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domingo, 13 de junho de 2021

'Brasil nunca aplicou Paulo Freire', diz pesquisador



José Eustáquio Romão | Foto: Divulgacao

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Amigo pessoal de Freire, Romão diz que críticos do educador "falam bobagem" sobre sua influência na educação brasileira

"Chega de doutrinação marxista. Basta de Paulo Freire". A frase, que aparecia em uma faixa durante a manifestação contra o governo Dilma Rousseff em Brasília, em março de 2015, causou polêmica nas redes sociais e provocou até uma resposta da ONU, defendendo o educador brasileiro famoso mundialmente pela teoria da pedagogia crítica.

Considerado patrono da educação no Brasil desde 2012, Freire dá nome a institutos acadêmicos em países como Finlândia, Inglaterra, Estados Unidos, África do Sul e Espanha, mas, em sua terra natal, tem sido criticado por manifestantes e articulistas pelo que consideram sua "influência esquerdista" no ensino.

O historiador e doutor em Educação José Eustáquio Romão, seu amigo pessoal e especialista em sua obra, discorda: "Paulo Freire nunca foi aplicado na educação brasileira. (...) Ele entra (nas universidades) como frase de efeito, como título de biblioteca, nome de salão."

Foto: Reprodução Twitter

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Manifestantes criticaram Paulo Freire durante protestos anti-governo em março de 2015

Em entrevista à BBC Brasil, ele diz que as ideias e o método de alfabetização de adultos criado por Freire já serviram de base para políticas públicas em diversos países, mas ainda se resumem a experiências pontuais no Brasil.


"Estou convencido de que se aplicarmos hoje (o método), acabamos com o analfabetismo no Brasil em um ano", afirma.

Segundo os dados mais recentes do IBGE, o Brasil ainda possui 13 milhões de analfabetos, apesar da diminuição do índice nos últimos anos.

Romão, que é um dos fundadores do Instituto Paulo Freire e, atualmente, diretor de mestrado e doutorado na Universidade Nove de Julho (Uninove), em São Paulo, passou os últimos 15 anos em busca do manuscrito perdido do livro Pedagogia do Oprimido, obra mais conhecida e traduzida do educador pernambucano, morto em 1997.

O manuscrito, que contém trechos inéditos do livro – publicado nos Estados Unidos em 1970 e proibido pelo regime militar brasileiro até 1974 – sobreviveu à ditadura chilena nas mãos de Jacques Chonchol, ex-ministro de Agricultura no governo de Salvador Allende (1970-1973). Agora, foi devolvido ao Brasil.

Confira alguns dos principais trechos da entrevista.

BBC Brasil: Como o senhor descobriu a existência do manuscrito? E como o encontrou?

José Eustáquio Romão: Foi uma busca de 15 anos. Algumas vezes ele (Paulo Freire) dizia para nós, que éramos amigos mais próximos, que gostaria de rever o manuscrito antes de morrer. Mas, pelo que a gente sabia, os originais do livro tinham sido datilografados.

Paulo era muito desorganizado. Ele escrevia até em guardanapo quando tinha uma boa ideia. Então um de seus amigos juntou essa papelada e datilografou em 1968. Quando Paulo falava de manuscrito, eu achava que ele estava delirandoMas não estava.

Ele foi um dos primeiros a ser preso pelos militares, em abril de 1964, porque havia sido convidado a fazer parte de um projeto do governo João Goulart após o sucesso da sua experiência de alfabetização de camponeses no Rio Grande do Norte, em 1963.

Após 70 dias na prisão, ele conseguiu se exilar na Bolívia e, de lá, foi para o Chile, onde conheceu o ministro Jacques Chonchol, uma figura de destaque na política chilena, que articulou a eleição de Salvador Allende. Chonchol chamou Paulo para trabalhar com ele e os dois ficaram amigos.

