sábado, 26 de fevereiro de 2022

Carnaval 'só para rico'? Cidades cancelam festas públicas e liberam as privadas




Bloco de Carnaval

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Para muitos dos foliões que gostam de curtir o Carnaval de rua, aproveitando de forma gratuita os blocos que levam multidões em diferentes de cidades do Brasil, o clima atual não é assim tão festivo.

Em centenas de municípios, a festa popular, aberta ao público, foi cancelada por oferecer riscos à saúde diante da pandemia de covid-19.

Em grandes capitais como Rio de Janeiro, Salvador, Belo Horizonte e São Paulo, no entanto, ainda é possível participar de festas, mas só pagando.

A depender do que o evento oferece, a entrada pode ser mais barata ou mais cara


Para um grande festival no Rio, com a apresentação de artistas como a dupla sertaneja Maiara e Maraísa, os ingressos vão de R$ 180 a R$ 710, por exemplo.

Cada festa deve cumprir com protocolos de saúde determinados pela cidade, o que está entre as justificativas das prefeituras para a liberação unilateral.

As determinações distintas para festas públicas e privadas dividiu opiniões.

Nas redes sociais, alguns criticam a existência de um Carnaval 'só para quem pode pagar', enquanto outros afirmam sentir mais segurança em locais que pedem teste de covid-19 negativo e comprovante de vacinação.


Os grandes desfiles de escola de samba também foram impactados pela pandemia. Em alguns lugares, as apresentações foram canceladas, e no Rio de Janeiro e São Paulo, locais que recebem milhares de pessoas na ocasião, foram adiados para abril.

Na opinião de Kaxitu Ricardo Campos, presidente da Federação Nacional das Escolas de Samba (Fenasamba), as restrições específicas causam segregação.

"O 'povão' é obrigado a ficar em casa, mas quem tem dinheiro pode ir para as festas que acontecerão em todo o Brasil", diz Campos.

"Todo o segmento da cultura, que sofreu bastante na pandemia, pôde se reorganizar e está retomando as atividades aos poucos. Mas com as restrições atuais, as escolas de samba ainda têm muita dificuldade em vários aspectos, desde a organização de ensaios até a angariação de fundos com patrocinadores e a vendas de fantasias. Acredito que há um preconceito contra as atividades do Carnaval e das escolas de samba, que está ligado ao racismo estrutural."

De acordo com Campos, a ideia de criar a federação surgiu por ele e outros memblros observarem o fortalecimento de movimentos políticos conservadores no começo da última década.

"Percebemos que algumas ideologias passaram a afetar os desfiles, seja por parte de alguma prefeitura retirando apoio financeiro ou por narrativas religiosas, que dizem que o Carnaval infringe os ensinamentos de Deus, refletindo um preconceito com religiões de matrizes africanas e com culturas diferentes. Agora, a narrativa é a covid, e temos medo que no ano que vem aconteça o mesmo."

Com aglomeração, nenhuma festa é totalmente segura

A ômicron é a variante do coronavírus predominante no Brasil atualmente, e por sua alta capacidade de transmissão, o melhor é evitar qualquer aglomeração, dizem especialistas.

Foliões comemoram o Carnaval

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Nenhuma aglomeração é livre de riscos da covid-19, apontam especialistas

"A doença é transmitida quando pessoas sem máscara ficam a menos de um metro de distância no período de dois dias antes até cinco dias depois do aparecimento dos sintomas", diz a infectologista Viviane Maria de Carvalho Hessel Dias, professora e pesquisadora da PUCPR.

"O que acontece nessas festas, sejam elas de rua ou privadas, é que para comer ou beber, as pessoas tiram as máscaras. Independentemente do protocolo estabelecido, nada dá garantia total de proteção."

A pesquisadora lembra ainda que os testes de covid-19 podem apresentar falsos negativos.

