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sexta-feira, 30 de julho de 2021

Por que Getúlio Vargas inventou em 1930 o Ministério do Trabalho, extinto e agora recriado por Bolsonaro





Ciro Nogueira com Bolsonaro

CRÉDITO,REUTERS

Legenda da foto,

Trabalho foi recriado em reforma para acomodar Ciro Nogueira no governo

*Esta reportagem foi publicada originalmente em 10 de novembro de 2018 e atualizada em 28 de julho de 2021, com a notícia da recriação do Ministério do Trabalho

Extinto pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) em janeiro de 2019, logo após sua posse, o Ministério do Trabalho volta a existir: uma Medida Provisória publicada na quarta-feira (28/7) recria a pasta, que passa a ser ocupada por Onyx Lorenzoni (DEM-RS) e volta a ter atribuições que, desde o início do governo atual, estavam com o Ministério da Economia.

A recriação da pasta, como Ministério do Trabalho e Previdência Social, faz parte de uma reforma ministerial de Bolsonaro que dá mais poder ao Centrão, bloco de apoio ao presidente no Congresso que tem como um de seus expoentes o deputado Ciro Nogueira (PP-PI), agora nomeado ministro da Casa Civil.

Esse período de dois anos e meio sem o Ministério do Trabalho foi inédito desde que Getúlio Vargas (1882-1954) criou a pasta, após chegar ao poder.

Na época, em 26 de novembro de 1930, a ideia era que a pasta fosse responsável por intermediar as relações entre trabalhadores e empresários, algo até então sob a responsabilidade do Ministério da Agricultura.

"Era uma política alinhada com o que se pensava então sobre o papel do Estado como um mediador das relações entre grupos e indivíduos", explica Renan Pieri, professor de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP) e do Insper.

"Vargas dá um golpe de mestre e assume a dianteira deste processo, estatizando estas relações."

A criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio foi uma das primeiras iniciativas de Vargas ao assumir o governo por meio de um golpe, após a Revolução de 1930, que culminou com a deposição do então presidente Washington Luís (1869-1957) e o impedimento de que seu sucessor, Júlio Prestes (1882-1946), assumisse o cargo, dando fim à República Velha.

Getúlio Vargas

CRÉDITO,PLANALTO

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Vargas criou o ministério para intermediar relações entre trabalhadores e empresários, função até então do Ministério da Agricultura

A pasta foi batizada de "ministério da Revolução" por Lindolfo Collor (1890-1942), seu primeiro titular e avô do ex-presidente Fernando Collor de Melo.

"Essa revolução se refere a uma ruptura com a velha oligarquia agrária por meio da criação de um Estado positivista, a instauração de um modelo legal e burocrático que passa a organizar as relações sociais por meio do monopólio da força através de um sistema normativo", diz Marcelo Nerling, professor do curso de Gestão de Políticas Públicas da Universidade de São Paulo (USP).

"O Estado passa a ser o protagonista, baseado na crença de que é possível mudar a realidade social por meio de normas criadas de cima para baixo."

Nerling explica que não havia na época no Brasil um Estado como conhecemos hoje. "A administração pública só começa a se organizar a partir da década de 1930. Até então, as principais forças do país estavam concentradas nos municípios, comandados por coronéis. Era um modelo descentralizado e patrimonialista, em que não se separava o público do privado."

Qual foi o impacto da criação do Ministério do Trabalho?

Uma das primeiras medidas do novo ministério neste sentido foi criar uma nova regulamentação da atividade sindical, com critérios para a criação de sindicatos.

Entre as novas regras, estava haver uma única representação para profissionais de uma categoria dentro de uma mesma região, um mínimo de 30 membros, com ao menos dois terços de brasileiros, veto a qualquer manifestação política e ideológica, punições a empresários que impedissem a sindicalização dos trabalhadores e a aprovação da entidade pelo ministério - até então, não se dependia de autorização do governo.

O ministro Collor declarava na época que enxergava os sindicatos como uma forma de mediar os conflitos e tinha como objetivo trazer estas organizações para a órbita do novo ministério para que passassem a ser controladas pelo Estado.

"Vargas queria que os sindicatos se tornassem satélites do governo, politizando as relações entre empresas e trabalhadores", diz Pieri.

