo", diz Jere.
"Há um caso extremo em um livro chinês, onde apenas uma heroína da Revolução Comunista de 1949 aparece em todo o livro", descreve Blumberg.
"E ela não é retratada lutando por novas leis e nem na linha de frente com Mao. Ela é mostrada apenas dando um guarda-chuva para um guarda."

Livro didático do Paquistão
Image captionAtividades "da mãe e do pai" em um livro paquistanês - enquanto ela cozinha, serve, costura e limpa, ele lê o jornal, assiste TV e come | Unesco/Relatório GEM
Livro didático no Quênia
Image captionDivisão de trabalhos por gênero é mostrada em um livro atual queniano: homens como pedreiros e pescadores, mulheres como professoras ou costureiras | Unesco/Relatório GEM

Influência de ajuda para a educação

Parte do problema, segundo os especialistas, é que os livros tentam mostrar algo sobre "o que seria normal em uma sociedade" aos olhos de crianças em idade escolar.
Ao ajudar a estabelecer o currículo de um país, os leitores são considerados uma ferramenta educacional poderosa.
Estima-se que um aluno ou aluna leia mais de 32 mil páginas de livros didáticos desde o ensino fundamental até o médio. Cerca de 75% dos trabalhos em classe e 90% das tarefas de casa é feita a partir deles, assim como uma alta proporção do planejamento dos professores.
Mesmo que o acesso à internet e a outros recursos digitais aumentem o acesso a ferramentas de aprendizagem, "os livros didáticos continuam centrais especialmente em países mais pobres", segundo Aaron Benavot.
"Quando eles mostram expectativas muito limitadas sobre o que garotos e garotas podem ser, as crianças são socializadas dessa forma", diz Jere.

Garotas paquistanesas ouvem a professora em uma escola improvisadaDireito de imagemAFP
Image caption"Se alienígenas viesse nos visitar, não teriam ideia do que as mulheres realmente fazem, em termos pessoais e de trabalho, se lessem nossos livros escolares", diz socióloga

O impacto que esses livros podem ter na visão de mundo das crianças já foi mapeada pela pesquisa acadêmica.
Um estudo israelense com crianças do 1º ano fundamental, por exemplo, mostrou que aquelas que eram expostas a retratos de homens e mulheres como iguais tendem a pensar que a maior parte das carreiras eram apropriadas tanto para meninas quanto para meninos.
Já os que aprendiam com livros didáticos que mostravam viés de gênero acreditavam que os estereótipos eram aceitáveis.
Em muitas partes do mundo, as pesquisas também sugerem uma ligação entre a representação de cientistas mulheres em livros e os números menores de meninas que acabam segundo disciplinas de ciência, tecnologia, engenharia e matemática - as chamadas disciplinas STEM, na sigla em inglês.

Livro didático nigeriano
Image captionLivro nigeriano, em inglês, mostra trabalhos "de mulheres" e "de homens" | Unesco/Relatório GEM

Sinais de progresso

No entanto, os acadêmicos afirmam que houve progresso nos últimos anos. O relatório GEM, da Unesco, mostra que conteúdo relacionado à igualdade de gênero aumentou nos livros escolares em todo o mundo, com referências mais frequentes a direitos das mulheres e discriminação de gênero, especialmente em livros didáticos da Europa, da América do Norte e da África subsaariana.

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Alguns países estão capitaneando as mudanças - a Suécia, por exemplo, é o principal deles, o que não surpreende dadas as atitudes em geral do país em relação à igualdade de gênero.
Livros do currículo nacional de educação incorporam personagens e pronomes com gênero neutro, assim como um retrato mais igualitário dos papeis de homens e mulheres na vida cotidiana.
"Na verdade, se você vir alguém usando um avental e mexendo em uma panela em um livro sueco, há uma chance alta de que seja um homem", diz Blumberg.

Mãe e filha leem um livro juntosDireito de imagemGETTY IMAGES
Image captionDe acordo com pesquisadores, livros com personagens de gênero neutro melhoram o aprendizado

Talvez de maneira mais surpreendente, em Hong Kong pesquisadores documentaram um número igual de personagens homens e mulheres em livros didáticos em inglês.
E também haveria progresso na Jordânia, nos territórios palestinos, no Vietnã, na Índia, no Paquistão, na Costa Rica, na Argentina e na China.

Versão mais recente de um livro didático chinês
Image captionNa atualização de um livro didático chinês, rapazes e moças discutem economia | Unesco/Relatório GEM

Mas uma investigação mais aprofundada de livros didáticos em nível nacional é um processo longo e caro - que geralmente é atrapalhado por cortes de orçamento e excesso de burocracia.
"Algumas das mudanças foram superficiais e o comprometimento dos governos não é sustentável quando há uma mudança de regime", diz Benavot.