Anos depois, Paulo foi convidado a ensinar aos doutores em Harvard (nos Estados Unidos), mesmo sem nenhum título, por causa de seu método de alfabetização de adultos. Antes de ir, decidiu copiar os originais de seu livro e dar este manuscrito de presente ao casal Chonchol.

Só que, depois de Allende, Chonchol era o homem mais visado pela polícia do (general Augusto) Pinochet. Ele só não foi morto no palácio junto com Allende (no golpe militar chileno, em 1973) porque estava em missão, mas chegou a Santiago no dia do golpe. Avisado pelos amigos, ele fugiu pela cordilheira (dos Andes). No fim, foi parar na França e ficou 20 anos no exílio.

A polícia de Pinochet invadiu a casa de Chonchol em Santiago, levou uma série de documentos e queimou livros. Mas o manuscrito de Paulo Freire parecia um documento sem importância, então ficou intacto. Anos depois, a irmã do ex-ministro conseguiu sair do país para visitá-lo na França e levou o manuscrito, achando que poderiam ser documentos pessoais.

Quando eu finalmente consegui localizá-lo, Chonchol me disse que várias vezes teve a tentação de doar o manuscrito para a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) em Paris, mas resolveu não fazê-lo. Eu consegui convencê-lo a devolver o manuscrito para o Brasil.

BBC Brasil: Quais são as principais diferenças entre o livro Pedagogia do Oprimido como é conhecido hoje e o manuscrito?

Romão: A parte do livro em que Paulo Freire fala sobre a "teoria da ação revolucionária" não existe em nenhuma edição em nenhuma parte do mundo. O que nos faz supor que os (editores) americanos tiraram diversas partes – eu já fiz uma leitura comparada e comprovei que não estão lá.

Foto: BBC
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Trechos retirados do livro original por editores americanos descreviam, com diagramas, uma "teoria da ação revolucionária"

Eles tiraram coisas que acharam um pouco mais perigosas para a ideologia liberal norte-americana. Não fazem por mal, mas por princípio ideológico. É uma teoria de esquerda mesmo, diz que o sujeito da história não são as lideranças, é o coletivo das massas oprimidas. Americano não vai admitir isso, nem os Democratas.

BBC Brasil: O que a Fundação Paulo Freire pretende fazer com o original?

Romão: A família dele nos autorizou a fazer mil exemplares do texto, mas não a vendê-los. Estamos distribuindo uma versão digitalizada a editores e às grandes bibliotecas do mundo, para que as novas edições se baseiem nisso aqui.

O manuscrito atualmente está escondido, eu o escondi. Ele vale milhões. Além disso, não queremos que suma novamente (risos).

BBC Brasil: Que relevância teria uma nova edição deste livro num momento em que setores da sociedade fazem duras críticas ao PT - do qual Freire foi membro fundador – e à influência dele na educação brasileira?

Romão: Alguns críticos falam muita bobagem, dizem que a educação brasileira está ruim por que Paulo Freire está sendo aplicado. Primeiro, Paulo Freire nunca foi aplicado na educação brasileira. Estamos lutando para ver se ele entra nas universidades até hoje.

Ele entra como frase de efeito, como título de biblioteca, nome de salão. Isso eu já vi no Brasil inteiro. Mas o pensamento dele não entrou até hoje.

BBC Brasil: Por que não?

Romão: Antes eu achava que era porque ele não tinha títulos e o Brasil é um país muito credencialista. Isso a gente deveria aprender com os norte-americanos, que o convidaram para Harvard. Eles não fazem questão de diploma, fazem de competência.

Paulo nunca fez Pedagogia, nunca fez licenciatura. Fez Direito à noite, um curso mal feito, abandonou a profissão na primeira causa. Mas era um gênio.

Lendo com mais calma e profundidade a obra dele, vejo que ele faz uma inversão intelectual tão violenta que os intelectuais tremem nas bases. Todos eles têm a mania de considerar que devemos partir da teoria para iluminar a realidade, e Paulo Freire desmonta isso. Ele diz que a legitimidade do conhecimento só vem da prática.

