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domingo, 13 de setembro de 2020

Patrão x patroa: no Google, o retrato do machismo





Nesta semana, cantora Anitta reagiu ao significado da palavra ‘patroa’ nas buscas da internet

“Chegou a patroa, não desço do salto”. Assim canta Anitta na música lançada em agosto em parceria com os rappers Papatinho, Dfideliz e Bin. Com uma letra empoderada, a carioca fala na canção o que pode ser uma biografia resumida de sua vida: poderosa, empresária, milionária e empoderada.

A cantora, no entanto, levou um susto na quarta-feira 9 ao pesquisar no Google o significado da palavra “patroa”. No dicionário, aparecem “mulher do patrão” e “dona de casa” como definições.

 

 

 

Quando se busca o termo “patrão”, o significado é outro: “Proprietário ou chefe de um estabelecimento privado comercial, industrial, agrícola ou de serviços, em relação aos seus subordinados; empregador; chefe de uma repartição pública”.

“É inacreditável. Eu não estou acreditando que isso está no nosso dicionário. Patroa é tudo que está no masculino, só que no feminino. Pode ser a dona do que quiser”, reagiu a artista em uma rede social.

A palavra “patroa” não é a única da língua portuguesa que tem significados contestáveis nos resultados de busca na internet.

Em sua defesa, o Google alega que não é o responsável pelo conteúdo. O sistema da plataforma apenas reproduz o que aparece nos dicionários da Oxford University Press.

“Quando as pessoas pesquisam por definições de palavras na Busca, frequentemente, elas desejam informações de maneira rápida. Por isso, trabalhamos para licenciar conteúdos de dicionários parceiros, neste caso da Oxford Languages. Não temos controle editorial sobre as definições fornecidas por nossos parceiros, mas reconhecemos a preocupação neste caso e vamos transmiti-la aos responsáveis pelo conteúdo”, disse o Google em pronunciamento oficial.

Para a linguista e autora do livro “Gramática da Manipulação”, Letícia Sallorenzo, “é obrigação do dicionário trazer o registros dessas palavras”. “É para isso que o dicionário serve. Goste-se ou não, essas palavras são faladas com esse sentido em alguns lugares do País”, afirma.

“Os significados não podem deixar de ser registrados. É a sociedade que precisa mudar por meio do comportamento. Hoje, por exemplo, a gente se sente mal chamando alguém de tição (maneira como os negros eram tratados). Há 30, 40 anos não era, e já conseguimos tirar essa expressão do uso corriqueiro, mesmo aparecendo no dicionário”, acrescenta.

 

Exemplos

 

Até o final de 2019, quando a palavra professora era buscada no Google, uma das definições era a de “prostituta”. Após gerar polêmica nas redes, o parceiro do Google retirou a definição do ar.

 

 

A palavra “cadela”, quando pesquisada, vem acompanhada de “mulher pouco digna ou de comportamento ou hábitos reprováveis”.

 

 

De acordo com a linguista, a maioria das associações de mulheres com animais tem como objetivo tratá-las de forma pejorativa.

“A retratação da mulher na língua brasileira vai ser sempre de forma depreciativa. Raríssimos casos vão apontar no sentido contrário. Se você fala que homem é um galo, ele é o garanhão, já a mulher galinha é a promíscua”, diz.

Nas buscas, o termo vaca aparece como “mulher de vida devassa”.

 

 

Já vadia tem como significado “pessoa do sexo feminino que tem muitos casos amorosos”.

 

 

Puta é outra palavra que aparece com conotação preconceituosa. “Qualquer mulher lúbrica que se entrega à libertinagem”, define o dicionário.

 

Apesar dos exemplos, Letícia pondera que a língua portuguesa não é machista.

“Não é machista, nem feminista. No fundo, é resultado de seus usuários. Se quem faz o uso dela a utiliza de forma machista, é porque a pessoa é machista”, afirma.

 

Cultura do xingamento

 

A psicóloga, professora da Universidade de Brasília e autora do livro “Saúde mental, gênero e dispositivos: cultura e processos de subjetivação”, Valeska Zanello, diz que a nossa cultura aceita xingamentos.

