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quarta-feira, 5 de abril de 2023

As críticas que levaram governo Lula a suspender cronograma do Novo Ensino Médio





Sala de aula

CRÉDITO,TÂNIA RÊGO/AGÊNCIA BRASIL

Legenda da foto,

Uma das principais mudanças na reforma são os chamados 'itinerários formativos'


O ministro da Educação, Camilo Santana, anunciou nesta terça (4/4) que vai suspender por 60 dias a implementação da reforma do ensino médio, introduzida por meio de uma medida provisória do governo de Michel Temer (MDB) em 2017 e instituída por lei em 2018.

Camilo fez um pronunciamento depois de se encontrar mais cedo com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para discutir as mudanças, alvo de muitas críticas e discussões nas últimas semanas.

O Novo Ensino Médio já começou a ser implementado, por etapas.

No ano passado, o novo projeto foi introduzido apenas para estudantes do 1º ano do ensino médio. Neste ano estava em curso a adoção pelo 2º ano e, em 2024, a reforma chegaria ao 3º ano e ao Exame Nacional do Ensino Médio (Enem)



O ministro da Educação disse que assinaria ainda nesta terça a suspensão formal da portaria 521, publicada em 13 de julho de 2021, que inicia o cronograma de aplicação do Novo Ensino Médio.

"Como há ainda esse novo processo de discussão, nós vamos suspender essa portaria para que, a partir dessa finalização dessa discussão, a gente possa tomar as decisões", afirmou Camilo, segundo o portal de notícias G1.

Atualmente está sendo realizada uma consulta pública sobre o Novo Ensino Médio — iniciada em 9 de março e com duração de 90 dias. Depois haverá um mês para elaboração do relatório com as manifestações e sugestões.

"Vamos apenas suspender as questões que vão definir um novo Enem em 2024 por 60 dias. E vamos ampliar a discussão. O ideal é que, num processo democrático, a gente possa escutar a todos. Principalmente, quem está lá na ponta, que são os alunos, os professores e aqueles que executam a política, que são os Estados", declarou o ministro.

Divisão na base lulista

O presidente Lula e o ministro da Educação, Camilo Santana

CRÉDITO,MARCELO CAMARGO/AGÊNCIA BRASIL

Legenda da foto,

O presidente Lula e o ministro da Educação, Camilo Santana

Mesmo antes de ser eleito, Lula já era pressionado por sua base para derrubar a reforma.

Em junho do ano passado, uma carta aberta assinada por mais de 50 entidades — como sindicatos de professores e a Central Única dos Trabalhadores (CUT) — pediu a revogação da medida.

Segundo o documento, ela foi implementada pelo governo de Michel Temer e "ganhou continuidade natural no governo de extrema-direita e de viés conservador de Jair Bolsonaro".

Mas o ministro da Educação, que é do PT, já havia se posicionado na semana passada contra a derrubada do projeto — o que permaneceu no pronunciamento desta terça.

"Simplesmente revogar e voltar ao passado eu não vejo que é o caminho”, disse Camilo em evento do Lide Ceará, de acordo com o Diário do Nordeste.

Depois da eleição, o grupo de transição do governo Lula se dividiu entre aqueles que queriam a revogação da reforma e os que preferem seu aperfeiçoamento.

Vitor de Angelo, presidente do Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) e secretário do Espírito Santo, disse que a "reforma carece de ajustes", mas que "a revogação seria apagar o caminho percorrido até aqui, literalmente jogar fora o esforço empreendido pelas redes estaduais de ensino até o momento e nos lançar num cenário de absoluta incerteza".

Confira pontos da reforma que vêm sendo alvo de discussões.

Tempo das aulas e ensino a distância

Uma das principais marcas da reforma é a divisão da carga horária em 60% para a formação geral básica, pela qual todos os alunos passam, e com os outros 40% voltados para os chamados itinerários formativos, projetados para dar mais flexibilidade ao currículo e para aproximar o estudante de seus interesses.

Antes da reforma, a carga horária era de 800 horas de aula para cada ano do ensino médio — totalizando 2.400 horas para o segmento.

Com as mudanças, ampliou-se esse valor para no mínimo 3.000 horas. E há um teto para a formação geral básica: ela não pode passar de 1.800 horas.