Ela também alerta para o fato de que pessoas com comorbidades ou sem o esquema de vacinação completo estão mais vulneráveis a desenvolver casos graves da doença.

"Se acabar se infectando, talvez quem você tenha em casa esteja mais vulnerável tenha mais dificuldade para superar a doença. Ir a um evento de Carnaval com muitas pessoas, seja ele público ou privado, é assumir riscos."

Se a maior transmissão do vírus acontece, isso também favorece o aparecimento de novas variantes.

"Quando alguém é infectado, o processo de replicação viral feito pelo Sars-Cov-2 para se espalhar pelo corpo está sujeito a pequenos erros. De 'cópia em cópia', esse pequenos erros vão se juntando até formarem um erro maior, e assim surgem as mutações que chamamos de variantes de preocupação, como a delta e a ômicron", explica a médica.

São Paulo e Belo Horizonte explicam restrições

Em resposta à BBC News Brasil, a Prefeitura de São Paulo afirma que, com a previsão de atrair até 15 milhões de pessoas vindas de várias regiões do Brasil e também de outros países, o ambiente do Carnaval seria propício à propagação da ômicron.

"Permitir eventos com os blocos de rua seria uma irresponsabilidade. O maior intuito da proibição é conter o avanço da pandemia, o que se sobrepõe a qualquer outro. A saúde e a vida da população devam ser os principais objetivos da ação pública", afirmou a prefeitura por meio da assessoria de imprensa.

De acordo com a resposta, três coletivos de blocos de rua responsáveis por mais de um terço dos desfiles inicialmente agendados, anunciaram o cancelamento antes mesmo da Prefeitura.

"Isso mostra que a percepção dessa necessidade era, não só da administração municipal, mas também da sociedade civil."

Pessoas comemoram Carnaval de rua no Rio de Janeiro

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Carnaval de rua do Rio de Janeiro atrai multidões e está suspenso desde o inicio da pandemia

Sobre o desfile de escolas de samba, a assessoria respondeu que a organização demanda tempo, já que as apresentações atraem turistas e necessitam de alto investimento que dificultaria ainda mais a situação das agremiações, caso fosse necessário um adiamento de última hora.

"A decisão pelo adiamento, tomada em conjunto com a Prefeitura do Rio de Janeiro, foi anunciada em janeiro deste ano, após parecer das autoridades de saúde dos dois municípios, com os indicadores e projeções possíveis à época. Os desfiles deverão ser realizados no feriado de Tiradentes."

As festas e eventos particulares, disse a Prefeitura da capital paulista, estão sujeitos às regras estabelecidas pelas autoridades de saúde, sendo que os organizadores devem exigir o comprovante de vacinação.

"Anteriormente, o passaporte era obrigatório apenas para eventos acima de 500 pessoas, mas foi ampliado para todas as festas e similares, independentemente do público presente, justamente pelo aumento de casos com a chegada da variante ômicron. Pelas regras vigentes, os organizadores devem limitar o público a 70% da capacidade do local. Também é obrigatório o uso de máscaras em todos os momentos em que as pessoas não estiverem se alimentando, além de disponibilizar álcool em gel e propiciar condições para a higienização do público."

A Prefeitura de Belo Horizonte afirmou que decidiu não patrocinar o Carnaval, não realizar nenhum tipo de cadastro de blocos ou investimento em infraestrutura ou permitir desfiles de escolas de samba.

"A decisão segue as orientações da Nota Técnica do Comitê de Enfrentamento à covid-19, divulgada em novembro de 2021, que desaconselha que a administração incentive e que a população participe de eventos que possam implicar em grandes aglomerações públicas de pessoas, sem controle de entrada", disse, por meio da assessoria de imprensa.