“O xingamento é um sintoma da nossa cultura. São preconceitos que se tornam invisíveis pela força do hábito”, diz em entrevista a CartaCapital.

A palavra babaca, por exemplo, tem origem no termo vagina. No dicionário, vulva.

 

“Não existe um significado puro de nenhuma palavra. Estudar essa pragmática da palavra é fundamental, porque é desvendar os valores sexistas e racistas de nossa sociedade”, afirma Valeska.

Sobre o tema, Valeska realizou uma palestra. Assista:


 

 


Carta Capital
Professor Edgar Bom Jardim - PE

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Mãe de motoboy xingado com ofensas racistas desabafa: “Educação e respeito vêm de berço”



Um morador de um condomínio de luxo foi flagrado humilhando um entregador de aplicativo e xingando-o com ofensas racistas. O vídeo, que circulou amplamente nas redes sociais nesta sexta-feira 07, mostra o homem dizendo que o trabalhador tem “inveja” dos moradores do condomínio e de sua cor branca.

O caso aconteceu na cidade da Valinhos, interior de São Paulo, e repercutiu após a mãe do entregador publicar um desabafo nas redes sociais. “Resolvi postar o vídeo, isso é racismo e é crime. Esse entregador é meu filho, um trabalhador honesto e não precisa sentir ou ter inveja de um escroto como esse”, escreveu.

No vídeo, o homem de azul aparece nos primeiros segundos falando “seu lixo”, o que dá a entender que a discussão já tinha começado antes. “Aqui não vai acontecer nada. Com esse funcionário também não vai acontecer nada. Morô? Você entendeu?”, diz. Logo depois, o motoboy afirma que estava “aguardando a viatura”.

A sequência de ofensas continua:”Quanto você tira por mês? Dois mil? Três mil [sic] real? Isso é inveja da gente, você tem inveja disso aqui, [sic] fio, você tem inveja dessas famílias, disso aqui [diz o homem enquanto mostra seu braço branco]”.

O vídeo correu grupos de entregadores, que amplificaram o caso. Emerson Osasco, do movimento Torcidas Antifascistas, foi um dos que compartilharam o vídeo nas redes.

Segundo o portal G1, o caso aconteceu no dia 31 de julho, e um vizinho foi responsável por gravar o vídeo. O entregador chamou a Guarda Municipal, que levou os envolvidos para a Delegacia de Valinhos, onde a vítima registrou um boletim de ocorrência. Segundo o motoboy, as ofensas começaram por um problema na entrega.

“Teve um momento que ele cuspiu em mim, jogou a nota no chão e disse que eu era lixo. Na frente da polícia, ele continuou com as agressões, me chamou de favelado”, disse a vítima, que não quis se identificar.

A Delegacia informou que, devido a repercussão do vídeo, irá realizar uma coletiva de imprensa às 16h desta sexta-feora 07 para dar mais informações sobre o caso.

Carta capital
Professor Edgar Bom Jardim - PE

quarta-feira, 3 de junho de 2020

Morte de George Floyd: as semelhanças entre 2020 e o histórico ano de 1968 nos EUA


Manifestantes do lado de fora de loja de bebidasDireito de imagemREUTERS
Image captionManifestantes posam do lado de fora de loja de bebidas em chamas nos Estados Unidos

Manifestações populares pacíficas e outras violentas tomam as ruas de dezenas de cidades nos Estados Unidos e, poucos meses antes da eleição presidencial, o candidato republicano diz falar em nome "da lei e da ordem" e representar a "maioria silenciosa" que condena os distúrbios. Parece 2020, mas é 1968.

Até 25 de maio desse ano, quando o policial branco Derek Chauvin ajoelhou-se por mais de oito minutos sobre o pescoço de George Floyd, um homem negro de 46 anos, desarmado, algemado e com o rosto no chão, matando-o por asfixia, as manifestações de 1968 eram o maior levante popular na memória recente dos americanos.