Na época, o Brasil ainda era um país extremamente rural, mas havia uma indústria nascente, que ganha força em reação ao crescente impedimento de importar produtos da Europa a partir da Primeira Guerra Mundial.

Ao mesmo tempo, a abolição da escravatura lançou um grande contigente de mão de obra ao mercado enquanto houve simultaneamente uma chegada massiva de imigrantes a partir do fim do século 19, facilitada pela Constituição de 1891, que, ao mesmo tempo, consagrou o direito de livre associação.

Surge, assim, uma classe de trabalhadores urbanos e de profissionais liberais, e se formam os primeiros movimentos sindicais, que foram reconhecidos e regulamentados em lei ao longo da primeira década do século 20, primeiro para os trabalhadores agrícolas e, depois, para os urbanos.

"Com a formação de uma economia de mercado, foi natural a formação de sindicatos especializados para representar os trabalhadores", diz Pieri.

Ao mesmo tempo, nas questões relativas a direitos, o regime de Vargas buscava atender reivindicações históricas dos trabalhadores, alinhado com a ideia da outorga dos direitos trabalhistas pelo Estado.

"Vargas havia acompanhado o que ocorreu na Rússia a partir de 1917 com a revolução, quando, em meio ao conflito entre capital e trabalho, o proletariado assumiu o poder. Então, ele, que era um capitalista, sabia aonde isso poderia acabar", diz Nerling.

"Vargas sabia que, se os trabalhadores fizessem greve atrás de greve para reivindicar direitos, poderiam quebrar o capital. Ele opta por chamar para si a responsabilidade de regular estas relações, cria leis que vinculam os cidadãos. Entrega os anéis para não perder os dedos."

O que mudou a cada Constituição?

O ministério teve sob Vargas uma atividade legislativa intensa. Foram lançadas medidas importantes, como a criação da carteira profissional (precursora da atual carteira de trabalho e previdência social), a regulamentação do trabalho feminino e infantil e o estabelecimento de juntas de conciliação de conflitos entre patrões e empregados, que seria um embrião da Justiça do Trabalho, criada pela Constituição de 1934 e que passaria a atuar a partir de 1941.

Homem segurando carteira de trabalho

CRÉDITO,CAMILA DOMINGUES/ PALÁCIO PIRATINI

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Ministério criou a carteira profissional, precursora da atual carteira de trabalho e previdência social

Também se destaca a criação dos Institutos de Aposentadoria e Pensões, que mudaram o sistema previdenciário do país. Ainda seriam instituídos o salário mínimo, a jornada de trabalho de oito horas e o descanso semanal, as férias remuneradas e a indenização por dispensa sem justa causa.

Uma das iniciativas de maior peso foi a instituição em 1943 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que unificou as leis trabalhistas existentes até então. O dia em que recebeu a sanção presidencial, 1º de maio, passaria a ser o Dia do Trabalho, feriado celebrado até hoje em todo o país.

As décadas após a primeira era Vargas foram marcadas por diversas mudanças nas leis e direitos trabalhistas.

Em 1946, a Assembleia Constituinte convocada após o fim da ditadura, acrescentou novos pontos como o direito à greve e o descanso remunerado aos domingos e feriados.

O Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) surge em 1966, já durante o regime militar, para proteger o trabalhador demitido sem justa causa com uma conta aberta em seu nome, vinculada a seu contrato de trabalho, na qual são depositados mensalmente o correspondente a 8% do salário.

A Constituição de 1967 instituiu a aplicação da legislação trabalhista a empregados temporários, a proibição de greve em serviços públicos e atividades essenciais e o direito à participação do trabalhador no lucro das empresas, entre outras medidas.

A partir da Constituição de 1988, passam a ser previstos medidas de proteção contra demissões sem justa causa, o piso salarial, a licença maternidade e paternidade, o veto à redução do salário, a limitação da jornada de trabalho a oito horas diárias e 44 horas semanais e proibição de qualquer tipo de discriminação quanto a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência. Também foi criado o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), destinado em parte ao custeio do Programa de Seguro Desemprego.

"São políticas criadas e geridas dentro do Ministério do Trabalho, por ele oferecer um corpo técnico e orçamento dentro do governo para discutir essas relações, mas que têm muito mais a ver com o ambiente político de cada época, a pressão popular por mudanças e cada governo do que com o órgão em si", avalia Pieri.