Ensaio da escola Mocidade com componentes usando máscaras

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Ensaio da escola de samba Mocidade Independente de Padre Miguel, do Rio de Janeiro, durante a pandemia

No caso de eventos privados, a Prefeitura diz que o protocolo vigente da cidade exige que os organizadores cobrem do público e dos funcionários a apresentação do comprovante da segunda dose da vacina contra a covid-19 ou do resultado negativo em teste da doença para a entrada nos espaços.

"Os testes devem ser do tipo RT-PCR, realizado até 48 horas antes do evento ou da atividade, ou teste pápido de antígeno, realizado 24 horas antes do evento ou da atividade. A regra é válida para eventos (casamentos, festas, partidas de futebol em estádios, corridas de rua e similares) com qualquer quantidade de público."

A BBC News Brasil entrou em contato com as prefeituras de outras capitais, como Rio de Janeiro e Salvador, mas não recebeu resposta até o momento.

  • Giulia Granchi
  • Da BBC News Brasil em São Paulo
Professor Edgar Bom Jardim - PE

Como o segundo ano sem Carnaval deve impactar a economia brasileira



Desfile do bloco Boitolo no Rio de Janeiro reúne multidão nas ruas

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Bloco Boitolo desfila no Rio de Janeiro antes da pandemia. Carnaval de rua foi cancelado nas principais capitais do Brasil

O cancelamento pelo segundo ano seguido das festas de Carnaval por conta da pandemia de covid-19 deve trazer impactos intensos para a economia do Brasil, em especial para os setores de eventos e turismo.

Das 27 capitais brasileiras, 24 mais o Distrito Federal anunciaram oficialmente que a folia deste ano foi suspensa ou adiada, impondo proibições a blocos de rua e um limite máximo de lotação para eventos fechados. São Paulo e Rio de Janeiro remarcaram os desfiles das escolas de samba para o feriado de Tiradentes.

Segundo a Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), tudo isso fará com que o setor de serviços deixe de lucrar algo em torno de R$ 3 bilhões.

A estimativa faz parte de um estudo comandado pela organização todos os anos antes do Carnava



Antes da crise sanitária, a folia costumava movimentar, em média, R$ 9,5 bilhões em receitas.

Apesar do volume de faturamento previsto para este ano ser 21,5% maior do que o registrado em 2021, quando as celebrações também foram suspensas e o setor de serviços não lucrou, ainda está 33,7% inferior ao observado no Carnaval de 2020, realizado antes da pandemia ser decretada pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

"O Carnaval brasileiro ainda tem muito o que recuperar nos próximos anos para voltar ao nível de dois anos atrás", prevê o economista da CNC responsável pela pesquisa, Fabio Bentes.

"Se não sofrermos nenhum outro grande golpe no futuro próximo, acredito que os R$ 7 bilhões em receita perdidos que estimamos que serão perdidos entre 2021 e 2022 possam ser recuperados em cerca de três anos", diz.

Impactos em todo o país

Segundo Bentes, os Estados que mais serão afetados após dois anos sem folia são aqueles que recebem mais visitantes por conta do Carnaval, como Bahia, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Pernambuco.

Na Bahia, onde ocorre um dos maiores Carnavais do país, deixou-se de arrecadar R$ 1,7 bilhão em 2021 e mais de 60 mil pessoas ficaram sem opção de trabalho. O rombo deve ser ampliado ainda mais no segundo ano seguido.

Desfile da Escola de Samba Imperatriz Leopoldina em 2008 reúne público e membros da escola fantasiados

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Desfile da Escola de Samba Imperatriz Leopoldina em 2008

Já a economia do Rio de Janeiro deixou de movimentar algo em torno de R$ 5,5 bilhões em 2021, segundo o Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV IBRE). O valor equivale a 1,4% do PIB carioca.

Em 2022, a expectativa é que o faturamento ainda seja 20% menor do que o de 2020, quando a festa movimentou R$ 4 bilhões na economia do Estado.

Em São Paulo, o último Carnaval movimentou cerca de R$ 3 bilhões, ou 2% do PIB paulista.

