domingo, 23 de janeiro de 2022

'Vacinem seus filhos. A proteção do meu depende da imunidade comunitária': o apelo de mãe de menino à espera de vacina


Hélio com sua mãe, Thaís

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Hélio com sua mãe, Thaís: ele toma um medicamento imunossupressor desde o primeiro ano de vida

Quando Hélio Tenório, de 5 anos, vê outras crianças na rua, fica difícil para ele esconder um sorriso. Segundo sua mãe, Thaís Sêco, por ter passado a maior parte dos últimos dois anos fora das aulas presenciais e sem brincar pessoalmente com colegas da mesma idade, ele, que é naturalmente sociável, fica em êxtase quando encontra alguém que possa se tornar seu amigo.

O isolamento do pequeno não foi à toa. Hélio toma um medicamento imunossupressor desde seu primeiro ano de vida, já que foi diagnosticado com AVB (atresia de vias biliares) logo após o nascimento e, aos seis meses, precisou passar por um transplante de fígado.

De acordo com a SBP (Sociedade Brasileira de Pediatria), a doença é o motivo mais comum de transplante hepático em crianças, e sua causa não é completamente conhecida. No caso de Hélio, a cor amarelada da pele que não sumiu depois dos banhos de sol e as fezes claras quando deveriam ser amarelas foram sinais que ajudaram no diagnóstico.

Em um organismo com o quadro, há uma inflamação e obstrução dos ductos biliares, responsáveis por transportar a bile, líquido que ajuda na digestão de gorduras e carrega algumas substâncias para serem eliminadas pelo intestino. A bile fica retida no fígado, provocando rapidamente danos ao órgão, o que pode evoluir para cirrose e óbito, caso o paciente não seja tratado precocemente.

Para muitas crianças, a saída é fazer um procedimento conhecido como 'cirurgia de Kasai', que tem como objetivo fazer uma ligação do intestino delgado ao local de maior acumulação de bile no fígado e pode retardar a necessidade de um transplante de fígado em mais de uma década. No caso de Hélio, a cirurgia não teve sucesso, o que fez com que ele precisasse receber um pedaço do fígado do pai.

'Conto com a ciência desde que ele nasceu'

O fígado é o único órgão capaz de se regenerar, o que permitiu que seu pai, Thiago Duque, continuasse vivendo saudavelmente após doar 30% do órgão para o filho.

"O volume ainda era muito superior ao tamanho de um bebê, por isso, os médicos reduziram ainda mais. Foi uma cirurgia extremamente delicada que demorou 13 horas. Para que ele pudesse viver, conto com a ciência desde que ele nasceu. Agora, com a vacina, não seria diferente", diz Thaís, que tem 36 anos e é professora do departamento de Direito da UFLA (Universidade Federal de Lavras) e está licenciada para se dedicar à pesquisa de doutorado.

Hélio indo à escola

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Hélio e sua família aguardam início da vacinação em sua cidade

Por diferentes intercorrências na saúde, até um ano e meio, Hélio passou por sete procedimentos cirúrgicos. Depois, o menino foi crescendo e levando uma vida como qualquer outra criança, com a ajuda do imunossupressor que impede que o corpo rejeite o órgão transplantado.

Mas como o nome sugere, a droga tem o efeito de deixar o sistema imune mais fraco. "Esses pacientes têm maior risco de contrair qualquer tipo de infecção, assim como de desenvolver formas mais graves delas", explica Lucas Fadel, pediatra e coordenador da UTI Pediátrica e Neonatal da Santa Casa de São José dos Campos (SP).

Por isso, a família de Hélio o manteve em casa durante a maior parte da pandemia, com medo que ele pudesse ter contato com o Sars-CoV-2.

'Esse coronavírus nunca vai embora, mãe?

A pergunta foi feita por Hélio em dezembro de 2021. Assim como boa parte dos brasileiros, ele estava ansioso para retomar a vida "normal", sem os perigos impostos pela covid-19. Ao ouvir da mãe que os cientistas estavam produzindo o imunizante, ele voltou à sala alguns minutos mais tarde, com sua própria versão da vacina, feita de lego, em mãos. A cena fez a mãe rir e ansiar ainda mais por uma vacina de verdade.