Na última semana, no entanto, conforme as cenas da morte de Floyd viralizavam na internet, em meio ao luto por mais de 105 mil vidas perdidas na pandemia de coronavírus e o desespero pelos mais de 30 milhões de postos de trabalho fechados em uma recessão comparável à Grande Depressão de 1929, a indignação e a revolta levaram às ruas milhões de pessoas, em mais de 140 cidades, em quase todos os 50 Estados americanos.

"Toda vez que há uma morte por violência policial, há protestos. Agora, a percepção de que os negros morrem mais na pandemia, que perdem mais seus empregos na crise, somado ao assassinato de George Floyd, tocou um nervo. A escala da frustração coletiva que vemos hoje só é comparável ao que vimos na década de 1960", afirmou à BBC News Brasil a historiadora da Universidade de Michigan Heather Thompson, especialista em movimento negro e violência policial.

Durante os anos 1950 e 1960, o movimento negro se articulou sob lideranças como Martin Luther King Jr. e Malcom X para lutar por bandeiras como os direitos civis e o fim da segregação racial nos Estados Unidos, oficial pelo menos desde o fim da escravidão, em 1865. Em 1964, uma lei passou a proibir que brancos e negros fossem separados em escolas ou no transporte públicos. E, em 1965, os Estados Unidos aboliram restrições ao direito ao voto, como contribuição fiscal ou nível de escolaridade, que na prática impediam a participação política da população negra.

Em 1968, Luther King expandiu o escopo do movimento e engrossou fileiras contra a Guerra do Vietnã, que naquele momento matava mais de mil soldados americanos por mês. Mas, em abril de 1968, o próprio Luther King foi assassinado com um tiro de fuzil no rosto pelo supremacista branco James Earl Rey, mais tarde condenado pelo crime. O assassinato foi o estopim para manifestações em mais de cem cidades. O movimento popular chegaria a seu auge em agosto daquele ano, com cenas de batalha campal entre manifestantes e a polícia em Chicago, que resultou em mais de 600 civis e 130 policiais feridos.

Manifestantes no topo de um carro da polícia queimado em Los Angeles, CalifórniaDireito de imagemEPA
Image captionManifestantes no topo de um carro da polícia queimado em Los Angeles, Califórnia

Thompson enumera algumas das semelhanças entre 1968 e 2020. "Assim como agora, os protestos de 1968 foram motivados pela desigualdade racial, mas também pela injustiça econômica e incompetência das autoridades, como na guerra do Vietnã. Em 1968, as pessoas sentiram que era hora de dar um basta, como vemos agora. O movimento era muito energizado por jovens, como agora. E, como em 1968, os protestos de 2020 vão aumentando de cidade em cidade e parece que não há fim", afirmou.

Há ainda uma série de paralelos possíveis entre 1968 e 2020: os questionamentos sobre os métodos de manifestação, as divisões dentro do movimento negro, o ambiente pré-eleitoral e a disseminação de informações pelos meios de comunicação - no primeiro caso a televisão, no segundo, as redes sociais.

"O ano mais traumático na história moderna dos Estados Unidos foi 1968. O segundo mais traumático é 2020, mas ainda faltam sete meses para ele terminar", resume James Fallows, correspondente de assuntos nacionais da revista americana The Atlantic.

Protesto pacífico ou violência e saques?

As manifestações da última semana se apresentaram de muitas formas. Em Denver, capital do Estado do Colorado, milhares de pessoas se deitaram na rua com o rosto colado ao chão, como Floyd foi morto, e gritaram em coro suas últimas palavras "eu não consigo respirar". Cena semelhante se repetiu em cidades de Michigan e da Califórnia.

Manifestantes protestam contra morte de homem negro em ação policialDireito de imagemGETTY IMAGES
Image captionTropas de choque estão usando gás lacrimogêneo e balas de borracha na tentativa de conter protestos, que escalaram para violência em alguns lugares

Em Baltimore, um protesto comandado pelo pastor Wetley West reuniu pessoas para se ajoelharem no chão e repetirem o nome de dezenas de negros mortos por policiais, sob o olhar da polícia. West desafiou um agente a também repetir os nomes das vítimas, o que ele fez. Ambos se cumprimentaram.