BBC Brasil: Como você responde a críticas sobre o viés de esquerda na obra de Paulo Freire?

Romão: Eu não tenho o conceito de ideologia que (a filósofa) Marilena Chauí tem. Ela considera que ideologia é algo ruim, para mim é apenas a visão de mundo. Todo discurso é ideológico no sentido de que parte de determinada perspectiva, do olhar de quem olha.

Quem faz esse tipo de crítica está considerando que seu próprio discurso não é ideológico. Ao meu juízo, é menos ideológico (de maneira negativa) quem revela a sua visão de mundo logo no início, porque prepara o interlocutor para dizer "há outras visões de mundo, há outras ideologias que interpretariam isso de maneira diferente".

Há um grupo conservador que considera Paulo Freire de extrema esquerda. E há o grupo de esquerda que considera Paulo Freire conservador, idealista. Quem tenta conciliar teorias, como ele tentou conciliar – sem fazer ecletismo – leva tiro de todos os lados.

BBC Brasil: A obra de Freire também é criticada por ter referências a figuras como Che Guevara (guerrilheiro argentino) e Mao Tsé-Tung (líder comunista chinês).

Romão: Quero que me apontem o texto de Paulo Freire em que ele insiste tanto em Mao Tsé-Tung.

BBC Brasil: Pedagogia do Oprimido tem uma referência...

Romão: Ele faz apenas uma referência a uma teoria das mais amenas de Mao. Marx dizia que o motor da história é a classe operária. E Mao dizia que não, que existe o motor, mas que a fagulha do motor são as classes médias, que desencadeiam acontecimentos.

Ele diz que o povo pode fazer coisas irracionais e, por isso, tem que haver coordenação do processo revolucionário e isso nem sempre ocorre pelo proletariado. Marx e os marxistas ortodoxos, inclusive, devem ter se revirado no túmulo com essa.

Além disso, Paulo não aceita o maoísmo puro, nem o marxismo puro. Aliás, ele usava uma metáfora interessante, dizia que era "um barbudo no meio de dois barbudos": Jesus Cristo e Karl Marx.

Por isso, há repercussões políticas importantes na teoria dele. Os freireanos não propõem eliminar o opressor e, sim, salvá-lo também, a partir do momento em que os oprimidos se libertam.

BBC Brasil: O que Paulo Freire diria sobre a violência no regime comunista chinês, no soviético e no cubano?

Romão: Tem um texto seminal dele, que está na Pedagogia da Autonomia, em que ele diz que somente a consciência fanática, que ele chama de fundamentalismo, leva ao processo de violência e destruição.

Ele diz que a tendência do oprimido – ao incorporar o discurso, os valores e a atitude do opressor – é a violência física ou simbólica.

Por isso mesmo a humanidade só avança quando os oprimidos deixam de tentar imitar seu opressor. Quando eles não querem trocar de lugar com o opressor, mas mudar as relações de opressão. E por isso que é raro na história isso ocorrer.

BBC Brasil: Como você responderia aos críticos que dizem que é ruim ter Paulo Freire sendo lido por estudantes porque isso pode, de alguma maneira, "transformá-los em esquerdistas"?

Romão: Não significa transformá-los em esquerdistas porque o que Paulo Freire mais insiste é "não me repita".

Esse é o princípio fundamental da metodologia freiriana de construir conhecimento: "não me repita, mas se considerar que alguma ideia minha resolve algum problema da realidade, reinvente essa ideia em cada contexto". Não sei que influência maléfica nos alunos seria essa.

Paulo Freire | Foto: Instituto Paulo Freire via MEC

CRÉDITO,INSTITUTO PAULO FREIRE VIA MEC

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No Brasil, Freire é criticado por viés de esquerda em suas obras mais conhecidas

BBC Brasil: Algum país realmente aplicou as ideias de Paulo Freire na educação?