O economista destaca que a partir dos anos 1990, a pasta assume um papel cada vez mais de fiscalização do cumprimento das normas e leis trabalhistas e na gestão de recursos como os do FGTS e do FAT.

Extinção

Quando o Trabalho foi extinto, não foi a primeira vez que a pasta foi fundida com outras áreas.

Ao surgir em 1930, o ministério também era responsável por indústria e comércio. Em 1960, passou ser Ministério do Trabalho e Previdência Social.

Tornou-se puramente Ministério do Trabalho em 1974. Em 1990, voltou a incorporar a Previdência.

Jair Bolsonaro

CRÉDITO,REUTERS

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Presidente havia extinguido o Ministério do Trabalho

Dois anos depois, passou a ser o Ministério do Trabalho e da Administração Federal e, em 1999, do Trabalho e Emprego.

Em 2015, virou mais uma vez Ministério do Trabalho e Previdência Social, até, em 2016, tornar-se novamente apenas Ministério do Trabalho.

Ao tratar do tema, Bolsonaro declarou na época em entrevistas que o trabalhador terá de "decidir entre menos direito e emprego ou todos os direitos e desemprego".

"Os encargos trabalhistas fazem com que se tenha aproximadamente 50 milhões de trabalhadores brasileiros na informalidade", disse à rádio Jovem Pan.

  • Rafael Barifouse
  • Da BBC News Brasil em São Paulo
Professor Edgar Bom Jardim - PE

quinta-feira, 29 de julho de 2021

Guerra do Paraguai: a história do conflito armado mais sangrento da América Latina





Ilustração de batalha na Guerra do Paraguai

CRÉDITO,GETTY IMAGES

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A Guerra do Paraguai (1864-1870) foi a mais sangrenta na história da América Latina

Na história da América Latina, não houve nenhum conflito armado em que lutaram e morreram tantos homens como na Guerra do Paraguai.

O Brasil, a Argentina e o Uruguai perderam cerca de 120 mil soldados. Mas a verdadeira tragédia foi enfrentada pelo país que, há um século e meio, terminou derrotado no conflito com esses três países aliados: o Paraguai.

Para o Paraguai, não foi só uma derrota militar, mas sim um massacre que alguns historiadores consideram um genocídio.

As cerca de 280 mil vítimas paraguaias representavam mais da metade da população do país.

A vasta maioria dos mortos era de homens — o Paraguai teve sua população masculina praticamente dizimada.


Contam os repórteres da época que, quando terminou a "Guerra Grande" — como a chamam os paraguaios —, havia no país quatro mulheres para cada homem (e, em algumas regiões, 20 mulheres por homem).

Um desastre demográfico que, segundo muitos historiadores, atrasou gravemente o desenvolvimento do país.

Cadáveres de paraguaios mortos na Guerra do Paraguai

CRÉDITO,BIBLIOTECA NACIONAL DEL URUGUAY

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O uruguaio Javier López fotografou cenas da guerra para a Casa Bate & Cía; nesta imagem, corpos de paraguaios mortos em batalha

O que aconteceu?

A pior guerra na história da América Latina teve origem em um conflito interno que surgiu no Uruguai e passou rapidamente para o nível regional (alguns dizem que por conta de interesses comerciais do Império Britânico).

Foi em 1864, poucas décadas após os países sul-americanos declararem suas independências das potências europeias, e quando as fronteiras das novas nações ainda estavam sendo definidas.

A faísca que desencadeou tudo foi uma disputa entre os partidos tradicionais do Uruguai: o Partido Nacional (ou Branco), que governava, e o Partido Colorado.

O governo de Bernardo Prudencio Berro, do Partido Branco, era o único aliado regional do Paraguai e lhe garantia uma saída ao mar (embora, na prática, antes da guerra, os paraguaios usassem principalmente o porto de Buenos Aires para chegar ao Atlântico).

Já os colorados, liderados pelo general Venancio Flores, tinham o apoio do Brasil.

Por isso, quando Flores, com a ajuda do Brasil, encabeçou uma revolução para derrubar Berro, o presidente paraguaio, o marechal Francisco Solano López, decidiu sair em defesa do governo uruguaio.

