sábado, 4 de setembro de 2021

As táticas de maridos ricos para esconder suas fortunas no divórcio


Carros cobertos sendo levados para o aeroporto

CRÉDITO,AIRBRIDGECARGO

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Em muitos casos as mulheres ficam com carros e apartamentos, mas a maior parte da fortuna é ocultada

Atenção: Esta reportagem contém descrição de cenas de violência doméstica que podem ser perturbadoras.

Quando Joana*, se casou com o empresário Carlos*, no início dos anos 2000, ele era dono de um pequeno negócio. Os dois ficaram juntos por 18 anos e, ao longo desse tempo, a empresa cresceu vertiginosamente.

Pouco a pouco, o estilo de vida do casal — que já era de classe média alta — foi se tornando luxuoso. Mas Joana não tinha ideia do tamanho da fortuna do marido até eles se separarem — ou melhor, até ela perceber que foi enganada no processo de divórcio.

Joana, hoje com 50 anos, dedicou a vida toda à família e ao marido e não queria se separar. Ela fez diversas fertilizações para engravidar do filho do casal, hoje um adolescente.



Carlos pediu o divórcio pela primeira vez em 2017, mas como Joana não queria se separar, o casal acabou ficando junto por mais um ano. Em 2018, ele a convenceu que seria melhor fazer um acordo e eles se separaram em 2019.

"Ele disse que ela nunca ia sentir falta de nada, que ia deixar o filho do casal e ela em boa situação. Fez um acordo para ela ficar com um apartamento de R$ 5 milhões e R$ 30 milhões em aplicações", conta Anderson Albuquerque, advogado de Joana.

Sem saber exatamente qual era o real patrimônio do marido — e portanto do casal, já que eram casados com comunhão de bens — Joana aceitou o acordo.

Foi só quando viu duas aberturas de capital da empresa de Carlos e o nome dele na lista de bilionários do Brasil que ela percebeu que tinha sido enganada. Foi então que procurou Albuquerque e descobriu que o valor total do patrimônio na verdade estava na casa dos bilhões de reais.

"Em grande separações — com valores acima de R$ 10 milhões — os processos de divórcio deixam de ser direito de família e viram questão de fraude financeira e direito tributário", afirma Albuquerque, que se especializou em direito tributário e empresarial antes de começar a coordenar o departamento de direito de família de seu escritório.

No caso de Joana, Carlos simplesmente havia omitido o valor do patrimônio na época da separação. "Ele não apresentou sua participação societária em diversas empresas", diz Albuquerque.

No mês passado, Joana conseguiu uma decisão na Justiça que garantiu seu direito de ter acesso a todos os documentos contábeis da empresa nos últimos 18 anos.

Com o valor exato do patrimônio nas mãos de Joana, disse o juiz do caso, as duas partes podem tentar um acordo — se não, os documentos serão essenciais em um futuro processo sobre a partilha de bens.

"Como nesse caso, muitas vezes é um problema que vai além da família. A fraude do marido com a mulher pode gerar consequências para a empresa como um todo", diz Albuquerque.

A defesa de Carlos ainda não se manifestou sobre o caso.

Homem de terno lendo tablet em carro de luxo

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Muitos maridos omitem patrimônio em processos de divórcio

Escondendo o patrimônio

Diferente da grande maioria de escritórios de direito de família, Albuquerque só aceita casos de mulheres e filhas, nunca dos maridos.

"Nessa área a gente só advoga para mulher. Ajuda a manter a coerência, porque se você sustenta algo para um lado (da esposa) em um caso e depois argumenta o oposto atendendo outro caso (do marido), você descaracteriza sua própria argumentação", explica o advogado.

Segundo Albuquerque, na maioria dos grandes casos de divórcio que ele atende, a principal estratégia dos maridos para ocultar patrimônio é simplesmente não apresentar os documentos para as mulheres e seus advogados.