Livros didáticos novos de Bangladesh e da Índia
Image captionLivros mais recentes em Bangladesh e na Índia mostram mulheres jogando futebol e homens também lavando pratos | Unesco/Relatório GEM

Para tentar corrigir essa desigualdade, os especialistas sugerem métodos alternativos para contrabalancear os textos lidos em sala de aula.
Foram feitas algumas tentativas neste sentido na Índia e no Malauí - por exemplo, estimular os estudantes a contestarem os próprios livros, apontando o viés de gênero e os estereótipos que encontram.
"O problema pode ser compensado chamando a atenção para ele, e os alunos costumam gostar desse trabalho de detetive", afirma Blumberg.
"Mas precisamos treinar os professores primeiro e, finalmente, precisamos reescrever esses livros se queremos uma educação melhor."

Livro didático no Vietnã
Image captionPesquisadores da Unesco sugerem reescrever os livros, incluindo mais personagens femininas em papeis de protagonismo | Unesco/Relatório GEM
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A série #100Mulheres, da BBC (100 Women), indica 100 mulheres influentes e inspiradoras por todo o mundo anualmente. Nós criamos documentários, reportagens especiais e entrevistas sobre suas vidas, abrindo mais espaço para histórias com mulheres como personagens centrais.
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Professor Edgar Bom Jardim - PE

4 coisas ainda desanimadoras da rotina do professor no Brasil - e 3 coisas que estão melhorando


Professora em sala de aula em Curitiba, em foto de arquivo
Image captionProfessores se queixam de desvalorização profissional, algo que envolve de plano de carreira a uma formação melhor (Foto: Pedro Ribas/ANPr)

Ninguém questiona a importância da educação e do professor para o avanço do Brasil, mas como fazer para que isso seja efetivado costuma gerar bastante debate - e esforço.
Aproveitando a comemoração do Dia do Professor, neste domingo, a BBC Brasil perguntou a especialistas e professores quais os principais desafios atuais da profissão - e o que está avançando, mesmo que aos poucos e não uniformemente.
Veja abaixo alguns dos pontos mais citados.

Desafios:

1. Violência em sala de aula

Os socos que um aluno de 15 anos desferiu em uma professora em Indaial (SC), em agosto, abriram um debate nacional sobre a violência no ambiente escolar.
Em São Paulo, 51% dos professores entrevistados por uma pesquisa encomendada pela Apeoesp (Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado) disseram ter sido vítimas de algum tipo de violência na escola; e 61% dos docentes e 72% dos alunos consideram a escola um ambiente de violência.
Para Maria Izabel Azevedo Noronha, professora e presidente da Apeoesp, a violência é "consequência do abandono da escola pública", citando superlotação de salas de aula e enxugamento de funcionários. Tudo isso, diz, dificulta aos professores conhecer individualmente os problemas de cada aluno.
Também em São Paulo, o governo estadual prometeu dobrar o número de professores-mediadores de conflitos para um total de 6,8 mil - algo que Noronha considera uma "resposta correta, ainda que não seja a salvação".
O problema é complexo porque a escola é um microcosmo que espelha a violência da própria sociedade, explica Inês Kisil Miskalo, gerente-executiva de educação do Instituto Ayrton Senna. E reflete tanto o baixo reconhecimento social do professor quanto a vulnerabilidade dos próprios estudantes.
"Estamos muitas vezes lidando com alunos defasados, desmotivados, de famílias carentes. É algo que precisa ser enxergado não pela via policial, mas do relacionamento - acolhendo os alunos e suas famílias", opina Miskalo.
"Não é algo fácil, mas precisamos romper os ciclos de violência e também dar mais perspectivas de trabalho aos professores, mostrar que seu trabalho não é isolado, é coletivo."

2. Desvalorização da carreira - financeira e socialmente

A baixa valorização e remuneração do professor gera um ciclo vicioso: a carreira não consegue atrair os melhores estudantes, as deficiências de formação se perpetuam e refletem na qualidade do ensino.
Essa desvalorização começa, segundo professores e especialistas, na ausência de planos de carreira em grande parte da rede, na defasagem salarial em relação às demais profissões e na formação deficiente.

