domingo, 25 de abril de 2021

Os 500 anos do inquérito de Lutero, que abriu o mundo ocidental para a liberdade de pensamento

Gravura que representa Lutero na Dieta de Worms, final do século 16

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Lutero na Dieta de Worms, uma assembleia oficial do Sacro Império Romano Germânico, que marcou ruptura com o catolicismo

Questionar a autoridade papal era crime gravíssimo na Europa daqueles tempos. Propor mudanças na tradicional estrutura da poderosa Igreja Católica consistia em se expor ao risco de um julgamento impiedoso. O religioso Jan Huss (1369-1415) foi tachado de herege e acabou queimado vivo em praça pública.

Por pouco não teve o mesmo destino o monge agostiniano germânico Martinho Lutero (1483-1546). Doutor em teologia, ele era um respeitado professor na Universidade de Wittenberg quando propôs um debate acadêmico que acabaria mudando para sempre a história do cristianismo ocidental — e, consequentemente, abrindo brechas para o direito ao livre-pensamento.

Em 31 de outubro de 1517, ele afixou suas 95 teses na porta da Igreja do Castelo de Wittenberg. Repleto de críticas ao modo como o catolicismo vinha sendo praticado, a publicação provocou reações entre intelectuais, religiosos e autoridades da época.

Três anos mais tarde, em 15 de junho de 1520, o puxão de orelhas no monge germânico veio em forma de bula papal. Em Exsurge Domine, o papa Leão 10° (1475-1521) ameaçou Lutero de excomunhão caso não se retratasse em 70 dias. O germânico não aceitou — e ainda queimou o documento do sumo pontífice.

Em 3 de janeiro de 1521, Leão 5° excomungou Lutero. Esse contexto todo trouxe as ideias do agostiniano para o centro da chamada Dieta de Worms, uma assembleia oficial do Sacro Império Romano Germânico, com funções de órgão deliberativo, que se reuniu entre 28 de janeiro a 26 de maio de 1521, presidida pelo imperador Carlos 5° (1500-1558).


"Decidiu-se que Lutero deveria participar da dieta porque havia uma mistura política e religiosa de suas questões em um contexto de nascimento dos estados nacionais. Eram mudanças religiosas, da piedade cristã, com um sentimento protonacionalista dos estados alemães, que se sentiam explorados por Roma", pontua a historiadora Jaquelini de Souza, professora na Universidade Regional do Cariri e pesquisadora nas Faculdades EST (antiga Escola Superior de Teologia), instituição da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil. "[Do ponto de vista político] era extremamente importante que Lutero se retratasse e, portanto, quebrasse qualquer tipo de argumento de que havia um abuso econômico contra os principados alemães."

"[A Dieta de Worms] não foi convocada única e exclusivamente para ouvir Martinho Lutero. [Mas o caso] foi incorporado na agenda da assembleia a pedido do príncipe Frederico. A convocação de Lutero foi um desdobramento de seus escritos críticos à Igreja de Roma", contextualiza a pastora luterana Romi Bencke, secretária-geral do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (Conic).

"Antes da Dieta de Worms já haviam ocorrido outros momentos de grande tensão, como a disputa de Leipzig, em 1519, que reacendeu o processo contra Lutero por parte da igreja romana", completa ela. "A expectativa era que ao se convocar Lutero [para Worms] se conseguisse encontrar uma mediação para o conflito e os tumultos que estavam ocorrendo em território alemão."

Chamado então para prestar contas, Lutero chegou a Worms em 16 de abril. Sob risco de ser perseguido no trajeto ou mesmo na reunião, portava um salvo-conduto expedido pelo imperador.

No dia seguinte, às 16h, há exatos 500 anos, apresentou-se à assembleia, conduzido por dois oficiais do império. Antes, ele foi advertido que só deveria se manifestar em resposta aos questionamentos, nada além disso. O presidente da sessão perguntou se ele reconhecia a autoria dos livros a ele atribuídos e se renunciava às suas heresias. Foram lidos os nomes de 25 obras.

Martinho Lutero, em pintura do século 16

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Lutero propôs debate acadêmico que acabaria mudando para sempre a história do cristianismo ocidental — e, consequentemente, abrindo brechas para o direito ao livre-pensamento

Lutero não respondeu. Preferiu pedir mais tempo. Queria pensar numa resposta mais precisa, talvez ciente de que estava protagonizando um momento histórico. Seu pedido foi aceito e ele recebeu a ordem para retornar à assembleia no dia seguinte, 18 de abril, no mesmo horário.

