sábado, 19 de junho de 2021

500 mil mortos por covid: 4 gráficos para comparar a tragédia do Brasil com a de outros países

Imagem aérea do cemitério de Vila Formosa (SP), com valas abertas à esquerda e valas preenchidas à direita

CRÉDITO,MARIO TAMA/GETTY IMAGES

500 mil mortes por covid-19 no Brasil em 15 meses de pandemia.

O número por si só já diz muito. E desde o começo da pandemia temos comparado a situação do Brasil com outros lugares do mundo para tentar dimensionar a tragédia.

Cada tipo de cálculo tem suas limitações, mas em todos eles o Brasil aparece entre os 10 países onde mais morreu gente por covid.

Só para ter uma ideia, o Brasil tem 2,7% da população do planeta e atualmente concentra 30% das mortes pela doença no mundo inteiro.

O número de 500 mil mortes esconde um monte de diferença em relação a outros países, como o tamanho da população e a quantidade de idosos em relação à população total.




Ou seja, país com 200 milhões de habitantes tende a ter mais mortes por covid do que uma nação com uma população de 2 milhões.

Além disso, a covid-19 mata mais idosos em qualquer lugar do mundo. Então, ao compararmos o impacto da doença em dois países com a mesma população, aquele que tiver mais idosos tenderá a ter mais mortes. Mas há um monte de outros fatores que influenciam essas comparações.

Por outro lado, a comparação de mortes por 100 mil habitantes, que costuma ser usada por quem minimiza a tragédia no Brasil ou a relativiza ante um suposto impacto da maior da doença em países europeus, também ignora que as nações têm diferentes proporções de idosos.

Veja abaixo quatro maneiras de comparar o impacto da pandemia no Brasil e em outros países.

Mortes em excesso, acima da média histórica? Brasil entre os 10 primeiros

As chamadas "mortes em excesso" são a soma do número de mortes por todas as causas que supera a média histórica em um determinado período. Esse indicador não costuma sofrer variações grandes de um ano para o outro — apesar de haver grandes variações sazonais (julho costuma ser o mês com o maior número de mortes no Brasil). Em caso de grande variação, não há outra explicação para a diferença que não seja o coronavírus.

Mas há limitações em torno dessas análises. Muitos países não têm esse dados históricos, e parte daqueles que têm não disponibilizam dados tão detalhados, atualizados ou confiáveis. Além disso, não há uma grande instituição, como a Universidade de Oxford ou a Organização Mundial da Saúde (OMS), compilando esses dados.

De todo modo, há diversas iniciativas que buscam contornar esses obstáculos para possibilitar comparações entre países e de um próprio país com sua série histórica. Em geral, esses levantamentos apontam dados mais ou menos parecidos entre si.

Mortes em excesso: quantidade de pessoas que morreram acima da média histórica de cada país. Porcentagem mostra impacto da pandemia em relação ao que se esperava .  .

O jornal britânico Financial Times, por exemplo, reuniu os dados mais recentes de 60 países, incluindo os registros de cartórios brasileiros. O líder é o Peru, com 122% de excesso de mortes. Ou seja, o número de mortes é o dobro do que se esperaria sem uma pandemia. O Brasil aparece em 9º lugar, com 34% mais mortes do que se esperava.

O estatístico Ariel Karlinksy, da Universidade Hebraica (Israel), e o especialista em aprendizado de máquina Dmitry Kobak, da Universidade de Tubinga (Alemanha), fizeram um levantamento envolvendo 95 países. O líder continua sendo o Peru, com 148% de mortes em excesso.

O Brasil surge em 7º, com 36%. Eles calculam que até 31 de maio de 2021 o país teve 499 mil mortes a mais do que se esperava, segundo a média histórica nacional. O número é equivalente ao total de mortes por covid até meados de junho, segundo o Ministério da Saúde: 488 mil.

Mas tudo isso é covid? Quase. Um estudo de pesquisadores brasileiros publicado em junho deste ano apontou que 95% das mortes em excesso em São Paulo no primeiro semestre de 2020 foram por coronavírus.