"Obrigado. Estou agradecido. Não viemos aqui para destruir nossa cidade. Só queremos que nossa voz seja ouvida", disse West ao policial, segundo reportagem do jornal Baltimore Sun. As palavras do pastor ecoam o desagrado de parte dos manifestantes com cenas de violência, depredação e saques para os quais têm degringolado protestos inicialmente pacíficos.

Nos últimos cinco dias, os arredores da Casa Branca, sede do Executivo americano, tiveram centenas de lojas e restaurantes parcialmente destruídos e saqueados. Ainda em Washington D.C., o monumento memorial ao ex-presidente Abraham Lincoln foi vandalizado - e na noite de ontem fortemente protegido pelo Exército - e o porão da Igreja St. John foi incendiado.

Em Los Angeles e Nova York, manifestantes pulavam sobre viaturas policiais que acabavam completamente destruídas.

Na tentativa de se adiantar aos ataques, comerciantes têm coberto a fachada dos estabelecimentos com tapumes de madeira em que eventualmente deixam recados aos manifestantes: "não sobrou nada para roubar".

Ao jornal The New York Times, o iraquiano Hussein Aloshani, dono de uma doceria em Minneapolis, onde Floyd foi morto, passou a ficar na porta da loja implorando para que o local não fosse destruído. "Por favor, eu não tenho seguro", ele gritava.

Martin Luther King Jr., cujos métodos de reivindicação previam desobediência civil e marchas não violentas, passou a ser lembrado para criticar os contornos violentos das marchas atuais, em uma leitura que especialistas afirmam ser errada do papel histórico do líder e divisiva para o movimento negro.

Em sua conta no Twitter, um dos filhos de Luther King Jr., Martin Luther King III tentou refutar aqueles que se apropriaram das palavras de seu pai para direcionar críticas a quem está nas ruas em 2020: "Como meu pai sempre falou ao longo da vida, o motim é a voz de quem não é escutado", escreveu King III.

Martin Luther King durante discursoDireito de imagemAFP
Image captionMartin Luther King Jr.: métodos de reivindicação previam desobediência civil e marchas não violentas

Malcom X foi um dos principais defensores de que a violência em protestos não representava barbárie, mas sim autodefesa e uma forma legítima de comunicação.

Para a historiadora Thompson, no entanto, há um exagero na diferenciação entre Martin Luther King e Malcom X. "As pessoas diziam que Malcolm X queria violência e Martin Luther King queria não-violência. Simplesmente não é verdade. Malcolm X disse muito claramente que acreditava em autodefesa, o que é muito diferente de pregar a violência. Ele está dizendo que vai proteger sua comunidade em vez de dar a outra face. Ambos estão debatendo como responder à violência. E, neste caso, violência estatal. Portanto, a ideia de que a violência é parte de uma ala específica do movimento negro faz parte do modo como escrevemos essa história e não é necessariamente a verdade", afirma Thompson.

Malcolm X, no entanto, não chegou a ver os levantes de 1968, já que foi assassinado em 1965. Curiosamente, a morte de Luther King ajuda a determinar o surgimento ou fortalecimento de movimentos negros que usam da violência como instrumento. Os Panteras Negras, por exemplo, adotaram esse caminho e passaram a instituir uma patrulha de cidadãos negros armados para supervisionar a abordagem policial a negros nas ruas das cidades americanas e reagir caso julgassem necessário.

Em 1968, as manifestações foram pacíficas - com festivais de música - mas também violentas - além de quebra-quebra nas ruas, saques, eventuais tiroteios, houve até mesmo o sequestro de pessoas "para transmitir uma mensagem": foi o que fizeram estudantes da Universidade Columbia que, para denunciar práticas racistas, fizeram cárcere privado de três funcionários da instituição por 24 horas.

Nos atuais protestos, existe uma carência de liderança clara, mas além de movimento antirracismo, há ainda atuação de segmentos adeptos a violência como grupos anarquistas e antifascistas, declarados terroristas nos últimos dias pelo presidente americano Donald Trump via Twitter.