Para Olavo Nogueira Filho, diretor-executivo da organização Todos Pela Educação, esse teto deve ser alterado pois é "muito baixo" — em uma escola de tempo integral, por exemplo, o tempo dedicado às disciplinas obrigatórias acaba bastante diluído.

Nogueira também critica a possibilidade de que até 20% da carga horária do ensino médio — e até 30% do ensino médio noturno — seja realizada via ensino a distância. Para ele, esta regra é "um risco para a precarização".

"Não defendemos a revogação completa. Dito isso, a qualidade do desenho da política é crucial, e temos observado muitas falhas. Por isso defendemos ajustes substanciais", diz Nogueira.

Protesto de estudantes na Avenida Paulista contra a reforma do ensino médio

CRÉDITO,FERNANDO FRAZÃO/AGÊNCIA BRASIL

Legenda da foto,

Protesto de estudantes em São Paulo contra a reforma do ensino médio

'Itinerários': expectativa versus realidade

Já Fernando Cássio, professor da Universidade Federal do ABC (UFABC) e integrante do comitê diretivo da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, defende a revogação total da reforma para "pensar um modelo que seja minimamente democrático, que não seja excludente".

Ele critica particularmente os itinerários ao citar um estudo da Rede Escola Pública e Universidade (Repu), da qual faz parte, relacionando o leque reduzido de disciplinas eletivas na rede pública à falta de condições materiais (salas de aula disponíveis, equipes docentes).

O estudo da Repu mostrou que, nas escolas estaduais de São Paulo em que a reforma do ensino médio já foi implementada, 22,1% das aulas dos itinerários do 1º semestre ainda não haviam sido atribuídas a nenhum professor.

Na prática, segundo o documento, "é como se os estudantes tivessem um dia letivo a menos por semana por falta de professores".

Outra crítica está em disciplinas eletivas como "Brigadeiro Gourmet", "Mundo Pet" e "Torne-se Um Milionário" que foram introduzidas nesses itinerários.

Em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, o ex-ministro da Educação Mendonça Filho (União Brasil), em cuja gestão foi instituído o projeto do Novo Ensino Médio, declarou que as questões apontadas são exceções.

"Alerto apenas para que exceções e possíveis desvios não sejam usados para manipular o debate, que deve ser sério, apenas para servir a interesses que não sejam o da educação de qualidade."

A Secretaria da Educação do Estado de São Paulo disse que a nova gestão "segue em diálogo com os estudantes e rede escolar, buscando aprimorar de forma colaborativa as estratégias em andamento [...] a Pasta estuda ajustar o NEM para que se tenha menos itinerários e novas abordagens exploradas, de forma que possa ocorrer reavaliação da distribuição da carga horária".

Fernando Cássio, no entanto, afirma que o problema é mais amplo.

"A questão é que a reforma do não entrega nada do que promete. Pelo contrário, ela piorou a escola. Os alunos não têm aula. O problema é menos a coisa esdrúxula do brigadeiro gourmet e mais o fato de que não tem professor, não tem aula, que as redes de ensino não são capazes de oferecer a carga letiva mínima obrigatória pela lei."

Alunos de escola pública em Brasília

CRÉDITO,EVARISTO SÁ/AFP VIA GETTY IMAGES

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Desenho dos itinerários formativos para alunos de Ensino Médio é alvo de críticas

Débora Goulart, professora do departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), critica o que considera falta de "pensamento crítico" em algumas dessas novas disciplinas.

"Nas chamadas competências emocionais desse novo currículo há disciplinas como 'Projeto de Vida'. E o que é isso? É discutir como sobreviver com autogestão, resiliência, autocontrole e perseverança nesse novo mundo do trabalho, precarizado e uberizado. Mas não existe uma discussão crítica sobre essas novas formas de trabalho, e sim uma aceitação delas."

Nogueira, da Todos Pela Educação, defende que é preciso definir melhor os itinerários formativos, "hoje muito amplos". Mas, para ele, a crítica não deve significar o abandono da proposta de flexibilidade para os estudantes do ensino médio — marcado por altos índices de evasão escolar.

"Acreditamos que a essência da reforma, que busca aumentar a carga horária, avançar um currículo mais atrativo com um ensino profissionalizante, aponta no sentido desejável", diz o diretor-executivo da organização.

"O modelo antigo brasileiro é anacrônico."

