quinta-feira, 2 de agosto de 2018

Religião:Por que a Igreja Católica decidiu condenar a pena de morte – e por que não havia feito isso antes


Nova sala de execuções da prisão de Ely, nos EUADireito de imagemDEPARTAMENTO DE EXECUÇÃO PENAL DE NEVADA
Image captionNova sala de execuções da prisão de Ely, nos EUA
Em decisão histórica, o papa Francisco declarou nesta quinta-feira que a pena de morte é inadmissível quaisquer que sejam as circunstâncias.
A medida foi histórica tanto pelo teor quanto pelo formato. Pelo teor, porque até então o Vaticano sempre procurou não interferir nessa espinhosa questão, entendendo que a decisão de adotá-la cabia aos governos dos países. Pelo formato, porque não foi uma simples declaração, mas uma alteração no catecismo da Igreja Católica, o compêndio que reúne a exposição da fé e da doutrina do catolicismo.
A revisão foi anunciada no Vaticano. O papa aprovou a nova redação do item 2267 do catecismo com o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, cardeal Luís Ladaria.
"A Igreja ensina, à luz do Evangelho, que a pena de morte é inadmissível, porque atenta contra a inviolabilidade e a dignidade da pessoa, e se empenha com determinação por sua abolição em todo o mundo", disse o papa.
Significa que, de hoje em diante, a Igreja prega oficialmente contra a pena de morte. "A partir de agora, quem for a favor da pena de morte está claramente ao contrário do que a Igreja ensina", resume o vaticanista Filipe Domingues. O novo texto do catecismo diz que "a dignidade da pessoa não é perdida nem depois de ter cometido crimes gravíssimos."
Image captionO papa Francisco condenou a pena de morte em quaisquer circunstâncias
O cardeal Ladaria se incumbiu de remeter uma carta informando aos bispos de todo o mundo a respeito da alteração. No texto, ele diz que a mudança é uma evolução natural do ensinamento da Igreja.
"Durante muito tempo, o recurso à pena de morte, por parte da legítima autoridade, era considerada, depois de um processo regular, como uma resposta adequada à gravidade de alguns delitos e um meio aceitável, ainda que extremo, para a tutela do bem comum", diz comunicado da Santa Sé.
"No entanto, hoje, torna-se cada vez mais viva a consciência de que a dignidade da pessoa não fica privada, apesar de cometer crimes gravíssimos. Além do mais, difunde-se uma nova compreensão do sentido das sanções penais por parte do Estado. Enfim, foram desenvolvidos sistemas de detenção mais eficazes, que garantem a indispensável defesa dos cidadãos, sem tirar, ao mesmo tempo e definitivamente, a possibilidade do réu de se redimir."

Mudança gradual na doutrina católica

"O que houve foi uma mudança real naquilo que a Igreja já vinha defendendo sobre a pena de morte. Não foi uma mudança brusca, foi uma mudança gradual, porque já os papas João Paulo 2o e Bento 16 eram contrários à pena de morte e falavam isso", contextualiza o vaticanista Domingues. "Mas o catecismo ainda dizia que, em alguns casos, quando para a defesa do bem comum, para proteger a sociedade e quando não houvesse nenhum outro recurso, a pena de morte seria admissível, após a certeza de que a pessoa era culpada."
Image captionPapa Francisco disse que 'a Igreja ensina, à luz do Evangelho, que a pena de morte é inadmissível, porque atenta contra a inviolabilidade e a dignidade da pessoa'
Domingues ressalta que a Igreja não defendia a pena de morte, mas admitia sua aplicação em determinados casos. "Agora, está claramente explícito que, para a Igreja, a pena de morte é inadmissível. Essa palavra é muito forte. Inadmissível porque se trata de um ataque à dignidade da vida humana. E o novo texto ainda diz que a Igreja trabalha com determinação para a abolição da pena de morte em todo o mundo", analisa o vaticanista. "Ou seja: a Igreja passa de uma posição um pouco passiva para uma posição muito diferente: 'isto é inadmissível e vamos fazer o possível para que a pena de morte acabe'."
Coordenador do Núcleo Fé e Cultura da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, o sociólogo e biólogo Francisco Borba Ribeiro Neto contextualiza que, até então, havia uma preocupação da Igreja em não interferir em decisões internas dos países.
"A posição da Igreja, contrária à pena de morte, já é antiga na tradição. O problema é que havia a ideia de que a pena de morte estava dentro das legislações nacionais, e a Igreja não poderia se intrometer nas opções políticas de cada país", explica.
"O grande passo de Francisco, em seu papado, é essa preocupação em deixar mais claro certos princípios que estão presentes na doutrina mas que foram, de certa forma, pouco explicitados - por medo, para evitar que a Igreja parecesse estar intervindo em questões do mundo laico, por exemplo", afirma Ribeiro Neto.