Mortes considerando faixa etária e gênero da população? Brasil em 10º lugar

Como explicado acima, a covid atinge faixas etárias e gêneros de forma distinta.

Um trabalho ainda em andamento do economista Marcos Hecksher, pesquisador do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) afirma que a taxa de mortes de idosos no Brasil em 2020 foi mais de 20 vezes maior do que entre pessoas com até 59 anos.

Gráfico das mortes
Legenda da foto,

Gráfico usa o Brasil como referência, por isso o país é representado pelo número 1. A cada morte por covid-19 no Brasil em 2020, levando-se em conta sexo e faixa etária, ocorreu 1,42 morte no Peru e 0,0005 no Vietnã

Segundo seus cálculos, 169 países de um total de 178 (ou seja, 95%) tiveram uma taxa menor do que a do Brasil em mortes por covid-19, quando se comparam não só os números absolutos, mas o tamanho da população e os óbitos em cada faixa etária.

Isso quer dizer que, caso em todos esses países os cidadãos tivessem morrido na mesma proporção, por sexo e por idade, em que morreram no Brasil, só nove deles estariam em uma situação pior do que a brasileira — ou seja, nessa comparação, registraram mais mortes do que teriam tido. Sete deles são latino-americanos.

São eles: Peru, México, Belize, Bolívia, Equador, Panamá, Macedônia do Norte, Colômbia e Irã.

Hecksher ressalta que "comparações internacionais são quase sempre sujeitas a diferenças entre os métodos de apuração dos indicadores de cada país e os padrões de erro cometidos", mas "é necessário lidar com os dados disponíveis e buscar a melhor forma de compreender o que eles informam dadas as limitações de cada tipo de comparação".

Quantas mortes em números absolutos? Brasil em 2º lugar

O marco de 500 mil mortes por covid, atingido agora pelo Brasil, não leva em conta o tamanho da população ou a quantidade de idosos, como explicado acima, mas ele é bastante simbólico.

Atualmente, esse total de mortos é o segundo mais alto do mundo, se comparados os números absolutos oficiais. Fica atrás apenas dos EUA, que ultrapassaram em junho a marca de 600 mil mortes.

Mas a tendência é que o Brasil ultrapasse os EUA nos próximos meses porque o país norte-americano tem conseguido controlar o avanço da pandemia e ampliado a vacinação de sua população.

Mortes por covid na pandemia inteira em números absolutos. .  .

Especialistas brasileiros apontam, no entanto, que o Brasil está mais perto de se tornar líder no ranking mundial de mortes do que parece.

Análises apontam que em meados de junho o Brasil já pode ter ultrapassado a marca de 600 mil mortes por casos confirmados ou suspeitos de covid-19, 100 mil a mais que os dados do Ministério da Saúde. Essa diferença ocorre por causa da demora para inserir dados das mortes no sistema nacional. A correção desse atraso permite, portanto, "prever o agora" (nowcasting) e ter uma imagem menos distorcida da real situação atual do país.

Quantas pessoas morrem a cada 100 mil ou 1 milhão de habitantes? Brasil em 2º lugar

O segundo indicador que mais costuma ser usado para comparar a quantidade de mortes por covid do Brasil em relação a outros países é aquele que leva o tamanho da população sem ponderar quantidade de idosos, por exemplo.

Há levantamentos que apresentam o número de mortes a cada 100 mil habitantes ou a cada 1 milhão de habitantes.

A Universidade Johns Hopkins (EUA) afirma que o Brasil é o 2º com mais mortes por 100 mil habitantes entre os 20 mais afetados ao longo da pandemia inteira.

Mortes por covid a cada 100 mil habitantes. Ranking leva em conta os 20 países mais atingidos na pandemia inteira.  .

São eles: Peru, Brasil, Argentina, Colômbia, EUA, México, Romênia, Chile, Paraguai e Bolívia.

Por outro lado, a Universidade de Oxford (Reino Unido) apresenta uma comparação parecida, mas sobre dados mais atuais, e não relação à pandemia inteira. Nesse caso, o Brasil aparece com a 7ª pior média de mortes por 1 milhão de habitantes.

Dos 10 primeiros, 9 estão nas Américas.