"Ele pode tomar a maioria das vacinas. Embora vá ter uma taxa de resposta inferior, ainda vale muito para fortalecer o sistema imunológico dele. Mas a proteção dele também depende muito da imunidade comunitária, e por isso, faço o apelo para que outros pais também vacinem seus filhos", diz Thais.

Atualmente, a família mora em Bicas, Minas Gerais, cerca de 40 quilômetros de distância de Juiz de Fora. Na cidade, a vacinação ainda não teve início. "Em Juiz de Fora já começou, mas não há nenhuma menção sobre imunossuprimidos. Aqui, um carro de som passa avisando. Estou ansiosa para ouvir o anúncio", diz a mãe.

Hélio com sua versão de lego da vacina

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Hélio com sua versão de lego da vacina

Entenda o que é considerado comorbidade

A ordem de vacinação estabelecida pelo Ministério de Saúde começa com crianças de 5 a 11 anos com deficiência permanente ou com comorbidades, depois crianças indígenas e quilombolas, seguidas por aquelas que vivem em lar com pessoas com alto risco para evolução grave de covid-19. Depois desses grupos, vêm as crianças sem comorbidades, começando dos mais velhos para os mais novos.

No entanto, cada estado (e em alguns casos, municípios), podem apresentar diferenças na logística de vacinação. Veja mais detalhes aqui.

Além de crianças imunossuprimidas por qualquer causa, são consideradas comorbidades para o público infantil pelo Ministério da Saúde: diabetes mellitus; pneumopatias crônicas graves; hipertensão arterial resistente ou de estágio 3; hipertensão arterial estágios 1 e 2 como lesão em órgão-alvo; insuficiência cardíaca; cor-pulmonale e hipertensão pulmonar; cardiopatia hipertensa; síndromes coronarianas; valvopatias; miocardiopatias e pericardiopatias; doenças da aorta, do grandes vasos e fístulas arteriovenosas; arritmias cardíacas; cardiopatias congênita no adulto; próteses valvares e dispositivos cardíacos implantados; doenças neurológicas crônicas; doença renal crônica; hemoglobinopatias graves; obesidade mórbida; síndrome de Down; e cirrose hepática.

Os primeiros da fila da vacina

Enzo com sua mãe, Milene

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Enzo com sua mãe, Milene: nos primeiros meses de vida, ele foi diagnosticado com diabetes e hipotireoidismo

Acompanhado de sua mãe, Enzo Cronemberger de Azevedo, de 9 anos, foi o primeiro a chegar no posto de saúde localizado na Vila Anastácio, bairro da zona oeste de São Paulo, para receber a vacina em dose pediátrica no último dia 17.

Milene chora ao falar do filho vacinado. "É algo que a gente esperou demais. Acompanhávamos o passo a passo das aprovações. Ter a vacina, para nós, é uma esperança. Ele estava ansioso, até disse que faria um bolo para comemorar o dia da vacina", conta a mãe, acrescentando que ele não teve nenhuma reação adversa ao imunizante.

O menino pôde ser atendido por fazer parte das crianças com comorbidades e imunossuprimidas. Nos primeiros meses de vida, ele foi diagnosticado com diabetes e hipotireoidismo. Logo depois, teve um distúrbio renal que fazia com que seu corpo eliminasse proteína em excesso na urina. O quadro, pouco comum em crianças, levou os médicos que o acompanhavam a suspeitar de uma síndrome rara.

Enzo foi então diagnosticado com a doença autoimune IPEX, quadro hereditário e raro que causa a disfunção de várias glândulas endócrinas e a inflamação do intestino. Desde então, ele faz utilização contínua de um medicamento imunosupressor, e com isso, manteve uma boa saúde.

Enzo exibe cartão de vacinação contra covid

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Enzo foi vacinado contra a covid-19

Quando a pandemia começou, Milene, que é gerente de projetos, já passou a trabalhar remotamente. "Nos primeiros meses, ficamos totalmente sem sair de casa. O contato dele é com a família - minha mãe, minha irmã, o pai dele e os irmãos por parte do pai", explica ela, hoje mora com o filho e o marido, padrasto de Enzo.

O pequeno ficou quase dois anos sem ir para escola presencialmente. Em novembro de 2021, com os cuidados indicados pelos médicos, ele voltou a estudar na mesma sala que outros colegas durante um mês, antes das férias e da nova onda causada pela variante ômicron começar.