Solano López ordenou a captura de um barco mercante brasileiro e invadiu o Estado brasileiro do Mato Grosso, que o Paraguai e o Brasil disputavam.

A partir dali, ele pretendia enviar suas tropas até o Uruguai, mas para isso precisava atravessar a Província argentina de Corrientes.

Francisco Solano López

CRÉDITO,GETTY IMAGES

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Francisco Solano López foi nomeado Herói Máximo da Nação no Paraguai em 1936; o dia de sua morte, 1º de março, foi declarado Dia dos Heróis em sua memória

Foi assim que a Argentina entrou no conflito. O presidente do país, Bartolomé Mitre, era aliado dos colorados uruguaios, como o Brasil.

Por isso, ele negou o pedido de Solano López para atravessar Corrientes, e quando o marechal invadiu a Província, a Argentina se uniu ao Brasil e ao novo governo uruguaio contra o Paraguai.

As vítimas civis

Parte do motivo pelo qual a Guerra do Paraguai — ou Guerra da Tríplice Aliança — foi tão sangrenta foi o pacto que Argentina, Brasil e Uruguai fizeram para não encerrar o conflito até que Solano López fosse morto (o que ocorreu em 1º de março de 1870).

Isso fez com que a guerra se estendesse mesmo depois de o Paraguai ter sido invadido e arrasado, graças à enorme disparidade entre o tamanho e o poder de fogo entre as forças aliadas e as paraguaias.

Segundo o historiador paraguaio Fabián Chamorro, o dado mais "estremecedor" da guerra foi que a maioria das vítimas paraguaias não eram soldados (que eram cerca de 90 mil), mas sim a população civil, incluindo meninos, velhos e mulheres.

Milhares de meninos e adolescentes também morreram nas frentes de batalha, já que, diante do extermínio de suas tropas, Solano López começou a recrutar soldados cada vez mais jovens.

A historiadora alemã Barbara Potthast, que investigou em profundidade a Guerra do Paraguai, disse à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC, que esses meninos e jovens haviam atuado como "uma barreira humana para que o exército (inimigo) não avançasse".

Menino soldado argentino

CRÉDITO,GETTY IMAGES

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Havia meninos nos dois lados da Guerra do Paraguai — como este argentino que tocava tambor em um batalhão de infantaria

O caso mais tristemente célebre foi o da batalha de Campo Grande (ou Acosta Ñu, para os paraguaios), em 16 de agosto de 1869, na qual cerca de 20 mil soldados brasileiros lutaram contra aproximadamente 3.500 menores paraguaios, que morreram em sua maioria.

Por causa dessa batalha, o Dia da Criança no Paraguai se celebra em 16 de agosto.

Novo mapa

O pano de fundo da guerra, além do conflito político, foi a disputa territorial.

Antes do embate, o Paraguai tinha acordos territoriais com o Brasil e a Argentina.

Depois da guerra, o país perdeu grande parte do território que reivindicava — e que segundo Chamorro representava mais de 150 mil quilômetros quadrados, além de 25% do território paraguaio.

O Brasil incorporou áreas aos atuais Estados do Mato Grosso do Sul, Paraná e Santa Catarina, e a Argentina conseguiu anexar as atuais Províncias de Formosa e Misiones.

Território do Paraguai antes e depois da guerra

Além disso, o Brasil ocupou o Paraguai por seis anos e exigiu uma indenização pela guerra.

"A guerra nos condenou a décadas e décadas de prostração econômica", disse à BBC News Mundo o historiador Fabián Chamorro.

"Devastou o país e, de certa forma, o Paraguai nunca se recuperou de tudo isso. Nunca teve um apoio da parte dos aliados para voltar a florescer economicamente, e demograficamente a catástrofe foi gigantesca", afirmou.

Uma das consequências indiretas da guerra, segundo Chamorro, foi que o Paraguai "não recebeu a migração de grande escala que receberam os vizinhos Argentina, Brasil e Uruguai".

"As consequências continuaram a ser sentidas por muito tempo, e periodicamente afloram no espírito paraguaio", conclui o historiador.