São eles: Paraguai, Uruguai, Suriname, Argentina, Colômbia, Peru, Brasil, Trinidad e Tobago, Bahrein e Bolívia.

  • Matheus Magenta
  • Da BBC News Brasil em Londres
Professor Edgar Bom Jardim - PE

sexta-feira, 18 de junho de 2021

Festa Junina: a origem da celebração pagã que virou religiosa e 'caipira' no Brasil



Quadrilha em festa junina

CRÉDITO,LUCIANO FERREIRA / PCR

Legenda da foto,

Festas pagãs das antigas civilizações foram incorporadas pelo catolicismo e deram origem às festas juninas

Para um brasileiro, pode ser difícil entender como as estações do ano são capazes de influenciar o imaginário e a própria organização da sociedade.

Mas em países de clima temperado ou frio, onde primavera, verão, outono e inverno são mais demarcados, é contagiante a alegria com que o verão é celebrado, depois de meses de dias curtos, temperaturas frequentemente negativas e poucas possibilidades de interação social.

É por isso que desde os tempos mais antigos, as primeiras civilizações europeias já tinham festas específicas para celebrar tanto a chegada da primavera — a volta da vida desabrochando — quanto o solstício de verão — o ápice do sol, o dia mais longo do ano.

E, segundo pesquisadores, são esses dois tipos de celebração, depois abraçados pelo catolicismo, que explicam a origem das festas juninas, que no Brasil acabariam sendo reinventadas com um sotaque próprio.


"As origens são mesmo as antigas festas pagãs das antigas civilizações, ligadas aos ciclos da natureza, às estações do ano. Sociedades antigas realizavam grandes festividades, com durações longas, até de um mês, sobretudo nos períodos de plantio e de colheita", contextualiza o pesquisador de culturas populares Alberto Tsuyoshi Ikeda, professor da Universidade de São Paulo e consultor da cátedra Kaapora: da Diversidade Cultural e Étnica na Sociedade Brasileira, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

"A primavera era bastante comemorada, como o reingresso da vida mais dinâmica, o rebrotar da natureza e das atividades depois do período do inverno, sempre de muita dificuldade, luta pela sobrevivência e recolhimento", comenta ele.

Se nessa época do ano o que se via era a explosão da natureza, a vida social espelhava isso. "Os grupos humanos realizavam grandes festividades dedicadas à própria natureza, muitas vezes rendendo homenagens aos antigos deuses relacionados à natureza, à vida animal, à vida vegetal de um modo geral. Eram festas comunitárias com muita alegria, muita alimentação e reunião de pessoas em grande número: foi o que deu origem às festas juninas que a gente conhece no Brasil e em outras partes do mundo."

Autora do livro Festas Juninas: Origens, Tradições e História, a socióloga Lucia Helena Vitalli Rangel, professora na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), explica que a origem das festas juninas está nos "rituais de fertilidade agrícola" de diversos povos — da Europa, do Oriente Médio e do norte da África.

"Os [mitológicos] casais férteis Afrodite e Adonis, Tamuz e Izta, Isis e Osíris eram homenageados nesses rituais, pois representavam a reprodução humana, numa época de evocação da colheita", afirma.

"Eram rituais para que a colheita fosse farta e para abençoar o próximo período agrícola. Era período de congraçamento, de partilha e estabelecimento de alianças entre as comunidades. Eram rituais de fartura e abundância em todos os sentidos, no âmbito alimentar e na relação entre as famílias: casamentos, batizados e compadrio."

Balão e bandeirinhas

CRÉDITO,GETTY IMAGES

Legenda da foto,

Na festa junina contemporânea, estão presentes algumas das figuras mais populares do catolicismo

"No hemisfério norte o solstício de verão era o auge do período ritual e do trabalho agrícola coroado pela colheita", acrescenta a socióloga.

Vale ressaltar o óbvio, para que não fique um certo estranhamento ao leitor menos atento: no hemisfério norte, origem de tais celebrações, as estações do ano são invertidas em relação ao hemisfério sul, onde está o Brasil.