"As pessoas estão cansadas de serem intimidadas e assassinadas pela polícia, especialmente os negros. É isso o que você obtém quando trata as pessoas assim. Anarquia", afirmou ao The New York Times o manifestante Don Hubbard, de 44 anos, que vive em Minneapolis.

Há ainda, tanto em 1968 quanto em 2020, a acusação recorrente de que brancos de organizações fascistas e de ultra-direita poderiam estar por trás de parte dos atos de vandalismo vistos nos protestos.

Cartas trocadas pelos diretores da CIA e do FBI em 1967 e divulgadas apenas três anos atrás mostram que as forças de segurança já diziam que distúrbios violentos em movimentos negros por direitos civis costumavam ser ação de alguma das quatro principais organizações de supremacistas brancos que atuavam nos Estados Unidos naquele momento.

Agora, há novas evidências a indicar interferência desses grupos nas manifestações. Nesta segunda, o Twitter tirou do ar uma conta de um suposto grupo antifascista americano que incitava as pessoas a saquearem áreas de maioria branca no país. De acordo com a plataforma, o perfil era falso e pertencia a um grupo de supremacistas brancos.

Trump tenta repetir efeito Nixon

Para a historiadora Thompson, os protestos de 1968 foram entendidos naquele momento como quebra da ordem social. "As pessoas não viram os atos como estratégicos para defender direitos. Olhamos para Chicago, 68, e dissemos: 'Oh meu Deus, os manifestantes antiguerra são tão violentos, os estudantes são muito violentos, ou os manifestantes negros dos direitos civis são tão violentos'."

Richard NixonDireito de imagemGETTY
Image captionEm campanha, o republicano Richard Nixon passou a se apresentar como o candidato da 'lei e da ordem'

Uma pesquisa de opinião pública do Instituto Gallup feita pouco depois do protesto de agosto de 1968 em Chicago mostrou que 56% da população aprovou a dura repressão policial ao ato e apenas 14% dos respondentes concordavam que os manifestantes tiveram cerceado seu direito a se posicionar.

A campanha do republicano Richard Nixon entendeu o sentimento dos eleitores e ele passou a se apresentar como o candidato da "lei e da ordem" e o representante da "maioria silenciosa" que na pesquisa admitia incômodo com os levantes. A bandeira contra a desordem foi um fator decisivo para a vitória de Nixon na corrida pela Casa Branca naquele ano.

A cinco meses de enfrentar as urnas para tentar a reeleição, Trump está afinado com a estratégia Nixon. Nos últimos três dias, ele foi várias vezes ao Twitter repetir o slogan "lei e ordem" e, em pronunciamento à nação, se colocou como o braço forte contra o caos social, inclusive mencionando que lançaria mão do Exército se prefeitos e governadores falhassem em conter manifestações violentas. Nesta terça-feira, Trump tuitou a expressão de Nixon, "maioria silenciosa".

"Ele percebeu uma janela de oportunidade política, de abraçar essa bandeira que pode ser popular com muita gente. Trump está atravessando duas crises históricas: a econômica e a sanitária. Se depender desse cenário, ele perde. Então se ele puder ficar até novembro falando em "lei e ordem" e condenando protestos, ele tem uma chance. Esse é o ambiente em que ele prospera", avalia o professor de relações internacionais da Faap Carlos Gustavo Poggio, especialista em história política americana.

O presidente Donald Trump com a boca meio aberta em pronunciamento na Casa BrancaDireito de imagemGETTY IMAGES
Image captionO presidente Donald Trump ameaçou usar Forças Armadas para conter protestos em pronunciamento na Casa Branca

Trump também já chamou os manifestantes de "bandidos" e afirmou via Twitter: "quando os saques começam, os disparos começam". A frase não é original do atual presidente. Ela foi dita em 1967 pelo chefe da polícia de Miami Walter Hedley, durante um depoimento a autoridades que o questionaram sobre suas ações diante de protestos pelos direitos civis dos negros. Na mesma ocasião ele ainda afirmou: "eu não me importo de ser acusado de brutalidade policial".