"Muitas mulheres, mesmo tendo uma vida de luxo, não sabem detalhes sobre a vida financeira da família, não sabem ou não conseguem provar os seus custos de vida e não conhecem os seus direitos", diz ele, acrescentando que muitas fraudes passam batido por advogados de direito de família que não entendem tão bem da parte financeira.

Além disso, afirma, muitos maridos mantêm controle das esposa em relacionamentos abusivos e elas têm medo até de procurar um advogado para entender quais são seus direitos.

"Só de ela seguir um advogado de direito de família nas redes sociais já é motivo para discórdia. O marido diz que ela não confia, pergunta se quer se separar. Eu recebo centenas de mensagens por dia de mulheres dizendo que não podem me seguir porque se o marido descobre, vai dar problema", afirma Albuquerque.

O advogado Anderson Albuquerque em São Paulo

CRÉDITO,ARQUIVO PESSOAL

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Anderson Albuquerque se especializou em fraudes financeiras antes de atuar em direito de família

Alterações contratuais e violência física

O advogado explica que, embora omitir dados seja a principal estratégia, não é a única. Há casos em que há inclusive o uso de documentos forjados e até violência física envolvidos.

Foi o que aconteceu no divórcio de Lígia* e João*, empresários da região sul do Brasil que se separaram neste ano.

Os dois se conheceram em 2009. Os dois começaram juntos um negócio que ao longo dos anos foi crescendo e se tornou um grande grupo empresarial.

Os dois foram casados por 12 anos e tiveram uma filha. Quando João quis se separar, o patrimônio do casal valia cerca de R$ 500 milhões, afirma Albuquerque.

Nesse caso, Lígia sabia de seus direitos, mas foi pega de surpresa por uma tentativa de golpe do marido.

Em dezembro de 2020, João fez uma alteração contratual fazendo uma mudança societária através de um certificado digital — ele passou as empresas para o nome da mãe dele, sem avisar a esposa. Mas faltava a assinatura física dela para a mudança se concretizasse.

Em abril deste ano, quando o casal já não morava junto, após um evento de confraternização na sede das empresas, ele a obrigou a assinar diversos documentos, incluindo o contrato com alteração societária, com uso de violência.

João estava acompanhando Lígia e a filha do casal até o carro quando começou a violência. "Ele agarrou meu pescoço e me deixou sem voz, impedindo que eu pedisse socorro. Em seguida me arremessou sobre o veículo", conta ela.

Lígia conseguiu entrar no caso para tentar se proteger, mas João abriu a porta, a retirou do carro e a arremessou contra a parede. Diversas pessoas viram a cena — incluindo a filha pequena do casal.

No mesmo dia, Lígia foi à delegacia fazer um boletim de ocorrência. Por causa da violência, o caso chegou ao Ministério Público e João enfrenta um processo criminal.

Além disso, Lígia entrou na Justiça pedindo o reconhecimento da nulidade da alteração contratual, indenização por danos morais e outras demandas para proteger seu patrimônio.

"A fraude ficou bem clara porque ele cometeu um erro. A alteração contratual tinha sido feita em 2020, mas quando ele a obrigou a assinar, o contrato tinha a data deste ano", afirma Albuquerque, que advoga para Lígia no processo.

Na ação, João nega qualquer agressão e afirma que a ex-esposa assinou o contrato por vontade própria.

Homem observa seu tablet dentro de um helicóptero

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Se houve fraude no divórcio, é possível entrar com uma ação mesmo após a separação

Esvaziamento de patrimônio

Há casos em que maridos esvaziam seu patrimônio para que as esposas não tenham acesso aos valores que têm direito.

Hoje com 50 anos, Clara* tenta obter há 12 anos o valor que foi acordado com o ex-marido Rodrigo* quando se separaram. Os dois se conheceram em 1995 e ficaram juntos por quase 15 anos.

Quando se divorciaram, os dois fizeram um acordo de partilha de bens em que ela ficaria com o valor de R$ 1 milhão, mas Rodrigo nunca transferiu o valor para a ex-mulher.

Clara ficou anos tentando obter o pagamento, mas teve dificuldade porque Rodrigo havia esvaziado completamente seu patrimônio, evitando que a Justiça fizesse a expropriação de seus bens.