Por que levou tanto tempo?

Ao longo da História, a pena de morte chegou a ser endossada por antigos teólogos. Santo Agostinho (354-430) certa vez teorizou que não haveria contradição entre a pena de morte e o mandamento "não matarás".
De acordo com ele, como o carrasco seria apenas "uma espada na mão de Deus", ele não estaria violando o mandamento, já que estaria agindo conforme a autoridade do Estado. Santo Ambrosio (340-397) não condenou mas recomendou que os membros do clero não encorajassem nem executassem a pena capital.
Image captionOs cinco anos de papado de Francisco foram marcados por muitas mudanças na Igreja
São Tomás de Aquino (1225-1274) argumentava que havia menções à pena de morte nas escrituras, o que justificaria a medida extrema. Papa Inocêncio (1160-1216) declarou que "o poder secular pode, sem pecado mortal, exercer juízo de sangue, desde que o castigo seja empregado com justiça e não por ódio, com prudência e não por precipitação".
Na versão de 1566, o catecismo romano dizia que Deus havia confiado às autoridades civis o poder "sobre a vida e a morte".

No Vaticano

Uma curiosidade histórica é que o Vaticano, cujo chefe de Estado é o papa, autorizava a pena de morte em seus domínios entre 1929 e 1969. Tal pena era reservada a alguém que tentasse assassinar o líder máximo da Igreja Católica – no período, tal lei nunca foi aplicada.
Essa medida foi instituída pelo Tratado de Latrão, de 1929, em uma cópia da legislação italiana da época no que dizia respeito a tentativa de assassinato do chefe de Estado da Itália. "Considerando que a pessoa do Sumo Pontífice é sagrada e inviolável, a Itália declara qualquer tentativa contra a Sua pessoa ou qualquer incitamento para cometer tal tentativa de ser punível pelas mesmas penas que todas as tentativas semelhantes e incitamentos para cometer o mesmo contra a pessoa do Rei."
Image captionManifestantes protestam contra a pena de morte nos EUA
Enquanto vigorou a lei, não houve registro de tentativa de assassinato do papa. Quando o turco Mehmet Ali Agca tentou assassinar João Paulo 2º, em 1981, ele acabou julgado por um tribunal italiano – e não pelo Vaticano.
Foi o papa Paulo 6º, em 1969, que removeu o estatuto da pena capital da legislação do Vaticano. As revisões foram consequência do Concílio Vaticano 2º, encerrado quatro anos antes.

Quando a Igreja executou

No passado, entretanto, a Igreja Católica também condenou pessoas à morte. E não só na época medieval, com as famosas perseguições do Tribunal da Santa Inquisição, criado no século 13 - que condenava aqueles que não professassem a fé católica ou representassem ameaça às doutrinas. Sobre a Inquisição, de acordo com estudo feito pela própria Igreja em 2004, o país onde o tribunal eclesiástico fez mais vítimas foi a Alemanha - 25 mil execuções.
Mais recentemente, o mais famoso carrasco da Santa Sé foi Giovanni Battista Bugatti, que viveu entre 1779 e 1869 e trabalhou na função entre 1796 e 1865. Ele era conhecido como Mastro Titta - corruptela de "maestro di giustizia", ou mestre de justiça. Oficialmente, ele realizou 516 execuções - decapitava os condenados com um machado ou realizava enforcamentos.
No livro Pictures From Italy, de 1846, o escritor britânico Charles Dickens (1812-1860) relata uma de suas execuções.
Professor Edgar Bom Jardim - PE

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