Especialistas afirmam que, em vez de acalmar os ânimos nas ruas, as ações de Trump tem levado à escalada no tamanho dos protestos e na violência. "As pessoas estão na rua pedindo Justiça e até agora nenhuma autoridade anunciou qualquer mudança em como os casos de violência policial são investigados e julgados. Não temos uma liderança capaz de acalmar as ruas. Na verdade, Trump inflama as pessoas", diz Thompson. A impunidade para policiais acusados de matar negros foi a tônica nos últimos anos, mesmo em casos rumorosos, como o de Eric Garner, estrangulado e morto em uma abordagem policial em 2014 em Nova York por vender cigarros não certificados.

Segundo Thompson, outra vez se coloca a questão da narrativa. "Se esses protestos forem entendidos como caóticos, violentos e sem propósito, então fica mais fácil para o eleitor dizer:'sou a favor dos direitos civis, mas esse povo na rua é só um bando de louco queimando tudo, então vou votar no Trump'", diz a historiadora.

Há, no entanto, diferenças importantes entre Nixon e Trump. A começar pelo fato de que Trump já é o presidente. Já Nixon era o candidato de oposição ao presidente democrata Lyndon Johnson, tão impopular que àquela altura havia desistido do concorrer à reeleição. "Trump pode vir a ser responsabilizado pela má condução da crise e pelas políticas que levaram à revolta social", diz Thompson.

Uma pesquisa feita pelo Instituto Ipsos e pela Agência Reuters nas últimas segunda e terça mostrou a ambivalência da situação. Se por um lado, 64% dos americanos se disseram simpáticos aos manifestantes e 55% desaprovavam a resposta de Trump, 75% disseram que a violência nos protestos enfraquecia o pleito das manifestações e que apoiavam atos pacíficos.

Outro aspecto relevante é o tempo. Os protestos em 1968 aconteceram pouco mais de dois meses antes da eleição, enquanto que agora há quase um semestre até que os americanos compareçam às urnas. "É muito tempo pra segurar com esse discurso, mas pode ser que os protestos ajudem a tirar o foco dos outros problemas agora e, se em agosto a economia começar a reagir, pode ser que a estratégia funcione. De qualquer maneira, nada é certo e o movimento é arriscado. Mas a história nos serve como um guia", diz Poggio.


Professor Edgar Bom Jardim - PE

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

Muros, pedintes e venda de água: as descobertas da indígena que mudou para a cidade para 'entender a lei dos brancos'


Alessandra Korap MundurukuDireito de imagemISADORA BRANT/BBC
Image captionAlessandra Munduruku diz que entrou na faculdade de direito para estudar 'a lei que os brancos criam, mas que nem mesmo eles respeitam'
Na aldeia onde eu nasci, há 35 anos, a gente costumava pescar no lago, ir atrás de fruta. Aí a cidade cresceu. Veio uma máquina enorme, fizeram loteamento, desmataram tudo.
Naquela época, eu já participava de reuniões com os caciques, mas ia mais para conversar com as mulheres. Quando percebi que estavam retirando nossos direitos ao território, comecei a participar mais.
No passado, todo o vale do Tapajós até o que é hoje a cidade de Santarém (PA) era nosso, do povo indígena munduruku. Tem como dizer a um sabiá que não voe para outra terra porque lá tem dono? Não tem. O mesmo vale para um porcão ou para uma onça. A chegada dos homens brancos é que foi colocando limites.
Quando comecei a me envolver com a nossa luta, a maioria dos caciques não aceitava que as mulheres falassem nas reuniões. Elas tinham que ficar do lado de fora, se abanando, ou com os filhos. Hoje as mulheres pegam no microfone, e hoje os homens veem que as mulheres são quem mais protege.
Quando alguém chama um guerreiro para caçar, ele pega a flecha e vai embora. A mulher, não. Ela tem que ver o que tem que levar para o filho, se vai ficar uma planta, um macaco, um papagaio, se alguém vai ficar com fome. As mulheres pensam no coletivo. Os homens são mais soltos. Nós fomos ensinar isso.
Rio Tapajós em Alter do ChãoDireito de imagemGETTY IMAGES
Image captionO rio Tapajós em Alter do Chão (PA); no passado, diz Alessandra Munduruku, todo o vale do rio era habitado por seu povo.