Antes mesmo de se separarem, em 2007, ele vendeu sua participação societária em grandes empresas de câmbio para um banco. O valor da negociação divulgado foi de cerca U$ 40 milhões (R$ 81,5 milhões de reais, com câmbio de agosto de 2007)

Segundo a Justiça, o valor devido por ele à Clara hoje é de R$ 30 milhões — considerando o montante do acordo que não foi pago com juros e correção monetária mais a pensão alimentícia que ele deve às filhas do casal.

Rodrigo nega irregularidades, mas não tem mais direito a recurso na Justiça — já passaram os prazos para contestar as ações de alimentos e não há possibilidade de recurso sobre o valor do acordo feito legalmente pelo casal.

Hoje cliente de Albuquerque, Clara entrou com um pedido para que a dívida do ex-marido seja redirecionada para o banco que absorveu suas quotas societárias nas empresas de câmbio.

"É mais um exemplo de como uma questão conjugal pode ter efeitos para além da família", diz Albuquerque. "Hoje eu tenho até investidores que procuram consultoria para avaliar regime de comunhão de bens de sócios para entender melhor os riscos de investir em certas empresas."

*O nome das pessoas citadas foram alterados para proteger suas identidades

  • Letícia Mori
  • Da BBC News Brasil em São Paulo
Professor Edgar Bom Jardim - PE

sexta-feira, 3 de setembro de 2021

Biden ordena a abertura de documentos secretos da investigação do 11 de setembro

 HISTÓRIA DA ATUALIDADE

Presidente Joe Biden, nesta sexta-feira durante uma visita a LaPlace (Louisiana) para averiguar os danos do Furacão Ida.
Presidente Joe Biden, nesta sexta-feira durante uma visita a LaPlace (Louisiana) para averiguar os danos do Furacão Ida.EVAN VUCCI / AP

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A coincidência no tempo transformou a retirada dos EUA do Afeganistão e a comemoração do vigésimo aniversário do 11 de setembro em episódios quase gêmeos. Fustigado pelas críticas ao caos em torno da retirada, o presidente Joe Biden tenta ganhar a simpatia dos familiares das vítimas dos ataques da Al Qaeda ao assinar, nesta sexta-feira, um decreto que ordena a revisão de documentos ainda secretos da investigação governamental sobre os ataques às Torres Gêmeas e ao Pentágono, com a intenção de desclassificá-los.

O movimento acontece na véspera da comemoração, no sábado da próxima semana, do aniversário, mas o gesto também insinua a intenção de encerrar o capítulo afegão. A ligação entre os dois eventos é indissociável —os EUA intervieram no Afeganistão em 2001 em busca de terroristas da Al Qaeda— embora o decreto assinado nesta sexta responda especificamente ao pedido de mais de 1.600 parentes dos quase 3.000 mortos nos ataques para que se desclassificasse a informação confidencial. De acordo com um comunicado divulgado pela Casa Branca, Biden abordou o procurador-geral Merrick Garland e outras agências envolvidas para prosseguir com a desclassificação “dentro de seis meses”.

“Nunca devemos esquecer a dor permanente das famílias e entes queridos dos 2.977 inocentes que morreram no pior ataque terrorista de nossa história. Para eles, não foi apenas uma tragédia nacional e internacional. Foi um drama pessoal“, lembrou Biden.

Parentes e amigos de centenas de vítimas alertaram o presidente de que ele não seria bem recebido em Nova York, durante os eventos comemorativos, se não o fizesse. A assinatura do decreto também obedece, segundo o comunicado, a uma de suas promessas de campanha. Mas a verdade é que a ofensiva judicial lançada por parentes de algumas vítimas contra a Arábia Saudita e outros países por suposta cumplicidade com a Al Qaeda colocou o Governo Biden nas cordas. Sucessivos governos dos EUA mantiveram segredos de estado para evitar a publicação de informações confidenciais.