Apropriação cristã

Mas onde então entram os santos nessa história? Na festa junina contemporânea, estão presentes algumas das figuras mais populares do catolicismo — e isso acabou impregnado de tal forma na celebração que a religiosidade se misturou ao folclore e às tradições populares, transcendendo os ritos normatizados pela Igreja Católica.

O primeiro dos santos juninos é Antônio (? - 1231), frade franciscano de origem portuguesa que ficou conhecido pelo que fez na Itália no início do século 13. Com fama de milagreiro, foi canonizado pela Igreja onze meses depois de sua morte — trata-se de um recorde até hoje não superado na história do catolicismo.

No imaginário popular, Antônio se tornou o bonachão santo das coisas perdidas, sobretudo nos países europeus, e o casamenteiro, principalmente em Portugal e no Brasil. Simpatias, promessas e orações específicas marcam a devoção a ele. E sua presença nos festejos juninos geralmente está ligada a essas tradições — a Igreja fixou o 13 de junho, data da morte dele, como dia consagrado ao santo.

Em 24 de junho, o catolicismo celebra o nascimento de João Batista (2 a.C - 28 d.C.). É o santo máximo das comemorações juninas — há versões que apontam que originalmente eram "festas joaninas" e não festas juninas; e, sobretudo no nordeste brasileiro, a Festa de São João é um evento de dimensões impressionantes.

Bandeirinhas de São João

CRÉDITO,GETTY IMAGES

Legenda da foto,

Festas juninas acabariam sendo reinventadas no Brasil

Personagem de historicidade controversa, João Batista é apontado como primo de Jesus Cristo e aquele que o batizou.

Em seu livro 'O Ramo de Ouro', o antropólogo escocês James Frazer (1854-1941) diz que ocorreu um processo histórico "de acomodação", deslocando para a figura de São João Batista a comemoração do solstício de verão.

Por fim, o mês de junho ainda tem a data do martírio de São Pedro (? - 67 d.C) e São Paulo (5 d.C. - 67 d.C.), dois dos pioneiros do cristianismo. Pedro foi um dos 12 apóstolos de Jesus e acabou depois considerado o primeiro papa do catolicismo.

Paulo de Tarso, por sua vez, é reputado como um dos mais influentes teólogos da história. Parte significativa dos textos que compõem o Novo Testamento da Bíblia é atribuída à sua pena. É dele, portanto, a autoria de parcela considerável da ressignificação de Jesus Cristo após sua morte na cruz — em outras palavras, é possível dizer que Paulo é responsável pela transformação de Jesus em um mito.

Uma observação necessária: apesar de a Igreja celebrar em conjunto a memória do martírio de Pedro e de Paulo, por tradição este último nem sempre é associado aos festejos juninos.

À medida que o catolicismo foi se transformando em religião do status quo, sobretudo a partir da cristianização do Império Romano, no ano de 380 d.C., diversos rituais tratados como pagãos acabaram sendo abraçados e apropriados pela Igreja. "A Igreja Católica não pôde desmanchar essas práticas", reconhece Rangel.

Com os rituais de primavera e verão, não foi diferente. "Várias dessas festividades foram adaptadas", conclui Ikeda. "Aos poucos passaram a ser tratadas como festas em honra aos santos juninos."

"Mas é importante notar que mesmo dentro do ciclo cristão, esses santos estão ligados tematicamente com aquelas mesmas ideias, os mesmos princípios das festividades [dessa época do ano] das antigas civilizações", pontua o pesquisador.

Santo Antônio, por exemplo, é o casamenteiro — em uma leitura lato sensu, poderia ser encarado como o santo da família, da unidade familiar, da reprodução humana. "São João também está ligado, sobretudo nos interiores do Brasil, a essa questão dos relacionamentos afetivos. Tradicionalmente, faz-se muito casamento no Dia de São João", diz Ikeda.

"Ele também traz a característica da fartura [que remete aos períodos de plantio e de colheita, em oposição aos rigorosos invernos], dos alimentos, das bebidas, aquilo que chamamos na antropologia de repasto ritual ou repasto cerimonial", afirma o pesquisador.