Professor Edgar Bom Jardim - PE

terça-feira, 27 de julho de 2021

O símbolo universal que conecta Jesus, Buda e Apolo



Figura religiosa

CRÉDITO,ALAMY

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Depois de aparecer pela primeira vez na arte religiosa do antigo Irã, a auréola migrou por meio de diferentes culturas em um ritmo surpreendente

O cristianismo, o budismo, o hinduísmo, o zoroastrismo e a mitologia grega são geralmente vistos como religiões totalmente distintas entre si, amplamente definidas por suas diferenças.

Mas se você analisar cada uma delas, verá um símbolo que conecta todas: a auréola.

Esta aura em torno da cabeça de uma figura sagrada expressa sua glória ou divindade e pode ser vista na arte do mundo todo.

Há muitas variações, incluindo auréolas formadas por raios (como a da Estátua da Liberdade) e auréolas flamejantes (que aparecem em algumas artes islâmicas otomanas, mongóis e persas), mas a mais característica e onipresente é a auréola em forma de disco circular.

Mas por que esse símbolo foi inventado? Especula-se que poderia ter sido originalmente um tipo de design de coroa. Ou que poderia ser símbolo de uma aura divina emanando da mente de uma divindade. Talvez apenas um simples adereço decorativo.


Uma hipótese curiosa é a de que deriva de placas de proteção colocadas em estátuas de deuses para proteger suas cabeças de excrementos de pássaros.

Investigar a função original da auréola circular na arte religiosa nos remete ao século 1 a.C.

Ela não havia aparecido em nenhuma religião antes e, ainda assim, se tornou uma peça permanente da iconografia religiosa em toda a Eurásia por alguns séculos.

A divindade egípcia Rá retratada com um círculo representando o Sol

CRÉDITO,ALAMY

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A antiga divindade egípcia Rá era retratada com um círculo representando o Sol

É provável que tenha evoluído a partir de tradições artísticas muito antigas. No antigo Egito, o deus solar Rá era comumente retratado com um disco circular representando o Sol — embora estivesse acima de sua cabeça, e não atrás dele.

Enquanto isso, alguns artefatos da cidade de Mohenjo-daro (no vale do Indo), criados em 2000 a.C., apresentam o que parecem ser auréolas com raios. No entanto, elas estão gravadas ao redor de todo o corpo das figuras sagradas, ao invés de apenas em suas cabeças.

Da mesma forma, na arte da Grécia antiga, há representações eventuais de coroas com raios de luz em volta das cabeças de heróis mitológicos para sugerir seus poderes divinos.

Mas a auréola em forma de disco circular é uma invenção posterior e, supostamente, resultado de ideias religiosas únicas.

Os primeiros exemplos desse tipo de auréola são vistos em 300 a.C, na arte religiosa do antigo Irã. Ela parece ter sido concebida como uma característica marcante de Mitra, divindade da luz no zoroastrismo.

Há controvérsias de que o conceito de glória divina (conhecido como 'Khvarenah') no zoroastrismo esteja intimamente conectado com o brilho do sol, e que a auréola era a forma iconográfica de relacionar esta qualidade a Mitra, assim como haviam feito com Rá.

Em termos de história da arte, a velocidade absoluta com que a auréola em forma de disco migrou entre as culturas a torna particularmente notável como uma peça de iconografia religiosa.

Por volta dos anos 100 d.C — algumas centenas de anos após sua criação —, ela podia ser vista em locais tão distantes quanto a cidade tunisiana de El Djem, a cidade turca de Samosata e a cidade paquistanesa de Sahri-Bahlol.

Nos anos 400, as auréolas foram incorporadas à arte cristã em Roma e à arte budista na China.

De alguma forma, em questão de poucos séculos, se tornaram o símbolo religioso universal da divindade na Eurásia.

Mas como a influência da auréola se espalhou pelo mundo e entre as religiões?

A movimentação inicial dessa peça de iconografia religiosa se deu em direção a leste e oeste de seu local de nascimento no Irã, pelas mãos de alguns dos impérios mais poderosos do passado.

No primeiro século d.C, os indo-citas (nômades do Irã) e os kushans (da Báctria, no Afeganistão) invadiram as regiões a sudeste, territórios agora abrangidos pelo atual Paquistão, Afeganistão e norte da Índia.

Ambos os impérios, imersos na antiga história cultural iraniana, levaram moedas que representavam Mitra com uma auréola.

Essa divindade jovem e atraente com seu esplendor divino tinha um apelo evidente para um número cada vez maior de pessoas ao redor da região do Hindu Kush (ou Indocuche).