O democrata, que esta semana acrescentou contratempos —como o suposto dano colateral da retirada do Afeganistão, que se soma às críticas dos republicanos por sua gestão; ou a polêmica lei de aborto do Texas— enfatizou que seu “coração permanece com as famílias do 11 de setembro que continuam a sofrer”. O Governo que ele preside “continuará a ter um compromisso respeitoso com os membros desta comunidade, aos quais agradeço por suas opiniões e visão enquanto traçamos o caminho a seguir”, destaca a declaração da Casa Branca.

Há exatamente um mês, o Departamento de Justiça anunciou que o FBI decidiu revisar os documentos de 11 de setembro para “encontrar informações adicionais que possam ser divulgadas o mais rápido possível”. Os familiares das vítimas exigiram recentemente a publicação de todos os documentos que demonstram o envolvimento da Arábia Saudita nos ataques. À frente está a tradicional aliança, não sem tensão, entre os dois países, na qual o Governo Biden parece ter dado uma guinada.

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El País 03/09/21
Professor Edgar Bom Jardim - PE

quinta-feira, 2 de setembro de 2021

Museu de Bom Jardim: Convite para 2ª Reunião para homologação da Diretoria e Conselho Popular de Cultura

               

       

 CONVITE: 

O Museu de Bom Jardim, com sede na Rua Manoel Augusto, 90, 1º Andar, Centro de Bom Jardim, estado de Pernambuco, convida artistas, produtores, representantes de grupos de diversos campos e linguagens culturais para em Assembleia definir  os membros do Conselho Popular de Cultura e composição da Direção do Museu de Bom Jardim, conforme normas estatutárias.

Local: Museu de Bom Jardim - Rua Manoel Augusto, 90, 1º Andar, Centro de Bom Jardim-PE
Data: 7 de Setembro
Horário: 14:00h

Por favor, levar máscara de proteção sanitária
Professor Edgar Bom Jardim - PE

quarta-feira, 1 de setembro de 2021

A decisão sobre quilombolas de 2018 que pode definir futuro de indígenas



Indígenas protestam e são observados por policiais

CRÉDITO,REUTERS

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Indígenas protestam em Brasília contra o governo Jair Bolsonaro e propostas legislativas que consideram nocivas, como o PL 490

O Supremo Tribunal Federal (STF) retoma nesta quarta-feira (1/8) um julgamento que influenciará o futuro das demarcações de terras indígenas no Brasil.

Ao analisar uma demanda do povo indígena xokleng, de Santa Catarina, a corte avaliará a validade do conceito do chamado "marco temporal".

A decisão terá repercussões para vários outros povos que pleiteiam a demarcação de territórios.

Em 2018, ao analisar o processo de criação de territórios quilombolas, o STF rejeitou a aplicação dessa tese, decisão que pode influenciar o julgamento atual (leia mais abaixo).

O governo Jair Bolsonaro e seus aliados ruralistas defendem que o conceito do marco temporal seja validado pela corte, medida que dificultaria novas demarcações.


Segundo defensores dessa posição, só podem reivindicar a demarcação de terras indígenas as comunidades que as ocupavam na data da promulgação da Constituição: 5 de outubro de 1988.

A tese vem sendo adotada formalmente pelo governo federal desde a gestão Michel Temer.

Na prática, a postura paralisou novas demarcações, já que grande parte dos processos pendentes trata de casos em que as comunidades dizem ter sido expulsas dos territórios antes de 1988.

Criança xokleng em acampamento na floresta, em 1963

CRÉDITO,ACERVO SCS

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Criança xokleng em acampamento na floresta, em 1963

Cerca de 6 mil indígenas estão acampados em Brasília há semanas em protesto para que o Supremo rejeite a tese.

A validade do conceito será abordada em um julgamento sobre uma reivindicação territorial do povo indígena xokleng, de Santa Catarina.

A corte vai avaliar se a Terra Indígena Ibirama La-Klãnõ — habitada pelos xokleng e por outros dois povos, os kaingang e os guarani — deve incorporar ou não áreas pleiteadas pelo governo de Santa Catarina e pelos ocupantes de propriedades rurais.