Romão: Um país muito simpático ao conjunto da obra do Paulo Freire é a Finlândia, que avançou muito na educação. Cuba também acabou com o analfabetismo com base no método. A Coreia do Sul também. Para você ter uma ideia, o maior seminário internacional sobre Paulo Freire foi realizado na Universidade Nacional da Coreia do Sul há três anos. Estávamos lá debatendo com todas as autoridades coreanas e todos os freirianos do mundo.

Há projetos freirianos na Hungria, no Japão... tem um grupo trabalhando com a alfabetização de decasséguis que sofrem por ir viver lá e não dominar o idioma. Estão usando o método de Paulo Freire para alfabetizá-los na segunda língua. Os grupos que estão tendo sucesso são os que reinventaram. Aplicaram só os princípios, mas têm pontos de partida que são bem diferentes.

O Brasil não aplica sequer esse método. Há experiências de sucesso pontuais, mas isso não é usado como política. Sei também que na Armênia agora estão fazendo uma grande experiência com as ideias de Paulo Freire. E no País Basco.

Certa vez, eu estava no deserto de Góbi, na Mongólia, com o povo nômade, em missão. Em uma tenda, vi os criadores de cabra sendo alfabetizados por dois professores. Eu não entendia nada do que eles falavam, mas um nome soava meio familiar. Era Paulo Freire. Eles estavam com o último capítulo da Pedagogia do Oprimido nas mãos, traduzido para o chinês, que trata justamente do método de alfabetização.

BBC Brasil: O que há de tão extraordinário no método de alfabetização de adultos de Paulo Freire?

Romão: Fui a Angicos, no sertão do Rio Grande do Norte, porque lá, Paulo Freire, com um grupo de estudantes – nenhum deles de Educação – alfabetizou primeiro uma turma de 30 e, no final, 300 camponeses. Por que hoje a gente começa com uma turma de 30 adultos e termina com três? Por que eles não aguentam o curso?

Conseguimos conversar com os alfabetizados daquela época. Eu saí convencido de que, se aplicarmos hoje o que fizeram lá, acabamos com o analfabetismo no Brasil em um ano. É tão simples.

A pessoa precisa aprender que as letras constroem as palavras, mas não vai ter interesse nenhum se não souber pra que a palavra serve na sua vida. Por isso, um "círculo de cultura" substitui a aula. Nele, você vai discutir a vida das pessoas. Parece que está perdendo tempo, mas em um mês eles são alfabetizados, com 40 horas de aula.

José Eustáquio Romão | Foto: Divulgação

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Manuscrito de Pedagogia do Oprimido "vale milhões" e está escondido, segundo Romão

Tenho uma experiência escrita à mão por uma pessoa que foi alfabetizada por ele em Brasília, a famosa experiência do tijolo. Tijolo foi uma palavra (usada por Paulo Freire como) "geradora" porque (os alunos) eram operários da construção civil, estavam construindo Brasília.

Ele mostrou aos alunos um tijolo físico, o partiu e colou nele as sílabas da palavra tijolo. E pediu que as pessoas formassem outras palavras a partir daquelas sílabas. As pessoas primeiro gravaram mentalmente as sílabas e as combinaram: jiló, laje, etc. Uma senhora, no entanto, fez uma frase: "Tu já lê". Estava alfabetizada.

  • Camilla Costa
  • Da BBC Brasil em São Paulo
Professor Edgar Bom Jardim - PE

domingo, 10 de janeiro de 2021

Enem vai expor nova camada de exclusão entre alunos mais pobres, diz estudioso de desigualdade na educação



Participante em prova do Enem em 2017
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Participante em prova do Enem em 2017; alguns grupos defendem novo adiamento da prova, para dar mais tempo de alunos se prepararem e de o país sair do pico de novos casos da covid-19

O Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), que realizará sua edição 2020 em 17 e 24 de janeiro, vai escancarar novas camadas de desigualdade na educação surgidas durante a pandemia do coronavírus e que prejudicam principalmente os jovens mais vulneráveis no terceiro ano do ensino médio.