De modo geral, na leitura proposta por ele, todos os santos juninos estão ligados aos ciclos da natureza — fogo, água, fertilidade, abundância. Está aí São Pedro e a ideia de que ele é quem controla o tempo. "Vejo uma relação entre eles e os antigos rituais, uma relação ainda presente. Embora a gente não perceba mais, eles têm essa ligação com os elementos fundamentais da existência humana", comenta.

Nas festas populares essas forças da natureza se fazem representadas, muito além da mesa farta. Os mastros juninos que são erguidos representam a potência dos troncos, das árvores que resistem ao inverno. A fogueira é a luz: ilumina, aquece, afugenta animais ferozes, assa os alimentos.

Na releitura contemporânea, portanto, as festas juninas "guardam as reminiscências das ancestrais aglomerações festivas", conforme frisa Ikeda.

Tradição brasileira

Quadrilha em festa junina

CRÉDITO,LUCIANO FERREIRA / PCR

Legenda da foto,

Tradições regionais guardam suas especificidades também nas festas juninas

Paçoca, pamonha, pipoca, bolo de fubá, canjica, curau, pé de moleque, maçã do amor. Vinho quente e quentão. Brincadeiras de pular fogueira e dançar a quadrilha. Chapéu de palha, camisa xadrez, calça com remendos. Bombinhas e rojões, fogos de artifício. Bandeirinhas coloridas penduradas em varais de barbante.

No Brasil, as festas juninas foram reinventadas e se tornaram uma exaltação das raízes caipiras. E muito além da religiosidade, tornou-se tradição, folclore. Como se o ciclo se fechasse: o que nasceu como ritual gregário, de celebração social, e depois foi apropriado por uma religião dominante, acabou na cultura popular sendo devolvido ao sentido original — ou seja, a festa pela alegria de festejar.

Não à toa, a folclorista Laura Della Mônica registrou em seu livro 'Os Três Santos do Mês de Junho' que "respeitar as festas e orações dedicadas a cada um dos três santos do mês de junho, segundo a tradição, é obrigação e dever de todos nós, pelo menos culturalmente". O "todos nós" é o brasileiro. Porque mesmo nascida no Velho Mundo, as festas juninas assumiram uma identidade própria em território nacional.

"A colonização da América colocou novamente a questão [da apropriação cultural] para os jesuítas e todos os religiosos que se instalaram no continente sul-americano", pontua a socióloga Rangel. "No caso do Brasil, houve uma coincidência do calendário. No inverno seco, o solstício de inverno marca o período dos trabalhos agrícolas mais importantes. Do mesmo modo que, para os povos do hemisfério norte é o período de rituais de fertilidade, [a festa por aqui também vem] com as mesmas características, congrega as famílias na evocação da abundância."

As tradições regionais guardam suas especificidades, como era de se esperar em um país de dimensões continentais. "Sempre foram festas e rituais populares", salienta Rangel. "No Brasil temos expressões regionais muito fortes: o São João nordestino, o Boi Bumbá da região norte, o Boi de Mamão no sul, Cavalhadas no centro-oeste e as festas do Divino Espírito Santo e muitas regiões, particularmente no estado de São Paulo."

A pesquisadora comenta que "conforme os padres vão chegando nas paróquias, começam a interferir nas comemorações". É quando vem o sincretismo: a festa popular também é festa católica, a quermesse organizada pela igreja também tem os rituais populares.

"Até hoje as paróquias, as igrejas, realizam festas juninas. Só não estão realizando neste período em função da pandemia de covid. Mesmo que as maiores festas estejam predominantemente tendo somente o caráter festivo, mais comercial, de exploração pelo ganho financeiro, as igrejas continuam fazendo comemorações aos santos juninos", pontua Ikeda. "Embora muitas pessoas não católicas também participem das festas, embora predomine uma visão genérica que as festas juninas não guardam mais relação com a religiosidade, há ainda um relacionamento das igrejas com esses santos juninos."

Para ele, a evolução da festividade consiste no fato de que "toda aglomeração possibilita o incentivo ao comércio". "E a alimentação está neste centro, na busca mesmo do repasto cerimonial e festividades, danças e músicas que sempre estiveram ligados aos antigos rituais."