Mesmo tomando os cuidados regularmente, Milene foi infectada pelo Sars-CoV-2 duas vezes, mas em ambas as ocasiões conseguiu proteger o filho, deixando-o na casa do pai.

"Ele entende a situação atual e é bem consciente em relação à imunidade dele, às medicações, e se manteve tranquilo no isolamento. Mas antes da volta à escola já estava chegando a um estágio em que ficar tão recluso fazia mal para ele. Não saíamos com ele para as festas, ele deixou de brincar com outras crianças e de fazer atividade física, já que as aulas de natação não eram mais possíveis", diz a mãe.

"Conversei com a médica imunologista dele, que me deu um atestado para que ele tomasse a vacina. Fiquei com medo, mas os médicos falaram: é muito melhor que ele tome a vacina."

Mitos atrapalham a vacinação

"As dúvidas sobre a vacina devem ser esclarecidas com o pediatra da criança", aconselha o médico Lucas Fadel para que as famílias não caiam em notícias falsas. Abaixo, o especialista esclarece tópicos que frequentemente são usados para desencorajar a vacina, mas que não são verdadeiros:

- A vacina não interage com o DNA celular e não causa alterações genéticas. Ela funciona como uma "receita" pronta para que o sistema imunológico possa produzir anticorpos e estar pronto para combater uma possível infecção.

- O RNAm (ou RNA mensageiro), utilizado na vacina Pfizer, não ficará indefinidamente nas células que ele entrou. Após cumprir seu papel, é inativado (como todo RNAm que o corpo humano produz). As proteínas spike do coronavírus também serão inativadas pelo organismo, assim como todas as proteínas reconhecidas como invasoras.

- Miocardite, pericardite e outros eventos vacinais são extremamente raros. "Basta olhar o número de vacinado, que são milhões, e o número de eventos, de apenas algumas dezenas", aponta Fadel.

Os eventos vacinais mais preocupantes são ainda mais improváveis e todos mostraram curso benigno. "Além do mais, o risco de desenvolver uma miocardite pela infecção por coronavírus chega a ser mais de dez vezes maior que pela vacina."

Diagnóstico recente fez Lívia entrar para o grupo prioritário

Líivia com os pais

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Lívia com, seus pais: ela foi diagnosticada com artrite idiopática juvenil sistêmica

Os pais de Lívia Martins Pinto, de 7 anos, também anseiam pela vez da filha receber o imunizante, o que deve ocorrer nos próximos dias na cidade de Indaiatuba (SP). Após ter mononucleose em 2021, a febre da menina não cessou por 15 dias seguidos. O sintoma preocupante foi o começo da luta dos pais por um diagnóstico. Os sinais que apareceram a seguir foram dores nas articulações e ânsia de vomito, o que levava Lívia a não comer e a perder peso.

Mais 15 dias se passaram, com a criança internada, antes que a equipe multidisciplinar de médicos que a examinava descobrisse o problema. Após uma bateria extensa de exames e testes, os pais receberam a notícia de que ela possuía artrite idiopática juvenil sistêmica.

"A doença faz com que os anticorpos que deveriam servir de proteção no sistema imunológico ataquem o próprio corpo. Ela inflama as articulações, causando dor, inchaço e dificuldade de movimento. Lívia tem o subtipo mais grave (sistêmica), que causa febre e alterações importantes no sangue. Além disso, ela também teve síndrome de ativação macrofágica, que causa a excessiva proliferação de macrófagos (células do sistema imune), e pode ser fatal", explica a reumatologista pediátrica Maria Teresa Terreri, professora da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), e parte da ONG Acredite, onde conheceu Lívia.

Lívia em cama de hospital

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Lívia já teve de ser internada várias vezes

Durante o ano, Lívia precisou ser internada seis vezes e agora, fazendo o uso de três medicamentos imunossupressores, tem a saúde estável. "Eu tenho medo que ela pegue qualquer coisa, mas principalmente a covid-19. Só saímos com máscaras PFF2, ainda tiramos as roupas antes de entrar em casa e não deixo ninguém se aproximar demais dela", diz a mãe, Shirlei, que tem 52 anos e é professora do ensino fundamental.

Para poder ter mais segurança, Terreri explica que não é só seguro, como também extremamente indicado, que pacientes imunossuprimidos recebam a vacina.