A área em disputa se tornou formalmente parte da terra indígena em 2003, mas está parcialmente ocupada por plantações de fumo.

O governo de Santa Catarina diz que essa terra era pública e foi vendida a proprietários rurais no fim do século 19 — a área não estava, portanto, ocupada por indígenas em 1988.

Já indígenas afirmam que aquele território era usado pela comunidade para a caça, pesca e coleta de frutos, mas que décadas de perseguições e matanças forçaram o grupo a deixar a área.

Os xokleng foram um dos povos mais impactados pela ação de bugreiros — milícias contratadas até a década de 1930 para expulsar indígenas de territórios entregues a imigrantes europeus na região Sul.

Jovens xokleng durante apresentação sobre o primeiro contato entre indígenas e brancos.

CRÉDITO,PREFEITURA DE IBIRAMA

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Jovens xokleng durante apresentação na Terra Indígena Ibirama La-Klãnõ

O caso ganhou importância porque o STF determinou que a decisão sobre os xokleng terá repercussão geral.

Ou seja, se reconhecer que a demanda do grupo é legítima, haverá margem para que outras comunidades reivindiquem territórios dos quais dizem ter sido expulsas antes de 1988.

O julgamento já foi adiado e interrompido repetidas vezes — e é possível que volte a ser postergado mais uma vez.

Isso acontecerá se algum ministro pedir vista do processo, solicitando mais tempo para analisar o tema. Nesse caso, não haveria prazo para a retomada do julgamento.

Indígenas acampados em Brasília pressionam para que o caso seja julgado antes que a Câmara dos Deputados vote o Projeto de Lei 490, que está em fase final de tramitação.

Entre outros pontos, o projeto estabelece 1988 como marco temporal para a demarcação de terras indígenas.

Se o STF invalidar a tese do marco temporal no julgamento, porém, é provável que a Câmara tenha de alterar ou descartar o projeto.

Mapa da Terra Indígena Ibirama La-Klãnõ após a ampliação de 2003

CRÉDITO,ISA

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Mapa da Terra Indígena Ibirama La-Klãnõ após a ampliação de 2003

Afinal, as decisões da corte se dão no nível da Constituição, que está acima de qualquer projeto de lei.

Já ruralistas pressionam para que o STF postergue o julgamento para depois da decisão da Câmara sobre o PL 490.

Eles esperam que, assim, o projeto seja aprovado na Câmara e que a decisão dos deputados estimule a corte a validar o marco temporal.

Outra possibilidade, caso o STF rejeite o princípio do marco temporal, seria enviar ao Congresso uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) — mas a aprovação dessa medida seria mais difícil, por exigir mais votos do que um Projeto de Lei.

Em 11 de junho, o relator do processo sobre os xokleng no STF, ministro Edson Fachin, votou contra a tese do "marco temporal", mas o julgamento foi suspenso por um pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes.

Desde então, o julgamento foi remarcado outras duas vezes, mas jamais concluído.

Como surgiu o conceito de 'marco temporal'?

O conceito de "marco temporal" entrou no vocabulário ruralista em 2009. Na época, o então ministro do STF Ayres Britto propôs a adoção da tese ao julgar um caso sobre a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima.

A proposta de Ayres Britto buscava traçar uma linha temporal que restringisse as possibilidades de demarcações.

Um conceito semelhante, porém, já vigorava no decreto presidencial 3.912, de 2001, que regulamentava a criação de territórios quilombolas.

Segundo o decreto, só poderiam ser reconhecidas como quilombos as terras ocupadas pelas comunidades em 5 de outubro de 1988 — data de promulgação da Constituição.

Indígenas em carro à frente de posto do SPI

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Posto do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) dedicado aos Xokleng no fim dos anos 1920

O decreto, porém, foi revogado por outro decreto presidencial (na gestão do presidente Lula) publicado dois anos depois, de número 4.887.

O novo documento extinguiu a exigência de que as comunidades estivessem no local reivindicado em 1988.