Ikeda lembra que a as festas populares têm uma importância antropológica por serem "práticas gregárias que ciclicamente comemoram a própria constituição, a própria existência das comunidades enquanto coletividade, a reunião de grupos humanos que preservam uma história comum".

"No caso da feste junina, esse vestir-se de caipira, simbolicamente, é um instrumento de importância até emocional e psicológico para as pessoas se sentirem com a identidade ligada ao passado, aos pais e avós que praticavam aquilo, comemorando de forma parecida", analisa o pesquisador. "Assim, a prática possibilita a guarda de uma continuidade ao longo do tempo."

Suspensão sanitária

Nunca é demais enfatizar: com a pandemia de covid-19 ainda fora de controle, seria uma péssima ideia realizar qualquer tipo de festa neste período — se quer comemorar, faça em casa somente com seu núcleo familiar.

Então, 2021 será o segundo ano consecutivo em que o Brasil não terá, ao menos de modo ostensivo, a tradição das festividades com bandeirinhas coloridas. Doutora em História das Ciências da Saúde e autora do livro A Gripe Espanhola na Bahia, a historiadora Christiane Maria Cruz de Souza afirma que esse cancelamento não ocorreu nem na epidemia de 100 anos atrás.

Isto porque a gripe chegou ao Brasil bem depois dos festejos de 1918. E, no ano seguinte, a epidemia estava controlada. "A gripe espanhola não teve nenhuma interferência no São João. Os primeiros registros da doença apareceram em setembro de 1918 e a doença foi se extinguindo aos poucos. Em Salvador, ele não avançou para o ano de 1919. Houve alguns surtos, em lugares mais remotos, até 1920, mas sem caráter epidêmico."

É de se supor, inclusive, que as festividades de 1919 tenham sido ainda mais animadas. "Passada a epidemia de gripe espanhola, tudo o que as pessoas queriam eram esquecê-la", afirma Souza.

Em 20 de junho de 1919, entretanto, surgiram os primeiros registros indicando uma epidemia de varíola na capital da Bahia. "Começaram a aparecer um caso aqui, outro ali, mas ainda sem a força suficiente para poucos dias depois interditar os festejos de São João", nota a pesquisadora. "As autoridades sanitárias demoraram muito para reconhecer que ocorria uma epidemia terrível de varíola. Autoridades públicas só costumam reconhecer a existência de uma epidemia quando se torna inevitável devido ao acúmulo de adoecimentos e mortes, quando o número de doentes e mortos ultrapassa a normalidade esperada para os casos da doença. Isso demora um tempo."

Rangel ressalta, inclusive, que até a primeira metade do século 20, as festas juninas eram muito menores, restritas a familiares e pequenos grupos comunitários. Muito menos do que os eventos de hoje em dia. "Eram festas de arraial, de quintais, de quermesses", diz. "Elas só se transformaram em grandes espetáculos na segunda metade do século 20, na esteira da espetacularização do carnaval."

  • Edison Veiga
  • De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil
Professor Edgar Bom Jardim - PE

PSOL pede que Ministério Público investigue criação de 'tribunal ideológico' do Enem





Os parlamentares também querem convocar o ministro da Educação, pastor Milton Ribeiro, para esclarecer a iniciativa na Câmara

A liderança do PSOL na Câmara solicitou ao Ministério Público Federal investigação urgente sobre o plano do governo Jair Bolsonaro de criar uma espécie de "tribunal ideológico" para avaliar quais questões poderão ser usadas no Enem (Exame Nacional do Ensino Médio).

Os parlamentares também querem convocar o ministro da Educação, pastor Milton Ribeiro, para esclarecer a iniciativa na Câmara.

O jornal Folha de S.Paulo revelou que o Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais) tem pronta uma portaria que estabelece uma instância permanente de análise ideológica dos itens das avaliações da educação básica. O documento prevê veto a "questões subjetivas" e atenção a "valores morais".

A área técnica do Inep se posicionou contrária à criação de uma nova instância por já haver processos técnicos consistentes de elaboração e escolha dos itens.