"Espero que o imunizante possa permitir que ela faça mais coisas. É uma menina muito especial, brilhante na escola, que até tem uma boa compreensão do que acontece com ela, mas que ainda quer brincar e visitar as amigas", diz a mãe.

  • Giulia Granchi
  • Da BBC News Brasil, em São Paulo

Professor Edgar Bom Jardim - PE

sábado, 22 de janeiro de 2022

Derretimento do maior iceberg do mundo liberou quase 50 vezes consumo de água do Brasil por dia



Berg

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Largo, mas extremamente fino: no início, o A68 tinha uma espessura média de 235m

O gigantesco iceberg A68 despejou mais de 1,5 bilhão de toneladas de água doce no oceano todos os dias no auge de seu derretimento.

Para colocar isso em contexto, é cerca de 48 vezes a quantidade de água usada diariamente por todos os brasileiros (considerando-se que cada brasileiro consome 154 litros de água diariamente, totalizando cerca de 32 milhões de toneladas por dia).

O A68 foi, por um curto período, o maior iceberg do mundo.

Ele cobria uma área de quase seis mil quilômetros quadrados quando se soltou da Antártida em 2017. Mas no início de 2021, ele já havia desaparecido.

Um trilhão de toneladas de gelo derreteram.

Pesquisadores estão atualmente tentando avaliar o impacto que o A68 teve no meio ambiente.

E uma equipe liderada pela Universidade de Leeds revisou todos os dados de satélite para calcular as dimensões do gigantesco iceberg à medida que ele se deslocava para o norte da Antártida, através do Oceano Antártico e para o Atlântico Sul.


Isso permitiu que o grupo avaliasse as taxas de fusão variáveis durante os três anos e meio de existência do iceberg.

Um dos períodos-chave foi no final, quando o A68 se aproximou dos climas mais quentes do Território Ultramarino Britânico da Geórgia do Sul.

Por um tempo, houve temores de que o bloco gigante pudesse encalhar nas águas rasas ao redor, bloqueando as rotas de milhões de pinguins, focas e baleias.

Mas isso nunca aconteceu porque, como a equipe pode mostrar agora, o A68 perdeu profundidade suficiente para permanecer flutuando.

"Parece que ele tocou brevemente a plataforma continental. Foi quando o iceberg fez uma curva e vimos um pequeno pedaço se partir. Mas não foi suficiente para derrubar o A68", disse Anne Braakmann-Folgmann, de Leeds, à BBC News.

"E acho que você pode ver o porquê nas estimativas de espessura", disse Andrew Shepherd, co-autor do estudo. "Aquela altura, a quilha do iceberg era de 141m, em média, e as cartas de batimetria (profundidade) na área mostravam 150m. No final, foi por pouco."

Em abril de 2021, o A68 havia se quebrado em inúmeros pequenos fragmentos que não podiam ser rastreados. Mas seus impactos no ecossistema terão uma vida muito mais longa.

Os icebergs gigantes, ou de topo plano, são agora reconhecidos por terem uma influência considerável onde quer que passem.

O derretimento desses pedaços enormes de água doce vai alterar as correntes locais. E todo o ferro, outros minerais e até matéria orgânica apanhados ao longo de suas vidas e posteriormente lançados no oceano entrarão na produção biológica.

O British Antarctic Survey conseguiu colocar alguns planadores robotizados nas proximidades do A68 para monitorar as condições antes que a massa de gelo se desfizesse totalmente.

Os dados recuperados desses e de outros instrumentos, embora ainda não totalmente analisados, revelam algumas características interessantes, segundo o oceanógrafo biológico Geraint Tarling.

"Achamos que há um sinal muito forte na mudança da flora das espécies de fitoplâncton em torno de A68, e também na deposição real de material nas partes mais profundas do oceano. O sensor de partículas no planador estava captando alguns sinais muito fortes de deposição vindo do iceberg", disse ele à BBC News.

Detalhes da mudança de forma e fluxos de água doce do A68 estão contidos em um artigo publicado na revista Remote Sensing of Environment.

  • Jonathan Amos
  • Repórter de Ciência da BBC News

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sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

5 dados que mostram como brasileiros ricos passam bem pela pandemia


Casal brindando com champanhe em avião particular

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Recorde nas vendas da Porsche, fila para compra de helicópteros. Com viagens internacionais restritas, o andar de cima faz 'poupança forçada' e gasta em luxos no mercado nacional

Eles representam cerca de 2% da população brasileira, mas seus gastos são equivalentes a quase 20% do consumo nacional.