Diretor-geral do Colégio Marista Arquidiocesano, em São Paulo (SP), Everson Ramos também aponta para os itinerários formativos como uma das inovações benéficas da reforma, mas reconhece que sua aplicação pode ser desigual.

No colégio particular que dirige, Ramos afirma que os itinerários já estão em uso em todos os anos do ensino médio desde 2018 e têm "uma boa adesão e motivação dos educadores, estudantes e da comunidade em geral".

"Se a reforma for revogada, acreditamos que podemos manter os pontos que promoveram avanços na formação dos nossos estudantes. Infelizmente essa não é a realidade para muitos dos estudantes brasileiros", diz o diretor.

"O mesmo ensino médio que, para alguns, é inclusivo, transformador, significativo, emancipador e consistente, para muitos pode ser exatamente o contrário, a depender do contexto no qual ele está inserido. Entendemos que mudanças são necessárias e que ajustes e correção de rumos são sempre bem vindas."

Falta de diálogo e suporte

Protesto em São Paulo em março passado contra a reforma

CRÉDITO,EPA-EFE/REX/SHUTTERSTOCK

Legenda da foto,

Protesto em São Paulo em março passado contra a reforma

Para Fernando Cássio, a reforma deve ser revogada porque sua essência é equivocada.

"Não vejo que essa reforma possa produzir outra coisa que não o aprofundamento de desigualdades. E ela não é 'reformável' ou 'ajustável'. Porque do ponto conceitual ela foi feita para baratear a educação pública dos mais pobres", afirma.

"Basta lembrar que 88% dos estudantes do país no ensino médio estão na escola pública."

Goulart concorda: "O desenho dessa política [da reforma] é uma alteração do ponto de vista curricular. Mas não altera o financiamento, não altera a formação de professores, não altera a estrutura física, não altera o investimento".

"A gente tem historicamente um problema em relação ao ensino médio, que não tem política específica para seu fortalecimento, para a permanência dos estudantes. É uma etapa que ainda não está universalizada. E aí você tem uma reforma que fragmenta todo o ensino médio."

Na época em que o projeto foi apresentado pelo governo Temer, houve críticas por ele ter surgido como uma medida provisória — que tem tramitação rápida e parte do Executivo.

Em 2018, o Banco Mundial firmou um acordo com o governo brasileiro para emprestar US$ 250 milhões (dos quais já foram desembolsados 68,45%) que, em parte, servem para financiar atividades ligadas à reforma do ensino médio.

Olavo Nogueira Filho critica mais os capítulos posteriores, o da implementação.

"A última gestão do Ministério da Educação, no governo Bolsonaro, virou as costas para o Novo Ensino Médio. Os estados atuaram por conta própria. Isso gerou uma implementação muito desigual Brasil afora", afirma.

O presidente da Todos pela Educação diz esperar que a falta de diálogo não se repita.

"A hora é justamente de muito diálogo e escuta. É o momento de promover a consulta pública anunciada, identificar os desafios que as escolas estão encontrando e construir um verdadeiro Novo Ensino Médio. Neste sentido, é importante ver o Ministério da Educação reassumindo a coordenação nacional sobre o tema, após quatro anos de abandono na gestão anterior", diz Nogueira.

Mendonça Filho, em entrevista à Rádio Jornal de Pernambuco, defendeu a reforma dizendo que "o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica [Ideb] estava estagnado há cerca de dez anos em [um índice de] 3.8. A avaliação do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), que avalia a educação básica do Brasil, colocava o desempenho dos alunos brasileiros do ensino médio como insuficiente em português, matemática e ciência. Um desastre completo".


  • Mariana Alvim e Shin Suzuki
  • Role,Da BBC News Brasil em São Paulo

Professor Edgar Bom Jardim - PE

sábado, 18 de setembro de 2021

Nita Freire: "Quem tem a utopia de construir um mundo melhor está com Paulo Freire"



Viúva do educador reflete sobre o legado do autor e compartilha sua visão sobre a imagem de Freire nos dias de hoje


Crédito: Divulgação/Editora Paz&Terra

Para Paulo Freire, não podemos falar de Educação se não falarmos de amor. Sua amorosidade é um dos aspectos que educadores apontam como seus grandes legados. Ainda que a referência seja a um amor mais amplo, vale lançar um olhar aos dois grandes amores vivenciados pelo educador: sua primeira esposa Elza Maia da Costa Oliveira, falecida em 1986 e com quem viveu por 42 anos, e Ana Maria Araújo Freire, mais conhecida como Nita Freire, com quem dividiu a vida entre 1987 e 1997, e que continua viva e cuidando de seu legado. 