Lousa em sala de aula
Image captionFormação inicial de docentes não articula teoria com a realidade em sala de aula, dizem especialistas (Foto: Marcos Santos/USP Imagens)

A cada 100 alunos de pedagogia ou licenciatura, só 51 concluem o curso, o que ilustra algumas das dificuldades de formação de novos professores, afirma Olavo Nogueira, diretor de políticas públicas do movimento Todos Pela Educação. "Não é à toa que já faltam professores em algumas disciplinas."
"Valorização passa por salário, formação continuada e por (solução de) problemas estruturais", afirma Noronha, da Apeoesp. "Há professores de física, química e artes, por exemplo, que chegam a acumular mil alunos em uma única escola. É muita coisa."
E há, também, a desvalorização social. Em 2013, o levantamento Índice Global de Status de Professores, que mede o respeito e o status dos docentes na sociedade, colocou o Brasil no penúltimo lugar entre 21 países avaliados.
"É preciso reconhecimento público para o professor, indo além da remuneração", diz Miskalo, do Ayrton Senna. "Isso envolve jogar luz nos bons professores, bater palma para eles, levá-los para a universidade para que contem (a futuros docentes) os segredos que usam na alfabetização, por exemplo."

3. Formação que não prepara para a aula

"Não é incomum ouvir de professores novos: 'não imaginava que seria tão difícil' ou 'não tenho a menor ideia de como agir em sala de aula'. Isso porque a formação não os prepara para a docência", afirma Olavo Nogueira.
Especialistas são unânimes em dizer que a formação atual dos professores não dialoga com a realidade que encontrarão dentro das escolas, nem com os desafios da educação para o século 21.
"O professor leva um choque de realidade: ele não aprendeu elementos para transformar a teoria em ação dentro da sala de aula", diz Miskalo.
No ensino médio, há uma dificuldade adicional: o deficit de professores formados nas disciplinas em que atuam, como química e física. Segundo o Censo Escolar de 2016, apenas 55% dos professores dessa etapa têm formação superior na área em que lecionam.

Professor em sala de aula
Image captionProfessores muitas vezes não estão preparados para lidar com turmas grandes e alunos defasados em relação a sua idade (Foto: Marcos Santos/USP Imagens)

Essa é, na visão do Ministério da Educação, o maior desafio atual da docência. "São 2,2 milhões de professores e grande parte deles não é formada na área em que atua", diz nota do MEC à BBC Brasil, agregando estar finalizando uma política nacional de formação de professores articulada à nova Base Nacional Curricular, quando esta for homologada.
A formação atual tampouco acompanha as transformações na educação - cada vez mais multidisciplinar, centrada no aluno e incorporando habilidades socioemocionais, como trabalho em equipe e resolução de problemas.
"Bons educadores fazem isso quase instintivamente porque sabem que é importante, mas isso precisa ser explícito e planejado", afirma Miskalo.
O MEC afirma que isso será enfrentado com a nova Base Curricular.
"A base nacional está organizada por competências e norteará os currículos dos sistemas e redes de ensino. (...) No momento em que a Base for homologada, o MEC promoverá ações de formação a todas as redes e sistemas de ensino, para a preparação de currículo e professores. Dessa forma, o aprendizado terá sentido organizado nessas competências e não somente do ponto de vista de uma lista de aprendizados de conteúdos aleatórios", diz o ministério.

4. Defasagem e indisciplina dos alunos

Uma pesquisa realizada em 2015 pela Fundação Lemann perguntou a professores quais problemas requeriam solução mais urgente nas escolas, e dois dos mais citados foram a defasagem de aprendizado dos alunos e a indisciplina em sala de aula.
A cada cem alunos do ensino básico, cerca de 12 estão com um atraso escolar de dois anos ou mais, segundo dados de 2016 compilados pela plataforma QEdu.
"É diferente se preparar para dar aula para uma sala de crianças de dez anos e (ter na mesma sala) crianças de 14 anos, que têm outros interesses e percepções", explica Mônica Gardelli Franco, ex-professora e atual superintendente da organização Cenpec (Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária).

Professora Marcia Friggi após agressão em sala de aula
Image captionProfessora Marcia Friggi após agressão em sala de aula; caso abriu debate nacional sobre violência no ambiente escolar (Foto: Reprodução/Facebook)

Sobre a indisciplina, ela conta que os professores não costumam receber, em sua formação, ferramentas para lidar com a dispersão dos alunos e a falta de foco.
E o tempo gasto com isso consome minutos preciosos de aula, que deixam de ser usados na transmissão de conteúdo.
"Perco cerca de 60% do meu tempo em aula resolvendo conflitos paradidáticos, por exemplo falando de valores (sociais) ou da importância de preservar o bem público", lamenta, em entrevista à BBC Brasil, Jorge Jacoh Ferreira, 35 anos, professor da rede municipal do Rio no subúrbio carente de Santa Cruz.
O Ministério da Educação diz que o tema preocupa. "O MEC vem discutindo propostas e possibilidades acerca da formação de professores para atender a esses desafios", diz o órgão em nota.