Nesta sexta-feira (18), a liderança do PSOL na Câmara encaminhou pedido de investigação ao Subprocurador-Geral da República Carlos Alberto Vilhena, com base nas revelações da Folha de S.Paulo. O comunicado ressalta os princípios constitucionais de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, e que violações configuram improbidade administrativa.

"As instituições não podem permitir que os vieses autoritários e antidemocráticos da gestão à frente do Poder Executivo Federal contaminem a gestão pública através de censuras e aparelhamentos", diz ofício, assinado pela líder da legenda na casa, Talíria Petrone (RJ), e pelos outros oito integrantes da bancada.

No requerimento de convocação do ministro, apresentado à Comissão de Educação da Câmara, os parlamentares afirmam que é grave o ato planejado pelo governo.

"Indica afronta ao fundamento constitucional do pluralismo político, ao direito à livre expressão do pensamento, à vedação a toda e qualquer censura de natureza política ideológica e artística, bem como aos princípios que regem o ensino no Brasil", diz o requerimento, que ainda será analisado pelo colegiado.

Questionado, o governo não respondeu.

O plano de criar uma comissão de revisão ideológica surge após o ministro afirmar, em audiência na Câmara no dia 9 de junho, que havia desistido de conferir pessoalmente as questões do Enem. Aos congressistas, ele não citou, no entanto, que haveria uma nova instância de análise das questões.

"Em face da repercussão negativa de sua declaração, o ministro chegou a anunciar um recuo, abrindo mão de um direito que jamais teve", diz o requerimento do PSOL.

A Folha de S.Paulo teve acesso à minuta do texto do Inep, órgão ligado ao MEC (Ministério da Educação) e responsável pelo Enem e outras avaliações. A publicação oficial da portaria está prevista para os próximos dias –o tema é tratado com urgência por decisão do ministro Milton Ribeiro.

A iniciativa já foi rechaçada internamente pelos técnicos do Inep. Nota técnica obtida pela reportagem da Folha de S.Paulo ressalta que já há um longo processo de elaboração das questões: são ao menos sete etapas de revisão.

A minuta aponta que a nova comissão será formada pelo presidente do Inep (cargo hoje ocupado por Danilo Dupas Ribeiro), o diretor de Avaliação da Educação Básica e outros dois integrantes externos por cada área avaliada pela prova.

Esses participantes externos serão escolhidos pela própria presidência do Inep.

Servidores do instituto estão apreensivos com o perfil dos membros e veem como único objetivo do governo o controle ideológico da prova. Os participantes das fases atuais de revisão das questões são convocados por chamamento público, o que garante a impessoalidade do processo.

O grupo teria de barrar "questões subjetivas" e que afrontem "valores morais e éticos em que se fundamenta a sociedade". O texto também cita outros critérios para a revisão, como respeito a "valores cívicos", "patriotismo" e "estar livre de preconceitos ou discriminações de qualquer ordem".

O embate ideológico é a principal marca da gestão Bolsonaro na área da educação. O governo tem aversão a questões que abordem, por exemplo, qualquer discussão de gênero.

Em 2019, o Inep criou uma comissão que censurou questões. Elogiada por Bolsonaro, a ditadura militar (1964-1985), por exemplo, não foi mais abordada no exame. O plano é que essa nova comissão seja permanente.

Bolsonaro catapultou sua carreira política em uma cruzada contra abordagens do que ele e outros detratores chamam de "ideologia de gênero", expressão não usada por educadores. Em 2013, disse ser homofóbico "com muito orgulho".

O presidente faz críticas ao Enem desde que era deputado. Em 2015, atacou uma citação no Enem à filósofa francesa Simone de Beauvoir, o que seria, para ele, uma tentativa de doutrinação.

A própria escolha de um pastor para o cargo de ministro teve o objetivo de reforçar o posicionamento ideológico do governo.

Há um inquérito contra o ministro no STF (Supremo Tribunal Federal) por eventual crime de homofobia. Em setembro, Ribeiro disse em entrevista que a homossexualidade não seria normal e a atribuiu a "famílias desajustadas". Na Câmara, pediu desculpas.

Com Folha de Pernambuco

Professor Edgar Bom Jardim - PE