Nita e Paulo Freire se conheceram quando ela ainda não tinha completado 5 anos. Freire estudou no Colégio Oswaldo Cruz, no Recife (PE), que pertencia ao pai de Nita. Por isso, ela o conheceu ainda quando o educador era estudante de Ensino Médio. Mesmo após formado, ele permaneceu próximo à família. “Ele teve uma gratidão enorme ao meu pai, porque sem ele Paulo não teria estudado”, afirma a educadora em entrevista à NOVA ESCOLA. Eles mantiveram uma relação de amizade durante muitos anos, com Freire sendo, inclusive, professor de Nita durante a pós-graduação. Foi apenas em 1987, quando os dois ficaram viúvos, que eles se reaproximaram e deram início a um relacionamento amoroso. Eles casaram-se em 1988.   

O cotidiano do casal foi compartilhado por ambos em Nós dois: crônicas, fotografias e cartas de amor. Após a morte do educador, Nita também escreveu sobre o relacionamento no livro Nita e Paulo: crônicas de amor. “Passados alguns anos da perda de Paulo, a saudade é mais amena, não é mais a saudade que quase me impossibilitou de viver. Entretanto, ela permanece em mim como um sentimento que dá sentido à minha vida [...] Foi muito fácil de viver ao lado dele cheio de ternura e amor a dar, de bom humor menino, de sua simplicidade mesmo como um homem conhecido no mundo e de sua aceitação de como eu era. [...] Experimentei a forma mais profunda e mais plena possível do amor. Do amor de gente como Paulo", registra Nita no seu livro Paulo Freire: uma história de vida.

“Com Paulo eu vivi muitos dos momentos mais importantes de minha vida afetiva, amorosa e profissional, pois não fui e nem poderia ser simplesmente a 'mulher de Paulo Freire'. Assim prossegui meus estudos”, afirma Nita na biografia. Formada em Pedagogia e professora universitária, durante o seu relacionamento com Freire, ela concluiu a tese de mestrado e de doutorado pesquisando o analfabetismo no Brasil. Atualmente, como sua sucessora legal, a educadora dedica-se à organização, publicação e divulgação da obra de Freire. 

Por isso, próximo ao centenário do educador, Nita, que em novembro completará 88 anos, aceitou conversar com NOVA ESCOLA sobre a própria trajetória como educadora e sua visão do legado de Freire. Confira os destaques da conversa: 

NOVA ESCOLA: A senhora primeiro pausou os estudos e, já com os filhos mais velhos, retornou à universidade. Por que escolheu a Pedagogia?
NITA FREIRE: Eu tinha feito alguns anos de Engenharia. Depois eu me casei, vim morar em São Paulo e não tinha como transferir [o curso]. Então, fiquei cuidando do lar, dos meus filhos e ajudando o marido. Chegou um tempo em que a vida foi se tornando muito monótona, mecânica e pouco desafiante. 

Então, eu tive a necessidade de voltar para o mundo dos estudos. Como sou filha de educadores, a minha vida sempre foi em torno de professores. [Eu pensei]: o que eu faço melhor na minha vida, que vai ser mais interessante e fascinante para mim, é voltar para a área de Educação. Fiz vestibular e voltei [a estudar quando tinha] 40 ou 42 anos.

Como foi sua experiência como professora?
Quando terminei a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Moema [em São Paulo], fui chamada para dar aula em alguns colégios. No ano seguinte, fui convidada para voltar à Faculdade como professora. Foi um desafio muito grande, mas me dediquei muito e segui minha vida como educadora. Era professora efetiva na Faculdade [de Moema], depois eu também dei aula na Faculdade São Marcos e na Pontifícia Universidade Católica [de São Paulo]. Quando casei com Paulo [Freire], optei por deixar de trabalhar por uma série de razões. 