Em meio à pandemia, enquanto a maior parte do país sofria com perda de renda, em meio ao avanço do desemprego e da inflação, os brasileiros mais ricos se viram impedidos de gastar em viagens internacionais e em compras nas principais capitais do consumo do mundo.

Com uma "poupança forçada" pela mudança de hábitos, eles gastaram em luxos no mercado nacional e investiram volume recorde de dinheiro no exterior.

Assim, enquanto parte da população fazia fila para receber ossos no açougue, em meio aos preços recordes da carne e ao avanço da fome, outra parcela — bem menor — aguardava na fila para comprar um helicóptero.

Segundo um fabricante ouvido pela BBC News Brasil, a espera por uma aeronave nova chegou a 20 meses, dependendo do modelo, em meio a um salto de demanda.


A fabricante de carros de luxo Porsche bateu recordes de vendas no país em 2020 e 2021, enquanto o setor imobiliário de luxo e super luxo — de apartamentos acima de R$ 1 milhão e R$ 2 milhões, respectivamente — registrou um crescimento de mais de 80% nos lançamentos e de 47% nas vendas.

Confira esses e outros dados que mostram como o "andar de cima" está passando muito bem pela pandemia.

2% da população, 20% do consumo

Segundo a empresa de pesquisa de mercado Euromonitor, a chamada "classe A" brasileira representava 2% da população em 2021.

São pessoas com renda familiar anual acima de US$ 45 mil (R$ 248 mil ao ano ou cerca de R$ 21 mil por mês, ao câmbio atual), cujos gastos equivaleram no ano passado a 19,4% do consumo nacional.

Mulher glamorosa bebendo champanhe ao lado de veículos

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Classe A representava 2% da população brasileira em 2021. São pessoas com renda familiar anual acima de US$ 45 mil, pelo critério da Euromonitor

Embora a classe A tenha diminuído após dois anos de pandemia (ela representava 2,7% da população em 2019, segundo a Euromonitor), o consumo dessa parcela de maior renda foi bem menos afetado pela crise sanitária do que o restante da população.

"Os consumidores ricos acumularam reservas involuntárias importantes por conta das opções de lazer reduzidas e das limitações sociais impostas pela pandemia", observa Guilherme Machado, gerente de pesquisa da Euromonitor International.

"A maioria dos brasileiros desses grupos de maior renda está acostumada a viajar para o exterior e comprar itens de luxo nos principais centros globais de consumo, como Nova York, Paris e Londres. Mas, com o fechamento de fronteiras, esses consumidores têm buscado o prazer no mercado de luxo local, resultando em níveis de faturamento sem precedentes para algumas marcas de luxo", destaca o pesquisador.

Porsche bate recorde de vendas no Brasil em 2020 e 2021

Uma dessas marcas foi a Porsche. Enquanto a venda de automóveis de passageiros em geral no Brasil despencou 28% em 2020 e caiu mais 3,6% em 2021, em meio a paradas de produção provocadas por uma escassez global de semicondutores, a marca de luxo bateu recordes de vendas no país nos dois anos da pandemia.

Porsche 911 Carrera S (2018)

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Porsche vendeu 3.079 veículos no Brasil em 2021, alta de 24% em relação a 2020 e recorde para a marca


Os compradores têm enfrentado filas de espera superiores aos 3 a 6 meses normalmente necessários para a customização dos carros que são sinônimo de ostentação.

"Em 2021, nós vendemos 3.079 veículos aqui no Brasil, um crescimento de 24% em relação a 2020, quando havíamos vendido 2.487 unidades", conta Leandro Rodrigues, gerente comunicação e relações públicas da Porsche no Brasil.

"2020 era o nosso recorde anterior, batemos recordes em 2020 e 2021", destaca, lembrando que a empresa passou a operar diretamente no Brasil em 2015 e tem crescido a uma média de 27% ao ano desde então. A trajetória de alta não foi abalada pela pandemia.

"Quando você tem clientes que tinham uma parcela grande de consumo no exterior e de repente esse consumo não acontece, naturalmente eles têm recursos disponíveis para a compra de produtos aqui no Brasil", avalia Rodrigues.