Ensino do branco

Vai fazer um ano que sou estudante. Me mudei para Santarém e entrei na faculdade de direito para entender a lei que os brancos criam, mas que nem eles mesmos respeitam.
Para nós, indígenas, o que vale é a nossa palavra, a palavra do cacique. Não precisa ter papel. Mas, com os grandes projetos na nossa região e a não demarcação das nossas terras, a gente precisa começar a pegar na caneta, escrever no papel e divulgar.
Mesmo sendo uma universidade dentro da Amazônia, ela é muito preconceituosa, muito racista. A universidade foi feita para o branco, não para os povos indígenas. Você nota isso nas falas, nos ensinamentos.
Por isso nós, indígenas, brigamos no Brasil por uma educação diferenciada. O sistema do branco diz que as aulas têm que acontecer na escola. Se uma pessoa que não é professora leva uma criança para a roça para ensinar a plantar, ou vai ao rio ensinar a pescar, o sistema diz que é perda de tempo, que aquilo não serve como ensino.
Mas educação não se ensina só na sala de aula. No rio tem matemática e ciência. Na floresta, também. O ensinamento não é só o que o branco traz no livro.
Alessandra Korap MundurukuDireito de imagemISADORA BRANT/BBC
Image captionAlessandra Munduruku durante reunião na Terra Indígena Capoto Jarina, entre 14 e 17 de janeiro

Mudança para a cidade

Quando fui morar em Santarém com meus dois filhos e marido, levei algumas coisas da minha casa, como algumas galinhas. Eu logo estranhei o espaço, que era muito pequeno. Quem mora na aldeia tem a liberdade de correr ou andar para onde quiser. Numa cidade, você não pode fazer isso, porque tem limite, ali tudo é muro.
Meu filho falou: "Mãe, eu quero comer banana". Lá na aldeia tem um monte de banana estragando. Mas como iríamos trazer banana de lá, a quase 400 km de distância? Então, a gente comprou.
Tínhamos um pouco de recurso. Antes de me mudar para a cidade, fizemos um bingo para me manter lá. Com esse recurso a gente comprava peixe, pagava aluguel, comprava água. Na nossa cultura, a gente não compra água.
Se você for a qualquer casa indígena, tem água, eles te oferecem. Na cidade, não. Se você não tiver recurso para comprar, você não sobrevive.
A gente comeu todas as galinhas. Quando começou a acabar o recurso, comprávamos só ovo, que era barato, e conservas.
Era tão doído quando meus filhos pediam para comer peixe e você não sabia de onde tirar. Na aldeia, os filhos nem precisam pedir. Eles mesmos sabem pescar e assar. Essa dor que a gente sente quando mora na cidade, eu não quero para os meus parentes.

Luta pela terra

Em Santarém, conheci gente do povo warao, da Venezuela. Perguntei à parente — porque para nós eles são parentes — por qual motivo eles tinham saído da sua terra, de seu país, para viver na rua, pedindo esmola. Ela me disse que tinha sido obrigada a sair porque as terras deles foram tomadas. Para que os filhos não morressem de fome, tiveram de vir para cá pedir esmola.
É por esse motivo que lutamos para garantir nossas terras. Se não lutarmos, qual país vai dar terra para gente? Qual país vai botar munduruku, caiapó, yanomami no seu país?
Não fomos nós que invadimos outros países, os países é que estão nos invadindo. E o Brasil ainda está sendo colonizado, esse processo nunca parou de acontecer.
Hoje o governo quer construir uma ferrovia, a Ferrogrão, para levar soja e milho do Mato Grosso até Santarém. Lá, vão encher os navios e mandar para a China e para a Europa.
Onde essa soja vai ser guardada antes de ir para o navio? Em silos e portos na beira do Tapajós. Essa soja cheia de agrotóxico vai contaminar ainda mais o nosso rio. É por isso que eu digo que a Europa, a Ásia e outros países ainda estão massacrando os indígenas.
Garimpo de ouro no rio MarupáDireito de imagemPLANET LABS
Image captionGarimpo de ouro no rio Marupá, nas proximidades da Terra Indígena Munduruku, no Pará; contaminação por mercúrio pode causar danos neurológicos em humanos