A avaliação é de José Francisco Soares, especialista em mensuração de desigualdade de ensino que entre 2014 e 2016 foi presidente do Inep, órgão do Ministério da Educação responsável pela aplicação do Enem e das demais avaliações da educação no país.

É também professor emérito da UFMG e cocriador do Indicador de Desigualdades Educacionais e Aprendizagens (IDeA), índice que avalia, em cada município brasileiro, o nível de aprendizagem e suas desigualdades entre diferentes grupos sociais e raciais.

Na prática, essas novas camadas de desigualdade a que se refere Soares farão com que alunos com melhores condições de estudar - por exemplo, os que tiveram segurança alimentar, acesso à internet e às aulas - ou que já tivessem concluído o ensino médio terão mais chance de conseguir vagas em universidades via Enem.


Isso em detrimento dos alunos mais vulneráveis, que ficarão mais distantes do ensino superior e, como consequência, com menos chance de renda maior e de oportunidades melhores de empregos no futuro. Os mais prejudicados, na visão de Soares, tendem a ser os alunos de ensino médio que não conseguiram acompanhar as aulas.


Criaria-se, assim, uma nova exclusão, mesmo entre grupos que tradicionalmente já tinham dificuldades de acesso ao ensino superior.

Para Soares, a despeito dos novos entraves para a realização do Enem, depois de um ano de ensino remoto e em meio a um novo pico de casos de covid-19 no país, não faria sentido adiar o exame novamente - ele avalia que o Inep tem estrutura logística suficiente e que, ao adiar as provas, jogaria-se no aluno o ônus por seu possível mau desempenho, em vez de tratar o problema como algo estrutural.

"Prefiro dizer: há um problema novo (de desigualdade) que a gente precisa tratar", opina.

O tema, porém, tem despertado intensos debates nos últimos dias. Na sexta-feira (8/1), a Defensoria Pública da União entrou com uma ação na Justiça pedindo o adiamento do exame, afirmando que "não há maneira segura para a realização de um exame com quase seis milhões de estudantes neste momento, durante o novo pico de casos de covid-19".

Em entrevista à BBC News Brasil, Soares comentou também sobre outras manifestações crônicas da desigualdade de ensino e de estratégias para combatê-las - usando, inclusive, a tecnologia, que na pandemia ganhou espaço inédito na educação.

Francisco Soares
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Francisco Soares foi presidente do Inep (órgão do MEC) e ajudou a criar novo indicador de desigualdade na educação

Veja a seguir trechos da conversa, divididos por tópicos:

Enem: logística e desigualdades

Questionado pela reportagem se este será o Enem mais desafiador dos cerca de 20 anos de história do exame, Soares diz que a equipe técnica do Inep está preparada para as questões logísticas da prova mesmo nas condições impostas pela pandemia.

"Costumo falar que se o Brasil entrasse numa guerra, o coordenador logístico teria que ser alguém dessa equipe (do Inep), que há muitos anos vem conseguindo fazer o exame no país: a prova chega, os fiscais chegam, é muito impressionante. O Brasil tem essa capacidade logística também nas vacinas, nas eleições. Esse é um lado que dá um certo conforto", diz.

"Neste ano tem o desafio do distanciamento social, mas o número (de 5,7 milhões de inscritos) é muito menor. Não estamos batendo nos 9 milhões. Esse grupo experiente vai abrir os espaços necessários (para a realização da prova)."

Do ponto de vista de ensino durante a pandemia, porém, a questão é mais grave, diz Soares.

Apesar de acreditar que a desigualdade de acesso ao ensino superior é bastante amenizada pela Lei das Cotas - que reserva 50% das vagas de universidades e institutos federais a alunos de escolas públicas -, o Enem deste ano vai escancarar problemas que se aprofundaram.