Menos festas e menos viagens


Segundo a Associação Brasileira de Eventos (Abrape), aproximadamente 50 mil eventos relacionados à folia não foram e não serão realizados no Carnaval (antes, durante e depois).

Para efeitos de comparação, em 2019, foram realizados 90 mil eventos. No Nordeste, por exemplo, o prejuízo no setor será de 8,1 bilhões de reais que deixarão de circular só nos dias de festa.

"Não são somente os carnavais de rua de Salvador ou Recife que estão deixando de acontecer ou os desfiles em São Paulo e Rio de Janeiro que foram adiados - festas em todo o país foram canceladas, ao mesmo tempo em que muitas pessoas estão deixando de viajar", diz Doreni Caramori Júnior, presidente da Abrape. "A cadeira inteira do setor de eventos e turismo está sendo abalada".

Empresas áreas e do setor de hotelaria também devem lucrar menos. A expectativa da CNC é que o segmento de serviços de hospedagem em hotéis e pousada movimente cerca de R$ 660 milhões no feriado, quando no mesmo período de 2020 a previsão era de R$ 860 milhões.

Ainda assim, o setor de turismo espera recuperar parte dos prejuízos de 2021. Em cidades como Salvador e Rio de Janeiro a ocupação hoteleira está acima dos 80%, mesmo sem a presença das festas na rua.

Entre empresários do setor de bares e restaurantes também há uma sensação de otimismo. "Bares e restaurantes estão otimistas com o feriado e a expectativa de faturamento varia de 20 a 30% em cidades litorâneas", diz Paulo Solmucci, presidente-executivo da Abrasel.

Multidão segue trio elétrico em bloco de Carnaval

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Trio elétrico do empresário Mazinho Twister em Carnaval pré-pandemia no interior de São Paulo

De acordo com o levantamento da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo, o segmento de alimentação fora do domicílio, representado por bares e restaurantes, deve movimentar algo em torno de R$ 2,78 bilhões nos quatro dias do feriado. Há dois anos atrás a previsão era de R$ 4,8 bilhões.

Segundo Solmucci, os consumidores já estão se sentindo mais seguros para frequentar bares e restaurantes. Muitas pessoas que nos anos pré-pandemia costumavam acompanhar blocos de Carnaval ou iam a festas também devem trocar essas atividades por saídas com a família e amigos para locais mais calmos.

"Entretanto, cidades como Belo Horizonte, que não terão a festa na rua, a expectativa de faturamento do setor tende a ser reduzida devido ao menor número de turistas presentes na capital mineira", diz ele.

Sem festa, sem trabalho

Mas segundo Fabio Bentes, não há dúvidas de que os trabalhadores, formais e informais, serão muito impactados pelo segundo ano sem Carnaval.

Um bloco na rua, por exemplo, movimenta uma cadeia de trabalhadores que vai desde locadores e montadores de trios elétricos a vendedores ambulantes e catadores de materiais recicláveis.

Só em São Paulo, por exemplo, foram abertas 12 mil vagas temporárias para vendedores ambulantes de bebidas em 2020. Com o cancelamento dos blocos e o adiamento do desfile na cidade, não há qualquer garantia de lucro com a folia para essas pessoas.

E não são apenas os vendedores que sentem o impacto das ruas vazias durante o Carnaval. Segundo o presidente da Associação Nacional dos Catadores e Catadoras de Materiais Recicláveis (Ancat), Roberto Rocha, a folia é a época do ano mais importante para os catadores.

"O período das festas sempre foi uma excelente oportunidade de renda extra. E esse 'plus' está fazendo uma baita diferença na vida de muitas famílias", diz. "No ano de 2020, fizemos uma parceria com o setor de bebidas e alimentos e, além do valor recebido nas cooperativas pelo material coletado, os trabalhadores ainda ganharam pelo serviço de limpeza".