O executivo destaca ainda as restrições de opções de lazer mesmo dentro do país como outro fator que explica o impulso nas vendas.

"Naturalmente, alguns clientes buscaram outras maneiras de se manterem entretidos e realizarem seus sonhos e suas vontades. Isso são fatores que ajudam a explicar essa demanda", conclui o executivo.

Os consumidores não se abalaram nem com o efeito do câmbio sobre o preço dos carros. Com fábrica na Alemanha, a operação da Porsche no Brasil foi impactada pela valorização de 40% do euro em relação ao real desde o período anterior à pandemia.

"Parte dessa alta precisou ser repassada aos preços", diz o porta-voz. O Porsche 911, modelo mais vendido pela montadora, tem valores que variam de R$ 800 mil a mais de R$ 1 milhão.

Espera para compra de helicópteros chega a 20 meses

Em meio a um salto de demanda, o mercado brasileiro de helicópteros e jatos executivos viu a fila de espera pelos produtos chegar a até 20 meses durante a pandemia.

"O mercado vinha represado há um tempo devido aos problemas econômicos brasileiros. Com o advento da covid e do lockdown, houve uma demanda maior, principalmente em helicópteros na área VIP e o que chamamos de 'para público', como polícia e bombeiros", diz Rubens Cortellazzo, gerente de vendas da fabricante italiana Leonardo Helicópteros.

Casal e piloto em frente a um helicóptero

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'Com o advento da covid e do lockdown, houve uma demanda maior, principalmente em helicópteros na área VIP', diz executivo da fabricante italiana Leonardo Helicópteros

"Área VIP são operadores civis, como empresas de grande porte, empresários e táxi aéreo", explica o executivo, sobre o sentido no mercado de helicópteros da sigla que em inglês quer dizer "very important person" (pessoa muito importante, em português).

Segundo Cortellazzo, as vendas para o segmento privado foram impulsionadas pelo medo de contágio e pela redução na oferta de voos comerciais durante a pandemia.

Conforme o executivo, o mercado brasileiro civil de helicópteros monoturbina e biturbina de médio porte cresceu 26% em número de entregas em 2021, em relação a 2020.

"Muitos clientes ficaram com recursos represados. Com a restrição de viagens internacionais e o medo da pandemia, houve mais apetite para investir em equipamentos para utilizar no mercado local", conta o gerente.

"A espera para compra, que antes era de 12 meses, chegou a 15 ou 16 meses, dependendo do modelo. Tem modelo em que estamos falando já em 20 meses de espera."

Cortellazzo diz que os compradores usam os helicópteros principalmente para trabalho.

"A gente brinca que o helicóptero é uma 'máquina do tempo'. Você economiza muito tempo no deslocamento de uma reunião para outra, de São Paulo para o interior, de uma capital a outra. Então o helicóptero é uma ferramenta muito interessante para esses empresários."

A aeronave de entrada da Leonardo (isto é, seu modelo mais básico), chamada AW119 Koala, tem preço médio de 4,3 milhões euros (cerca de R$ 27 milhões).

Para o mercado VIP, que vai até aeronaves de médio porte, o valor pode chegar a 15 milhões de euros (cerca de R$ 94 milhões).

Mercado imobiliário de luxo cresce 81% em lançamentos

As vendas de apartamentos de luxo e super luxo bateram recorde nos primeiros nove meses de 2021.

São empreendimentos com três ou quatro suítes, metragens amplas acima dos 100 m², janelas e pés direitos generosos e grande número de vagas na garagem.

Sala ampla de um imóvel de alto padrão com grandes janelas

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Vendas de apartamentos de luxo e super luxo bateram recorde nos primeiros nove meses de 2021

Em janeiro e setembro do ano passado, os lançamentos neste mercado chegaram a 7,6 mil unidades, alta de 81% em relação a igual período de 2020. No mercado imobiliário brasileiro em geral, os lançamentos cresceram 30% na mesma base de comparação.

Em vendas, o avanço do mercado de luxo e super luxo foi de 47% nos nove primeiros meses de 2021, com mais de 10 mil unidades comercializadas, superando R$ 15,4 bilhões em valor geral de vendas, segundo dados da Brain Inteligência Estratégica, consultoria especializada no mercado imobiliário.