Quando era jovem [na época que fazia Engenharia] também dei aula de Matemática e de História no Colégio do meu pai para o curso de quem ia fazer o exame de admissão para ingressar no Ensino Médio. A História do Brasil sempre foi algo que me atraiu, [acredito] que quem não estudou História, hoje sente dificuldade de entender [o que acontece no país]. 

Na próxima semana, comemoramos o centenário do Paulo Freire. Qual é hoje o maior legado dele na Educação? 
Nunca foi tão necessário e tão procurado o pensamento de Paulo. É impressionante. Estou catalogando, com ajuda de ex-alunos doutores, todas as manifestações de tributo a Paulo. Só esse número de homenagens que estão sendo feitas mostra a importância dele nos dias de hoje. Ele está sendo um parâmetro de decência, de honestidade, de ética, de política para o bem das pessoas. É um pensamento que vai perdurar por muitos anos. Paulo se preocupa com as condições de humanidade dos seres humanos. Ele quer conscientizar [os oprimidos] da realidade para que possam se inserir na sociedade e possam interferir. 


Apesar de muitos anos terem se passado, as obras do autor continuam sendo muito atuais. Por que?
Hoje se discute abertamente, se mostra o interesse que se tem, a importância que tem Paulo com suas ideias postas há mais de 50 anos. O livro Pedagogia do Oprimido [publicado pela primeira vez em 1968] foi publicado nos Estados Unidos quando aqui não se podia falar [sobre política no Brasil]. As editoras de lá nos diziam, a mim e a Paulo, que um livro nos Estados Unidos e, em geral no mercado mundial, tem validade de 8 anos. No 9º ano, vende-se muito pouco, então, as editoras deixam de publicar. [Ou seja], autores que foram importantes nos anos 1990 não se publicam mais. No entanto, a obra de Paulo continua atual até hoje. Lê [hoje] qualquer um dos livros de Paulo e você pensa que escreveu ontem. Ele dizia que, para explicar a razão das coisas, a gente tinha que partir do nosso contexto. Paulo se enraizou no Recife para entender o que se passou e [supor] o que viria depois [para a Educação e a sociedade]. 

Nos últimos anos, Paulo Freire sofreu muitos ataques do governo atual. Na alta do Escola Sem Partido foram criadas muitas fake news que colocavam o educador como um doutrinador. Como a senhora vê esses ataques? Acha que isso impactou a imagem de Freire? 
Acho que não. [Na verdade, acredito que] aumentou. Hoje, a literatura de Paulo ganhou uma dimensão ainda maior, porque está sendo procurada e muito solicitada por diversos setores. Foi um autor que tentaram desmoralizar, foi chamado de energúmeno pelo capitão [a afirmação foi feita pelo Presidente Jair Bolsonaro em 2019]. Isso provocou uma curiosidade muito grande [entre os mais jovens] para saber quem era esse homem que estão acusando de coisas muito vis, quem era esse sujeito tão diabólico que tem gente que adora e quem fala que é um doutrinador. Por isso, o número de leitores de Paulo tem aumentado no Brasil e no mundo todo. 

Tem gente que está começando a ler e entender Paulo agora e se maravilham, porque ele [Freire] responde a todas as angústias. Paulo tinha a capacidade de pensar o ser humano. Como diz Ernani Maria Fiori [professor de Filosofia, contemporâneo de Freire]: Paulo não pensava em ideias, mas pensava na existência humana. Quem é adepto do amor, de uma vida mais solidária, unida, inteira, está com Paulo. Quem tem a utopia de construir um mundo melhor está com Paulo. 

Como a senhora avalia que as escolas incorporaram o pensamento freireano?  
De um modo geral, acho que estamos conseguindo entender. O número de projetos de homenagem pelo centenário não se presta a uma pessoa qualquer, mas a alguém que consideramos, respeitamos, admiramos e queremos ter presente. Tudo que ele fez foi sempre pensando em formar sujeitos históricos, sujeitos que interferem [para tornar] um mundo mais bonito. Era isso que ele queria, um mundo mais bonito. 


Em um cenário de desesperança e medo, com toda sua experiência e o legado que a senhora representa do Paulo Freire, qual é o seu sonho para Educação pública hoje? 
O Paulo é um sujeito que acredita nos sonhos, na utopia de dias melhores e que [mostra que] somos os responsáveis pela sociedade que temos, por isso devemos lutar para transformá-la sempre no sentido de melhorar e de diminuir as desavenças e as desigualdades [econômicas, sociais e educacionais]. 