Segundo Rocha, os lucros obtidos pelos catadores durante o Carnaval chegavam a representar até 30% de toda a renda mensal.

Apesar das iniciativas de algumas empresas privadas para distribuição de auxílio para catadores e ambulantes, boa parte dos ganhos previstos para esta época do ano deixarão de fazer parte da receita familiar desses brasileiros.

'Famílias sofrendo e precisando de ajuda'

Mazinho Twister, como é conhecido Francisco Aparecido de Alencar, de 47 anos, é dono de uma empresa que fabrica e loca trios elétricos. Todos os anos durante o Carnaval, ele costuma alugar seus veículos para até 30 eventos realizados por todo o Estado de São Paulo.

Em 2022, Mazinho está com todos os seus 14 trios elétricos parados na garagem. "Meu lucro foi há zero nos últimos dois anos. Eu tinha 22 funcionários e suspendi todos, com exceção de um rapaz que cuida da garagem e ajuda na conservação dos trios", conta o empresário, que mora em Campinas.

"A maioria das pessoas dispensadas estão vivendo atualmente apenas do auxílio do governo", diz.

Mazinho lamenta ainda a situação de muitos de seus colegas de ramo, que foram obrigados a vender seus trios diante da falta de trabalho. "Eu por enquanto estou resistindo, mas estou com o aluguel da garagem onde guardo os veículos atrasado e 90.000 reais de dívida no banco", conta.

O anseio por sair às ruas é compartilhado por Luiz Adolpho, presidente do clube do Homem da Meia-Noite, um dos mais tradicionais e famosos blocos de Olinda. "Tenho 57 anos e antes da pandemia não me lembro de um Carnaval em que não brinquei na rua", conta.

O bloco de 90 anos de história não desfila há dois anos e tomou a decisão de também não participar de eventos fechados. Mantém contato com o público apenas por meio de clipes lançados pelas redes sociais e visitações à sua sede, com obrigatoriedade de máscara e apresentação de um comprovante de vacinação.

Segundo Adolpho, o Homem da Meia-Noite emprega uma média de 450 a 600 pessoas todos os anos, entre músicos, operadores de som, seguranças e montadores. "Infelizmente não conseguimos manter todos os funcionários desde o início da pandemia. Fizemos arrecadação de cestas básicas para ajudar os mais necessitados, mas não é possível atender a todos que foram prejudicados pelo cancelamento dos blocos em Olinda e Recife", lamenta o pernambucano.

"Na verdade, há uma grande necessidade de acolhimento das pessoas que ficaram sem renda por conta de todos os eventos de Carnaval que não acontecerão em todo o Brasil. Recebemos relatos de muitas famílias sofrendo e precisando de ajuda".

  • Julia Braun
  • Da BBC News Brasil em São Paulo
Professor Edgar Bom Jardim - PE

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

A história por trás de alegação de Putin sobre 'desnazificar' Ucrânia com ataque militar


 

Vladimir Putin

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Vladimir Putin afirmou querer "desnazificar" a Ucrânia

Ao anunciar que iniciaria uma "operação militar especial" contra a Ucrânia, durante a madrugada desta quinta-feira, 24/2, o líder russo Vladimir Putin justificou sua ação pela necessidade de "desnazificar e desmilitarizar a Ucrânia".

"Tomei a decisão de realizar uma operação militar especial. Seu objetivo será defender as pessoas que há oito anos sofrem perseguição e genocídio pelo regime de Kiev. Para isso, visaremos a desmilitarização e desnazificação da Ucrânia", afirmou Putin em um discurso televisionado, ao mesmo tempo em que mísseis e forças armadas russas iniciavam uma incursão que a autoridade ucraniana afirma ter atingido todas as regiões do país em ao menos 70 pontos diferentes, como aeroportos e portos, e já ter matado mais de 130 pessoas.