Contaminação por mercúrio

A mineração nas nossas terras é outra forma de colonização. Ela traz prostituição, droga, doença. Ela contamina os rios e os peixes com mercúrio, e o povo tem de sair da aldeia para ir se curar na cidade.
Sabe quando descobrimos que a gente estava com mercúrio no sangue? Só em 2016, quando um amigo nosso adoeceu.
Ele tem 33 anos e nos ajudou bastante na autodemarcação da terra Sawre Muybu. Ele foi se tratar em São Paulo e recebeu o resultado: estava com alto índice de metal no sangue. Agora ele já não anda mais, a fala dele é bem fraquinha. A última vez que falei com ele... (interrompe e chora)
A gente sabe que, daqui a uns tempos, ninguém mais vai conseguir chegar aos cem anos. A gente sabe que nossas crianças vão ficar doentes e vão morrer. Tem criança que não anda, que está em cadeira de roda. Tem mulheres que não estão engravidando mais, não conseguem.
Os nossos parentes que estão envolvidos com o garimpo e estão defendendo a mineração estão matando seu próprio povo. Quando é só o governo, só os brancos, a gente tem como lutar. Mas, quando nossos próprios parentes estão envolvidos, é muito dolorido.
Já fui até ameaçada de morte por falar contra o garimpo. Mas eu vejo o sofrimento do nosso povo, eu sinto a dor das mulheres, e então eu continuo a falar.

Democracia para os indígenas

Em 2019, falei a 270 mil pessoas em Berlim (em uma das Marchas Pelo Clima). Nunca vi tanta gente loira, branca, de olhos verdes e azuis. Eu disse a eles que, para nós, povos indígenas, nunca existiu democracia.
Protesto mundurukuDireito de imagemAGÊNCIA BRASIL
Image captionIndígenas munduruku protestam em frente ao Ministério da Justiça, em Brasília, pela demarcação da terra indígena Sawre Muybu, no Pará
Belo Monte está aí, apesar dos gritos dos povos indígenas. As usinas de Teles Pires e São Manoel, também. Existiu democracia?
Essas usinas saíram no governo do PT. Bolsonaro, a gente sabia que ele queria nos matar desde o começo. Mas também tem a morte que é silenciosa, por aquele que pega na sua mão dizendo que é seu amigo.
Lutamos muito nesses últimos anos. Eu estava com os guerreiros e guerreiras munduruku que fecharam uma estrada e deixaram a cidade de Itaituba sem combustível. Impedimos que o governo fizesse audiências sobre a exploração de madeira nas florestas nacionais de Itaituba. Já barramos uma audiência sobre a Ferrogrão.

Resgate das urnas sagradas

Mas o momento mais especial que eu já vivi aconteceu em 24 de dezembro de 2019. Foi quando recuperamos urnas sagradas que os arqueólogos tiraram de onde fizeram as hidrelétricas de São Manoel e Teles Pires. Eles levaram as urnas para um museu de Alta Floresta (MT), e muitas delas foram vendidas.
Faz tempo que a gente vinha brigando para tentar recuperar as urnas. Elas são os espíritos dos nossos antepassados: a mãe dos peixes, a mãe das queixadas, a mãe da tartaruga, a mãe do jabuti, a mãe do tracajá.
Depois que elas foram para o museu, coisas ruins começaram a acontecer. Muitas crianças viviam doentes, com febre, diarreia. Meu tio, que é pajé, disse que tínhamos de resolver o problema e atender o que os espíritos estavam pedindo, que era voltar para o local escolhido por eles.
Viajamos por seis dias até Alta Floresta, entramos no museu e conseguimos levar as urnas. Foi um momento histórico.
Professor Edgar Bom Jardim - PE