Avanços:

1. Tecnologia a serviço da sala de aula

A tecnologia já ajuda gestores e professores a preparar aulas e acompanhar seus resultados.
O Google, por exemplo, disponibiliza ferramentas gratuitas para escolas públicas que permitem criar salas de aula na nuvem, distribuir tarefas, organizar avaliações e medir o desenvolvimento da turma.
Softwares de Inteligência Artificial já são parte da rotina de algumas escolas públicas e privadas brasileiras e, à medida que são usados pelos alunos, incorporam informações sobre eles para melhorar processos de aprendizagem.

Violência em sala de aulaDireito de imagemGETTY IMAGES
Image captionIndisciplina e defasagem são algumas das queixas mais comuns de docentes em pesquisa

"É um conjunto de ferramentas estatísticas que cria mais conhecimento quanto mais os alunos (a utilizarem)", disse à BBC Brasil em agosto Leonardo Carvalho, cofundador da empresa Geekie, que fornece o software. "Em uma sala com 50 alunos, o professor não consegue ver (a dúvida exata) de cada um. O programa faz isso de modo escalonado."
Por si só, a tecnologia não necessariamente impacta a educação de modo positivo. O importante, dizem especialistas, é que ela apoie (e não substitua) o docente.
"A tecnologia pode ocupar um espaço (de facilitar tarefas) e deixar o professor mais livre para a construção do pensamento crítico e analítico e das relações em sala de aula", diz Gardelli Franco, do Cenpec.
No Rio, Jorge Jacoh Ferreira diz que seus colegas já usam bancos de dados online para lançar notas, por exemplo. "A dificuldade é a infraestrutura: tem dias que a internet funciona; tem dias que não. Gostaria de usar o Google Earth nas minhas aulas, mas não consigo porque o 4G não funciona."
A infraestrutura é, de fato, um dos principais entraves ao uso da tecnologia. Segundo dados do Censo Educacional 2016 tabulados pelo QEdu, 68% das 183,3 mil escolas básicas do Brasil têm internet. A banda larga está disponível em apenas 56% delas.

2. Mais compartilhamento de boas práticas

Seja via grupos formados em suas próprias redes de ensino, seja por articulação própria nas redes sociais, os professores têm encontrado cada vez mais caminhos para compartilhar boas ideias para ajudar os colegas em sala de aula.
"O professor, quando ganha conectividade, está sempre em busca de novas referências e modelos", diz Gardelli Franco. "Os espaços virtuais favorecem muito isso. Os próprios professores constroem redes dentro de seus grupos, obtendo mais referências (para usar em sala de aula)."

sala de aulaDireito de imagemGETTY IMAGES
Image captionEnsino muitas vezes está desconectado da rotina dos alunos e das demandas do século 21

"Já usei a ideia de um colega de São Gonçalo (RJ) que conheci vias redes sociais e que está dando bons resultados em sala de aula: um jogo de cartas que ajuda em interpretação de texto e pensamento estratégico", conta o professor Jorge Ferreira.
"Mas acho que isso ainda é algo feito totalmente por iniciativa dos próprios professores, que têm brigado muito para se articular por conta própria."

3. Mais possibilidades de formação

Especialistas e professores veem mais opções de cursos de pós-graduação e mestrados, bem como plataformas online gratuitas como Khan Academy e Coursera, que ampliam o leque de possibilidades de formação à distância.
No âmbito do Ministério da Educação há a Universidade Aberta do Brasil, sistema de universidades públicas que dá prioridade a professores na oferta de cursos de nível superior à distância.
Para o professor Jorge Ferreira, porém, é preciso que as redes de ensino valorizem a formação.

ComputadoresDireito de imagemGETTY IMAGES
Image captionTecnologia pode ser aliada do professor na gestão escolar e no acompanhamento do desempenho dos alunos

"Na minha rede, eu ganharia bônus de 7% com mestrado. Vou investir dois anos de estudo por um bônus medíocre?", questiona.
Segundo Olavo Nogueira, do Todos Pela Educação, "vemos que o mais eficiente são os programas de formação continuada, articulados, em que professores consigam observar uns aos outros em atuação. Há muitos cursos que, apesar do investimento alto, trazem pouca melhoria na prática."
Para concluir, Nogueira diz que o professor não vai resolver sozinho os problemas da educação - mas agrega que, sem eles, é bem possível que nenhum problema seja resolvido.
"Não tem atalho. Avançaremos pouco com a mudança da base curricular ou com a reforma do ensino médio, por exemplo, se não lidarmos com as questões (enfrentadas) pelos professores."
Professor Edgar Bom Jardim - PE