"A vantagem (dos jovens) que estudam em escolas privadas e que têm na família um apoio maior vai se compondo de tal maneira que, quando chega a hora do Enem, é quase um jogo de carta marcada. Ele escancara as desigualdades. Só que neste ano isso ficou pior, porque criamos uma nova desigualdade, entre os alunos que estão terminando o ensino médio (e não conseguiram acompanhar as aulas) e os que já tinham terminado. Uma nova desigualdade entre os mais pobres. Criamos uma exclusão nova", explica.

"Não estou dizendo que a gente deve adiar o Enem, que não deve ter Enem. O que estou dizendo é que a gente precisa tratar disso de forma concreta. (...) Uma hipótese provável é que vamos ter menos estudantes de ensino médio das escolas públicas sendo admitidos (em universidades públicas, em favor de alunos que já haviam concluído o ensino médio antes da pandemia). Não é fácil, porque é uma distinção entre dois grupos que já eram excluídos. Por isso falo que estamos inventando uma nova desigualdade."

Participante com prova do Enem, em foto de arquivo
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Participante com prova do Enem, em foto de arquivo; edição de 2020 do exame vai expor novas camadas de desigualdade entre jovens que conseguiram ou não estudar durante a pandemia

Uma possível solução, embora de implementação difícil, seria reservar vagas nas universidades públicas para alunos que estavam no terceiro ano, em proporção semelhante ao que cada universidade aprovou no ano anterior, diz ele.

Debate sobre adiamento do Enem

Embora as soluções não sejam fáceis, Soares acha mais eficiente focar os esforços nelas do que em discutir um eventual novo adiamento do Enem - que tem sido defendido por parte dos estudantes, analistas de educação e grupos políticos, para dar mais tempo de preparo aos jovens e tentar sair do pico da pandemia.

"Acho que (adiar) não teria nenhum efeito, basicamente. Temos um processo de seleção, infelizmente, que vai separar (jovens admitidos ou não no ensino superior). Prefiro perceber que houve uma nova desigualdade e não deixar esses alunos padecerem. Mas acho que o sistema tem que continuar", afirma.

"O Brasil tem (o hábito) de transferir culpa. Então, quando adio o Enem, estou também criando uma fantástica justificativa: 'você não passou, o problema é seu'. Prefiro dizer: há um problema novo que a gente precisa tratar. Não vai ser com algo episódico (adiamento) que vamos resolver."

Evasão escolar, a 'batalha' principal de 2021

Pesquisas de opinião recentes com pais de alunos da rede pública de ensino sugerem que um alto índice deles - até um terço - teme que os filhos abandonem a escola por conta da pandemia.

Para Soares, evitar a evasão escolar será o maior desafio da educação neste ano.

"Com todas as críticas que a gente pode ter, o país vinha melhorando ao longo desses anos. A primeira melhoria foi levar o aluno para a escola. (...) Onde começa o problema? Aos 13 anos. A criança entra na adolescência e começa a desistir (da escola). É isso que a pandemia vai acirrar", afirma.

Especialistas apontam que, ao sair da escola e entrar precocemente no mercado de trabalho - particularmente em um momento de crise econômica -, esse jovem iniciará uma trajetória de piores perspectivas profissionais, menores salários e menor chance de mobilidade social.

"Temos que cuidar para a criança não sair da escola. Esse é o esforço de todo mundo - da igreja, da cidadania, dos partidos, de quem for. Essa é a batalha deste ano. Com acolhimento, preciso criar um ambiente para trazer o aluno para a escola. Tem também os professores, que passaram um ano muito difícil. E eles precisam ganhar prioridade na vacinação. A gente precisava sinalizar que isso é importante. Falta no Brasil essa vontade de colocar a criança no centro (das políticas públicas)."

A evasão e a repetência escolares são também uma grande fonte de desperdício de recursos, uma vez que mantêm o sistema educacional mais inchado para atender alunos que demoram a completar - ou sequer completam - o ciclo de anos de estudo.

"Quando a criança sai ou toma bomba, eu tenho um sistema maior do que preciso. Então a criança precisa ficar na escola."