Paulo fez um projeto quando secretário e executou esse projeto na Secretaria de Educação Municipal de São Paulo, no governo de Luiza Erundina [1989], que era realmente um primor de intenções, de fazer uma escola popular para as classes populares para diminuir essa distância entre riqueza e conhecimento. Ele lutou muito para diminuir essa diferença, em certos aspectos conseguiu de fato. 

[No entanto,] não é algo que acontece de repente. Para ter uma escola pública de qualidade é preciso de técnicas, tecnologia, formação de educadores e reuniões pedagógicas para discutir a prática. São essas coisas que vão fazer um professor melhor e, portanto, uma rede com mais consistência. 

POR:

Paula Salas Nova Escola
Professor Edgar Bom Jardim - PE

Por que a extrema direita elegeu Paulo Freire seu inimigo


Para especialistas, é da natureza da pedagogia freireana incomodar, justamente porque ela propõe ensino libertador e baseado na formação crítica do aluno. Celebrado no mundo, pedagogo é muito criticado só no Brasil.
Paulo Freire

Paulo Freire foi homenageado por pelo menos 35 universidades de todo o mundo

Em dezembro de 2003, o então ministro da Educação Cristovam Buarque inaugurou, na frente da sede do ministério, em Brasília, um monumento em homenagem ao educador Paulo Freire (1921-1997). O pedagogo era então aclamado como uma personalidade importante da história intelectual do país — nove anos mais tarde, uma lei federal o reconheceria como patrono da educação brasileira.

Em 2019, Abraham Weintraub comandava o mesmo ministério no primeiro ano da gestão do presidente Jair Bolsonaro. Diante dos maus resultados obtidos pelo país no ranking Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Alunos), ele chamou o monumento a Freire de "lápide da educação" e afirmou que o pedagogo "representa esse fracasso total e absoluto".

O próprio Bolsonaro já criticou Paulo Freire, e em mais de uma oportunidade. Numa das ocasiões, referiu-se a ele como "energúmeno". É um discurso recorrente: nos últimos anos, a extrema direita brasileira tem usado Paulo Freire, cujo centenário de nascimento é celebrado neste 19 de setembro, como bode expiatório para a baixa qualidade do sistema educacional brasileiro.

De acordo com especialistas ouvidos pela DW Brasil, o que incomoda reacionários e também alguns conservadores é o fato de a pedagogia freireana ser essencialmente política. "A essência da obra de Freire é totalmente política, no sentido nobre do termo, não no sentido da política partidária", diz o sociólogo Abdeljalil Akkari, da Universidade de Genebra, na Suíça. "Por isso em todas as regiões do mundo, sua obra é lembrada como algo muito interessante para refletir sobre o futuro da educação contemporânea."

"O objetivo da pedagogia freireana é fazer com que cada uma e cada um aprendam a dizer a própria palavra, ou seja, tenham a capacidade de ler o mundo e se expressar diante do mundo. É a pedagogia da autonomia, da esperança: libertadora no sentido de as pessoas terem as capacidades de se libertarem das opressões que buscam calá-las", diz o educador Daniel Cara, professor da Universidade de São Paulo e dirigente da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.

Professor do curso de pedagogia da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Ítalo Francisco Curcio acredita que parte dessa controvérsia seja por desconhecimento do que é, enfim, o método Paulo Freire. "A maior parte dos que dizem rejeitá-lo nem é especialista em educação, acaba repetindo frases apregoadas por líderes com os quais se identifica", comenta. "Isso é muito ruim. Quem padece é a própria população, desde a criança até o adulto."

Diálogo em vez de lógica bancária

Paulo Freire desenvolveu sua pedagogia no início dos anos 1960. Em 1963 ele trabalhou na alfabetização de adultos no Rio Grande do Norte — e conseguiu resultados muito eficientes com sua abordagem. Em linhas gerais, ele defendia que a educação não poderia obedecer a uma "lógica bancária", em que o conhecimento era simplesmente depositado na cabeça dos alunos. Clamava por um ensino baseado no diálogo, em que professor e estudante constroem o conhecimento em conjunto.