Para Marcos Kahtalian, sócio fundador da Brain, um dos fatores que impulsionou as vendas no mercado imobiliário de alto padrão no período recente foi a taxa de juros em nível baixo — a Selic (a taxa básica, determinada pelo Banco Central) começou 2021 em 2%, menor percentual da história.

"Isso injetou uma grande liquidez no mercado e atraiu recursos ao setor imobiliário, já que outros investimentos estavam com retornos muito baixos", diz Kahtalian.

"Outro fator, foi comportamental: em função da pandemia, houve uma busca intensa — para aquelas pessoas que tinham renda, evidentemente — por moradias maiores, mais amplas, mais confortáveis, tanto nas capitais, quanto fora delas. Houve um movimento em busca de espaço e qualidade", observa o consultor.

São Paulo e Rio de Janeiro são os dois principais mercados para os empreendimentos de luxo, com destaque para bairros como Jardins, Vila Nova Conceição e Moema na capital paulista e Zona Sul e Barra da Tijuca na metrópole fluminense.

Nas cidades do interior, se destaca a busca por empreendimentos horizontais, como condomínios de lotes ou condomínios fechados de casas de alto padrão.

Em 2022, a alta de juros pode desacelerar um pouco esse mercado, acredita Kahtalian.

"Para o mercado de luxo, a alta de juros faz menos diferença do que para a classe média, mas faz alguma diferença", diz o consultor.

"Faz menos diferença porque normalmente o comprador não financia o imóvel, ou financia pouco. Mas faz alguma diferença porque há uma atratividade para o capital ser investido de outra forma", afirma, citando como exemplo os investimentos de renda fixa, como títulos públicos, que têm baixo risco e se tornam mais interessantes com a Selic próxima dos 10%.

Também esse ano, devido à forte alta recente dos preços no mercado imobiliário, a definição de luxo e super luxo deve ser revista, subindo para empreendimentos a partir de R$ 1,5 milhão e R$ 3 milhões, respectivamente.

"O mercado de luxo e super luxo é pouco representativo em unidades — cerca de 7% do total nos últimos nove meses. Mas é mais ou menos 33% do valor lançado e 40% do valor total vendido. Ou seja, é um mercado de menos volume, mas de muito valor", diz o sócio da Brain.

Investimento financeiro brasileiro no exterior é recorde

Por fim, um último dado que mostra como o chamado andar de cima passou com tranquilidade pela pandemia vem do mercado financeiro.

Segundo dados do Banco Central, o investimento financeiro brasileiro no exterior superou os US$ 18 bilhões (R$ 100 bilhões) entre janeiro e novembro do ano passado, alta de 76% em relação a igual período de 2020 e recorde da série histórica iniciada em 1995.

Conforme Claudia Yoshinaga, coordenadora do Centro de Estudos em Finanças da FGV (Fundação Getulio Vargas), isso se deve à maior facilidade atual para investir em produtos internacionais e à forte alta recente do dólar em relação ao real, que leva investidores a buscarem a segurança de ter parte do seu dinheiro fora dos riscos da economia brasileira.

"Esse tipo de investimento se popularizou de alguma maneira, saiu daquele cliente 'private' com milhões de reais. Mas ainda não é um produto que qualquer brasileiro tem, estamos falando das camadas mais ricas, de um segmento de varejo de alta renda", diz a professora.

"É um público que tem o dólar como uma moeda importante no seu dia a dia, em viagens de férias ou hábitos de consumo atrelados ao dólar, como itens de luxo e vinhos. Então, para essas pessoas, ter uma parte do seu investimento em moeda forte ajuda, como uma forma de diversificar e de se proteger de altas de preços", observa a especialista em finanças.

"São pessoas que em sua maioria não perderam renda na pandemia e reduziram suas despesas, porque gastam muito com restaurantes, entretenimento e viagens de férias no exterior. Com o distanciamento, essas pessoas conseguiram guardar mais dinheiro."

Para Yoshinaga, apesar de a alta do dólar deixar os investimentos no exterior mais caros e a alta de juros no Brasil tornar os investimentos locais mais atrativos, a volatilidade do ano eleitoral deve continuar estimulando brasileiros a buscar investimentos no exterior, como uma forma de diminuir sua dependência do que acontece na economia nacional.

  • hais Carrança - @tcarran
  • Da BBC News Brasil em São Paulo

Professor Edgar Bom Jardim - PE