Criança estudando
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"Criamos uma nova desigualdade, entre os alunos que estão terminando o ensino médio (e não conseguiram acompanhar as aulas) e os que já tinham terminado", diz Soares

Desigualdades educacionais crônicas

O mais recente Índice Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), principal mensuração da qualidade do ensino no país e divulgado pelo Ministério da Educação em setembro, apontou avanços na educação geral do Brasil, embora poucos Estados tenham alcançado as metas previstas.

Mesmo esses avanços devem ser lidos com cautela, explica Soares, porque mascaram desigualdades educacionais invisíveis aos dados.

"Eu colocaria a 'melhora no Ideb' entre aspas. Porque o Ideb (mensura o desempenho escolar) das crianças que estão na escola. As que saíram, já era. É algo tipicamente brasileiro", diz o pesquisador.

"Imagina: você é brasileiro e saiu da escola por um motivo qualquer. Você é quem mais precisa da escola. Mas você não impacta o indicador. Isso é de um cinismo estrutural. (...) Além disso, temos uma expectativa muito baixa" em relação à educação pública, argumenta.

Estratégias para avançar: de tecnologia a ensino integral

"A pandemia trouxe problemas novos para os quais não temos solução. Como fazer a escola funcionar em uma situação como esta? Mas tem uma coisa importante que a pandemia está nos ensinando a amadurecer à força: está nos dizendo que, para vencer a desigualdade, preciso da tecnologia", defende Soares.

"Na saúde, estamos perto de ter um prontuário único (para cada paciente), algo que traz muitos problemas em potencial, mas também muita facilidade: quando você for atendida, o médico vai conhecer toda a sua história. Mas na educação a gente não tem esses dados. Com a tecnologia, talvez a gente tenha uma ferramenta (para acompanhar todo o desenvolvimento escolar), não preciso esperar até o aluno estar no cursinho (para diagnosticar problemas)."

Um avanço que tem sido comemorado por Soares e outros especialistas em educação é a aprovação recente, pelo Congresso, do Fundeb, fundo de dinheiro público para a educação básica que passa a ser permanente e obrigatoriamente ganhará mais recursos por parte do governo federal.

Aula de matemática
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Impedir que jovens abandonem a escola deverá ser o maior desafio da educação em 2021

"Isso é uma coisa boa, mas temos que usar bem: oferecendo escola de tempo integral, para professor e aluno. (...) E uma quantidade enorme de jovens gostaria de, durante o ensino médio, ter alguma certificação (técnica). Uma vez, uma pessoa que veio instalar uma antena na minha casa me disse: 'terminei o ensino médio e não sabia nada. Precisei pagar (para se capacitar e conseguir seu emprego)'. De novo, olha como o país é: não deu nada a ele e, para ele ter emprego, teve de pagar."

"Então essa é uma primeira mudança razoável: junto com a escola, ter uma certificação. E colocar o ensino superior no horizonte (dos jovens de escolas públicas). Tem muita iniciativa interessante. As escolas de tempo integral de Pernambuco, por exemplo, têm uma disciplina de projeto de vida. Não é dizer ao aluno: 'sonhe'. É dizer 'você está aqui, pense no que vai ser feito (para crescer)'".

Mas o ponto de partida é de fato enxergar cada brasileiro como merecedor de uma educação de alta qualidade e de acesso pleno à cidadania, opina Soares.

"O Brasil é um país que tem uma porta de entrada para a cidadania. Nós precisamos vencer isso. É uma decisão que precisa estar na nossa cabeça: todo brasileiro tem que ser brasileiro. O sonho brasileiro é ser o opressor. 'Eu quero estar no seu lugar'. (Mas) o projeto que vai nos mover é dizer: 'eu vou puxar todo mundo para cima'."

  • Paula Adamo Idoeta
  • Da BBC News Brasil em São Paulo
Professor Edgar Bom Jardim - PE