Por princípio, é uma pedagogia inclusiva. E saberes específicos, de acordo com contextos particulares, são valorizados. "Ele ressaltou no meio educacional, especialmente na formação de professores e gestores escolares, que é imprescindível considerar os conhecimentos e saberes que o educando já possui, ao ser recebido como aluno. É célebre sua frase: 'Ninguém ignora tudo, ninguém sabe tudo'", diz Curcio.

"Seu método não fala em ideologias, mas em formas de ensinar e aprender. Não é um instrumento proselitista", acrescenta. "Quem faz proselitismo é a pessoa, por meio de seus atos e discursos, e não o método. Eu posso utilizar uma faca tanto para cortar o pão ou a carne e me alimentar, quanto para matar alguém."

O educador Cara argumenta que Freire não é bem aceito pela extrema direita justamente porque sua filosofia não admite a doutrinação. "O sectarismo do autoritarismo impede o reconhecimento de uma pedagogia verdadeiramente libertadora", afirma. "Então, Freire se tornou inimigo dos ideólogos de direita porque busca uma pedagogia libertadora, enquanto o modelo tradicional é uma pedagogia opressora."

"Quando a extrema direita chegou ao poder no Brasil, precisava agir no campo da educação. E a figura de Freire se mostrou fácil de ser atacada, porque era algo comum nas comunidades educacionais do Brasil", diz Akkari.

Para o professor, conservadores tendem a acreditar que os problemas educacionais podem ser corrigidos com base em aspectos instrumentais, ou seja, mais tecnologia, equipamentos e carga horária, e não com uma mudança de abordagem. Além disso, existe um tabu sobre politização e formação crítica — ele lembra o movimento Escola Sem Partido, criado nos anos 2000 e que ganhou notoriedade no país após 2015.

Paulo Freire é o oposto de tudo isso: sua obra é baseada na formação crítica do aluno. "Ele é o pedagogo da politização da educação", define Akkari.

Mazelas do ensino

Outro mito que os especialistas combatem é o de atribuir à Paulo Freire a culpa pelos problemas educacionais brasileiros. O principal argumento contrário, ressaltam eles, é que a pedagogia dele nunca foi implementada de modo amplo e irrestrito no Brasil. E há ainda o aspecto oposto: o método freireano é muito disseminado em países que costumam se destacar em avaliações educacionais, como a Finlândia.

"Não faz o menor sentido culpar o Paulo Freire pelas mazelas educacionais brasileiras. Ele não é responsável pelo subfinanciamento da educação, pelos péssimos salários dos professores, pelo fato de que o Brasil só passou a colocar a educação como questão nacional a partir dos anos 1930. E, na prática, mesmo em governos alinhados à esquerda não se fez uma pedagogia freireana no país", diz Cara. "Até porque é uma pedagogia que demanda investimentos sólidos em formação e um replanejamento de todo o sistema de ensino."

Akkari observa que essa negação de Paulo Freire por um viés ideológico só ocorre no Brasil. "Se você observar o resto do mundo, a obra dele é consensual", diz.

Isso fica claro no amplo reconhecimento que Paulo Freire recebeu. Em vida, foi homenageado por pelo menos 35 universidades de todo o mundo — entre as quais as de Massachusetts e a de Illinois, nos Estados Unidos; a de Genebra, na Suíça; a de Estocolmo, na Suécia; a de Bolonha, na Itália; e a de Lisboa, em Portugal. O brasileiro também foi reverenciado pela Unesco, a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciências e Cultura, com o Prêmio Educação para a Paz, em 1986.

"Particularmente, entendo que, por ele ter se tornado uma celebridade internacional, identificado historicamente com uma educação socializante, acaba incomodando algumas pessoas que vêm em sua obra alguma possibilidade de doutrinação", avalia Curcio. "E isso faz com que pessoas que desconhecem o método acabam por dispensar-lhe a mesma conotação."

Curcio ressalva que Paulo Freire não é criticado pela direita, "mas por certas pessoas de direita". Denominando a si mesmo conservador e mencionando que tem muitos amigos educadores também conservadores, ele afirma que, mesmo que haja críticas ao método Paulo Freire, é dispensado "o mais profundo respeito pelo trabalho dele", que continua sendo estudado. "É apenas uma questão de identificação. Não de rejeição ou abominação", diz.

Professor Edgar Bom Jardim - PE