O movimento russo é um desfecho dramático para uma crise geopolítica internacional que se desenrolou nos últimos 4 meses, quando Putin começou a instalar suas forças militares na região da fronteira com a Ucrânia.

Inicialmente, o presidente russo se dizia preocupado com a segurança nacional do país dada a expansão da aliança militar da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) no leste europeu. Putin queria garantias de que a Ucrânia não seria admitida na aliança - o que, em tese, permitiria aos EUA instalar bases militares na região vizinha ao território russo

Contudo, ao acusar o atual governo ucraniano, comandado pelo presidente judeu Volodymyr Zelensky, de ser nazista - sem qualquer prova disso -, Putin extrapola preocupações atuais e práticas com a segurança do país e mobiliza uma série de conceitos e eventos históricos na região e que, de acordo com os especialistas, o ajudaria a justificar para o mundo e especialmente para o povo russo as ações militares contra um povo igualmente eslavo

Putin evoca as memórias coletivas dos ataques de Adolf Hitler na Europa, especialmente da invasão dos nazistas contra a então União Soviética, e a noção de genocídio e limpeza étnica contra um povo - nesse caso, contra os separatistas russos na Ucrânia - e tenta caracterizar seus atos não como agressão a um outro país, como o acusam Ucrânia, EUA e Europa Ocidental, mas como uma tentativa de defesa.

"A Segunda Guerra Mundial é ainda hoje uma parte importante da cultura e da política russa, e a falsa afirmação de que o governo ucraniano hoje é como o governo aliado nazista da Ucrânia na Segunda Guerra Mundial ou o Exército de Libertação Ucraniano (o grupo que lutou ao lado dos nazistas) é uma tentativa de moldar a opinião russa em relação ao atual governo ucraniano", afirmou à BBC News Brasil Adam Casey, cientista político especialista em Rússia da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos

De onde vem a noção de que o atual governo ucraniano é nazista?

É impossível entender as referências feitas por Putin sem voltar algumas décadas na História. Se, por um lado, o modo como o Exército Vermelho, da União Soviética, combateu e derrotou as tropas nazistas alemãs na Segunda Guerra Mundial ainda mobiliza o imaginário dos russos e seu orgulho nacional, de outro lado, a reação de ao menos parte dos seus vizinhos ucranianos em relação a Hitler segue sendo motivo de hostilidade entre russos e ucranianos.

Quando o exército nazista adentrou as áreas ucranianas, em 1941, uma parte da população optou por colaborar com os alemães, enquanto boa parte do país foi varrida por sofrimento e destruição. Mais de 5 milhões de ucranianos morreram combatendo os nazistas, que mataram a maior parte dos 1,5 milhão de judeus ucranianos.

A ocupação alemã durou até 1944, e os ucranianos que se engajaram na cooperação com os alemães nazistas atuaram na administração local, se tornaram parte da polícia nazista ou viraram guardas em campos de concentração. O governo civil alemão nazista foi batizado de Reichskommissariat Ukraine, ou RKU, e compreendia o que hoje se divide entre o território da Ucrânia, Belarus e Polônia.

Manifestação de ucranianos de extrema direita em Kiev, em 2015, com a bandeira de Stepan Bandera

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Manifestação de ucranianos de extrema direita em Kiev, em 2015, com a bandeira de nacionalista ucraniano Stepan Bandera, que colaborou com nazistas

Uma das figuras mais proeminentes - e controversas - desse nacionalismo colaboracionista ucraniano foi Stepan Bandera, que primeiro atuou para facilitar o domínio dos nazistas na região e depois se voltou contra eles, quando percebeu que seu plano de independência da Ucrânia não se concluiria. Bandera passou anos em um campo de concentração nazista e acabaria assassinado por um agente da KGB em 1959.

Por trás da colaboração com os nazistas, estava um desejo de independência de parte dos ucranianos e a crença de que os alemães poderiam ser o caminho para se livrar do líder soviético Joseph Stálin.