Tanto é verdade que a iconografia de Buda — inclusive desde as primeiras representações visuais dele, como o relicário de Bimaran (que pode datar do fim do século 1 d.C), mostra ele com uma auréola mitraica.

Enquanto isso, Mitra também estava conquistando os corações do Império Romano invasor a oeste — a tal ponto que o mitraísmo evoluiu para uma das principais religiões romanas.

Pintura de Buda representado com auréola

CRÉDITO,ALAMY

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Buda é representado com uma auréola em imagens no mundo todo, como neste afresco de um templo cambojano

Mitra mais tarde influenciou a iconografia de outra divindade romana — o Sol Invictus ("sol invencível").

Ambos os deuses combinavam físicos masculinos graciosos com poderes divinos, ligados ao esplendor e à autoridade do Sol, e por isso eram adorados pelos membros mais poderosos da sociedade, sobretudo os imperadores romanos.

O imperador Constantino reconheceu o poder iconográfico da auréola, então ele e seus sucessores arrogantemente se apropriaram dela e usaram em representações artísticas de si mesmos.

Depois, com a crescente aceitação do cristianismo no Império Romano, os artistas começaram a representar Jesus com uma auréola.

Sua chegada à iconografia cristã ocorreu por volta de 300 d.C, mais de dois séculos depois de ter surgido no budismo.

Jesus representado em pintura com auréola cruciforme

CRÉDITO,ALAMY

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Jesus, às vezes, é representado com uma auréola cruciforme, como neste antigo afresco cristão nas catacumbas de Ponzianus, em Roma

Foi um sinal da metamorfose do cristianismo — de uma religião marginalizada para uma estrutura de poder oficial no Ocidente.

A auréola se manteve presente na arte cristã desde então, embora tenha sofrido alguma adaptação ao longo dos anos.

Deus, o Pai, às vezes pode ser visto coroado com uma auréola triangular; Jesus, com uma auréola em forma de cruz; e os santos, com uma auréola quadrada.

O budismo, o jainismo e o hinduísmo coexistiram pacificamente na Índia no primeiro milênio d.C, e as três religiões compartilharam ideias e iconografia artística, incluindo as auréolas.

As primeiras representações esculpidas de auréolas na arte religiosa indiana são provenientes de dois grandes centros de produção artística, Gandhara (na fronteira do Paquistão e Afeganistão) e Mathura (145 km ao sul de Déli).

Troca de ideias

No fim da Antiguidade e na Idade Média, Gandhara estava no centro de uma imensa rede de rotas comerciais que se estendia até a China a leste e o Mediterrâneo a oeste.

Os mosteiros budistas surgiram ao longo dos principais entroncamentos das rodovias comerciais para servir como versões religiosas dos caravançarais (hospedarias para os mercadores viajantes).

Eles ofereciam um lugar para os mercadores descansarem, orarem e se recuperarem, e se tornaram os trampolins a partir dos quais o budismo se espalhou por terra para a China, onde artistas replicaram a iconografia da religião.

Por volta de 500 d.C., as auréolas apareceram na arte da Coreia e do Japão, indicando a chegada do budismo também nessas regiões.

A mesma disseminação ocorreu com o hinduísmo, que se espalhou pela Ásia por meio de rotas comerciais terrestres e marítimas, levando o comportamento religioso e o estilo artístico para a Indonésia, Malásia e outros territórios do sudeste asiático.

Essas extensas artérias comerciais, que ligavam o leste ao oeste no fim da Antiguidade e na Idade Média, costumam ser chamadas de "Rota da Seda", por causa dos produtos de luxo que costumavam ser transportados ao longo delas.

Mas, ao lado de mercadorias exóticas, essas rotas também transportaram religiões, conhecimento e iconografia.

A auréola em forma de disco é um ícone desse intercâmbio dinâmico de ideias que existiu em um passado distante.

Ela surgiu como um sinal zoroastriano da divindade solar, mas se espalhou pela Eurásia por meio de impérios antigos e redes comerciais que conectavam os limites do mundo conhecido.

No século 21, é também um poderoso lembrete da herança cultural compartilhada da humanidade.

  • Matthew Wilson
  • BBC Culture
Professor Edgar Bom Jardim - PE