Em 2018, o STF foi chamado a decidir se esse novo decreto cumpria as exigências constitucionais, provocado por uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) movida pelo então PFL, atual DEM.

O caso teve como relator o então ministro aposentado Cezar Peluzo, que votou pela inconstitucionalidade do decreto.

Durante o julgamento, o ministro Dias Toffoli adotou uma posição intermediária: ele votou pela constitucionalidade do decreto, mas propôs a adoção de um marco temporal para o reconhecimento de quilombos.

Segundo Toffoli, a falta de um marco temporal dificultava a demarcação dos territórios e provocava insegurança jurídica.

"Não é ampliando, numa interpretação extensiva, sem limite temporal futuro, que se vai efetivar esse relevante direito (das comunidades quilombolas ao território)", disse Toffoli.

"Pelo contrário, talvez tenha sido exatamente essa tentativa de se ampliar em demasia seu alcance que tenha retardado e tornado mais complexa a demarcação e a titulação definitiva dessas terras", prosseguiu.

O ministro Gilmar Mendes concordou com Toffoli e também defendeu a adoção de um marco temporal.

Mas a posição dos dois em prol do marco temporal foi rejeitada pelos oito ministros restantes, que também decidiram pela validade do decreto presidencial que regulamentava as demarcações.

Em 2020, a ministra Rosa Weber julgou embargos de declaração (pedidos de esclarecimento) sobre o julgamento feitos por ONGs aliadas dos quilombolas.

Weber ficou encarregada da análise por ter sido a primeira ministra a divergir do voto do relator, inaugurando a posição que acabou vencedora no julgamento.

Com os embargos, as organizações pediam que o STF rejeitasse explicitamente a validade da tese do marco temporal.

Elas argumentavam que, embora a tese tivesse sido derrotada no julgamento, o ponto acabou excluído da ementa, a síntese da decisão.

O objetivo das organizações era fazer com que a corte rejeitasse formalmente a tese do marco temporal — o que poderia consolidar um entendimento para julgamentos futuros ("criar jurisprudência", no linguajar jurídico).

Mas Rosa Weber avaliou que as organizações não poderiam ter feito os embargos de declaração, porque esse tipo de recurso não se aplica a Ações Diretas de Inconstitucionalidade — caso do julgamento sobre os quilombos

Mulheres e crianças xokleng

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Mulheres e crianças xokleng capturadas por bugreiros e entregues a freiras em Blumenau; duas mulheres e duas crianças conseguiram fugir, voltando à floresta.

Ainda assim, Weber afirmou que no julgamento a corte "rejeitou a incidência da tese do marco temporal à possibilidade de reconhecimento da tradicionalidade das terras, aptas a configurar a propriedade coletiva das áreas pelos remanescentes de comunidades quilombolas".

A decisão da corte no julgamento sobre os quilombolas sinaliza uma mudança da postura do STF em relação ao tema.

Em 2014, a Segunda Turma da corte rejeitou três demandas territoriais indígenas com base no marco temporal.

Quatro anos depois, porém, a tese foi derrotada no julgamento sobre os quilombolas.

E, em abril deste ano, a corte acolheu uma ação rescisória sobre um dos casos de 2014, abrindo o caminho para a anulação da decisão.

A mudança ocorre em um momento em que a questão indígena figura como um dos principais pontos de atrito entre o STF e o governo Jair Bolsonaro.

Em decisões recentes, a corte determinou que o governo elaborasse planos para combater a covid-19 entre as comunidades e expulsar invasores dos territórios.

Na semana passada, Bolsonaro indicou que poderá não respeitar uma decisão do STF contra o marco temporal.

"Se aprovado (o cancelamento do marco temporal), tenho duas opções, não vou dizer agora, mas já está decidida qual é essa opção, é aquela que interessa ao povo brasileiro, aquela que estará ao lado da nossa Constituição", afirmou.

  • João Fellet - @joaofellet
  • Da BBC News Brasil em São Paulo

Professor Edgar Bom Jardim - PE