Esse sentimento foi catapultado por outro evento histórico que recém completou 90 anos: o Holodomor, ou Fome-Terror ou ainda Grande Fome, um período em que, de acordo com a estimativa do historiador Timothy Snyder, da Yale University, cerca de 3,3 milhões de pessoas morreram de fome. Há, no entanto, quem diga que esse número foi até 3 vezes maior que a estimativa de Snyder.

Embora a fome tenha atingido a União Soviética como um todo nesse período, especialmente por políticas econômicas do regime de Stálin, os ucranianos - e outros 15 países - consideram Holodomor um genocídio. Isso porque, de acordo com alguns historiadores, a fome na Ucrânia teria sido muito pior do que a no restante da região por uma decisão deliberada de Stálin de remeter menos recursos à região e proibir o deslocamento das pessoas em busca de alimentos. O líder soviético teria tomado a decisão de punir e pressionar o campesinato ucraniano, que resistia a ceder suas férteis propriedades agrícolas ao controle do Estado, como ordenava o regime soviético.

Tropas nazistas invadem uma casa na ucraniana Sebastopol, em 1942

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Tropas nazistas invadem uma casa na ucraniana Sebastopol, em 1942, durante a ocupação alemão, quando cerca de 5 milhões de ucranianos morreram

O Holodomor virou um trauma coletivo que ainda assombra a Ucrânia, mesmo 90 anos após os acontecimentos, e que serviu de combustível para o sentimento antissoviético que Bandera encarnou nos anos 1930 e 1940.

Mas por que a história de Bandera importa agora, quase um século depois?

A resposta está nos acontecimentos detonados em 2013, quando o então presidente ucraniano Viktor Yanukovych, que comandava um governo pró-Rússia, cedeu à pressão de Putin e se recusou a assinar um pacto de aproximação do país com a União Europeia, algo que a maioria dos ucranianos desejava.

A decisão do presidente fez irromper protestos populares pelo país. Em um deles, na Praça Maidan, na capital ucraniana Kyev, estima-se que 100 mil pessoas se manifestaram. Após meses de tensão, em 2014, Yanukovych fugiu para a Rússia e acabou deposto.

"Essa referência a nazistas e neonazistas se tornou muito proeminente na mídia russa por volta de dezembro de 2013, porque, na época dos protestos da Praça Maidan, alguns dos manifestantes faziam coisas como hastear uma bandeira de (Stepan) Bandera, um nacionalista ucraniano que, temporariamente, durante a Segunda Guerra Mundial, cooperou com os nazistas para tentar buscar a independência ucraniana. Há um segmento da população ucraniana que relembra aquelas tentativas de alcançar a independência ucraniana sob (Joseph) Stalin, aliando-se a Hitler, não como uma colaboração com o nazi-fascismo, mas como a atuação de patriotas ucranianos e heróis nacionais", explicou à BBC News Brasil Brian Taylor, professor de Ciência Política da Syracuse University e autor de The Code of Putinism (O Código do Putinismo, em tradução livre).

A Rússia retaliou a derrubada de Yanukovych tomando a Crimeia e desencadeando uma rebelião no leste ucraniano liderada por separatistas apoiados pela Rússia — o confronto contra as forças ucranianas já custou 14 mil vidas. Nesse período, algumas milícias de extrema-direita passaram a atuar para repelir os separatistas russos. São grupos como o Pravy Sektor e o Azov Battalion, que costumam empunhar bandeiras de Bandera, a quem Putin chama de "cúmplice de Hitler" e que hoje detém status de "herói nacional ucraniano". Nenhum desses grupos extremistas, no entanto, jamais conseguiu eleger parlamentares para o Congresso Nacional ucraniano nem tem representantes no Executivo.

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Conflito entre Rússia e Ucrânia pode se transformar em 3ª Guerra Mundial?

"A Ucrânia não é controlada por nazistas ou fascistas, apesar do crescimento de grupos ultra nacionalistas e fascistas nos últimos anos - um problema global não específico da Ucrânia. Na verdade, o governo democraticamente eleito da Ucrânia é comandado por um presidente judeu, Volodymyr Zelensky, cujos tios-avôs e outros membros da família foram assassinados durante o Holocausto", afirmou à BBC News Brasil a historiadora Amy Randall, da Santa Clara University, na Califórnia, especialista em Rússia.

Na noite desta quarta-feira (23/2), depois de tentar se comunicar com Putin e ser ignorado repetidamente, o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky foi à TV e se dirigiu em russo à população da Rússia, a quem apelou para que impedissem o Kremlin de prosseguir com um ataque. Em seu discurso emocionado, Zelensky abordou as acusações de que seu governo é nazista, o que viria a ser repetido por Putin horas mais tarde, no momento do anúncio da operação militar.

Volodymyr Zelensky

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O presidente ucraniano judeu, Volodymyr Zelensky, questionou argumento de Putin: "como posso ser nazista?"

"Dizem a vocês (russos) que somos nazistas. Mas pode um povo que deu mais de oito milhões de vidas pela vitória sobre o nazismo apoiar os nazistas? Como posso ser nazista? Explique isso ao meu avô, que passou por toda a guerra na infantaria do exército soviético e morreu como coronel na Ucrânia independente", afirmou Zelensky.

Os especialistas em Rússia, no entanto, apontam que a utilização por Putin desse tipo de argumento junto à população tende a acessar o emocional da população russa e faz parte de um movimento maior do líder de mobilização de apoio popular.

"Esta retórica de desnazificação é poderosa porque evoca a memória do imenso sofrimento e vitória final do povo soviético durante a Segunda Guerra Mundial. Nos últimos anos, Putin intensificou deliberadamente a comemoração da "Grande Guerra Patriótica", como a Segunda Guerra Mundial é conhecida na Rússia, promovendo o Dia da Vitória como o feriado mais importante e usando a guerra para aumentar o orgulho nacionalista entre os russos", afirma Randall.

Do mesmo modo, alertam os especialistas, o uso do termo genocídio por Putin, para caracterizar uma falsa situação de aniquilamento da população russa na Ucrânia apela ao mesmo tipo de sentimento. De acordo com Brian Taylor, o recurso ao termo "genocídio" para justificar incursões militares russas em áreas vizinhas não é novidade na política internacional de Putin. "Em 2008, ele fez o mesmo com a Geórgia e, em 2014, na Crimeia", afirma Taylor.

De fato, existe um conflito nas áreas separatistas de Donetsk e Lugansk desde 2014, em que separatistas russos financiados pelo governo russo enfrentam forças do Exército ucraniano, e que já resultou na morte de 14 mil pessoas.

Mas há também uma guerra de desinformação em curso na área. Em 2015, uma equipe da BBC mostrou como, na região de Donetsk, onde apenas emissoras de televisão russas transmitiam programas desde 2014, a história da morte de uma garota russa, de 10 anos, em um bombardeio ucraniano foi inteiramente inventada. Jornalistas da mídia russa, responsáveis por reportar a história, admitiram à BBC que a menina jamais existiu. "Nós tivemos que transmitir isso", afirmaram os profissionais russos à BBC.

"O genocídio é uma grave acusação - e que a comunidade internacional leva a sério. Neste caso, é claro, nenhum genocídio está ocorrendo. Mas a pretensão de ser o protetor do mundo russo, por assim dizer, é uma justificativa comum para a política externa de Putin, e essa acusação infundada de genocídio reforça sua afirmação para o público doméstico de que ele é o protetor dos russos étnicos em toda a antiga União Soviética", afirma Casey.

  • Mariana Sanches - @mariana_sanches
  • Da BBC News Brasil em Washington
Professor Edgar Bom Jardim - PE