As respostas de Lutero

Sobre as obras, o monge agostiniano reconheceu a autoria de todas, embora as tenha dividido em três grupos distintos. Afirmou primeiro que aquelas que eram bem-recebidas até por seus adversários não tinham de ser rejeitadas. Sobre as que criticavam os abusos do cristianismo e do papado, ressaltou que rejeitá-las seria encorajar a continuidade de tais desvios. Por fim, disse que, sobre as que atacavam indivíduos, ele se desculparia pela eventual dureza de suas palavras, mas não rejeitaria a substância delas — condicionando que poderia renegá-las caso lhe mostrassem erros baseados nas Sagradas Escrituras.

Mas as frases que entrariam para a história foram as que ele disse para responder se renunciaria às heresias. "A não ser que eu esteja convencido pelo testemunho das Escrituras ou pela razão clara, sou limitado pelas Escrituras que citei e minha consciência é cativa à palavra de Deus. Não posso e não irei me retratar de nada, uma vez que não é nem seguro nem correto agir contra a consciência. Esta é minha posição."

"Ele reconheceu que as publicações eram realmente dele e se negou a revogar seus escritos pois, segundo ele, sua teologia não era incoerente com o Evangelho", explica Bencke. "Em função disso, Carlos 5° declarou Lutero inimigo da cristandade."

"Lutero se manteve firme em sua postura de não se retratar e sua fala acabou se tornando uma das mais belas passagens da história do cristianismo", define Souza.

"Sua resposta foi icônica. Ao dizer que não é bom alguém agir contra a própria consciência, sua declaração marcou época. Futuramente, um dos primeiros direitos individuais passa a ser o direito de crença, de consciência", enfatiza o teólogo e historiador Sérgio Ribeiro Santos, coordenador do curso de História na Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Diante disso, o veredicto foi que Martinho Lutero deveria ser tratado como herege. Enquanto se determinava qual seria o seu destino, o monge fugiu. Seu salvo-conduto, em tese, deveria protegê-lo na viagem de volta, mas àquela altura era muito provável que ele fosse preso e punido.

Foi salvo porque tinha um protetor: o príncipe eleito da Saxônia, Frederico 3° (1483-1525), mandou capturá-lo e passou a abrigá-lo como hóspede no castelo de Wartburg. A favor, contava o bom relacionamento que o príncipe tinha com o papa.

Imperador Carlos 5° em pintura do século 16

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Imperador Carlos 5° declarou Lutero inimigo da cristandade

Nesse período Lutero teria realizado a tradução da bíblia para a língua alemã — um marco fundamental na ideia de que todos, e não só uma casta privilegiada, deveriam ter acesso aos textos religiosos.

Conforme atenta o historiador Santos, esse apoio de setores aristocráticos germânicos foi o que possibilitou que o destino de Lutero não tivesse sido a fogueira como seus antecessores."Ideias de reforma já haviam sido antes debatidas, mas ainda não havia uma adesão inclusive política para dar força a esse movimento religioso", afirma. "Lutero, quando fez isso, teve apoio de príncipes. E a cisão desses príncipes com Roma, por motivações políticas. Isso fortalece o movimento de reforma."

Desdobramentos

A importância histórica desse evento ocorrido cinco séculos atrás está na reorganização do cristianismo ocidental a partir de Lutero — e, consequentemente, das transformações das próprias sociedades.

"Ele [Lutero] não foi a primeira pessoa que se levantou contra o poder papal e contra os poderes imperiais [do Sacro Império Romano Germânico]. Mas, sem dúvida nenhuma, as consequências [de seu movimento] ocorreram de forma nunca antes vistas para a cristandade ocidental, porque daí de fato começa um desenrolar político, econômico e religioso", comenta Souza.

"Nasceu uma nova divisão para a cristandade ocidental, com a necessidade de se trabalharem questões sobre liberdade religiosa, já que Lutero defendia que não era bom - nem são - ir contra a consciência. Questões sobre a ideia de liberdade de expressão, de resistência ao Estado, tudo isso será desdobramento daquilo que aconteceu em Worms", completa a historiadora. "Claro que não podemos dizer que há um lado do mocinho e um lado do vilão."

Se o movimento possibilitou o nascimento de uma série de outras igrejas, quebrando uma espécie de monopólio ocidental da fé, antes da Igreja Católica, o próprio catolicismo também foi obrigado a se transformar.

Foi em resposta à reforma protestante que o papa Paulo 3° (1468-1549) convocou uma assembleia, o chamado Concílio de Trento. De dezembro de 1545 a dezembro de 1563 diversos ajustes foram propostos dentro da doutrina católica para garantir uma unidade da fé e, ao mesmo tempo, reforçar a necessidade de mais disciplina eclesiástica.

"As transformações foram uma via de mão-dupla", define Souza.

Pesquisadora de história do catolicismo na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, a vaticanista Mirticeli Medeiros afirma que foi depois de Worms que a Igreja Católica "levou a sério um projeto de reforma", já que, "anos antes, a necessidade de mexer nas estruturas da instituição tinha sido negligenciada pelas autoridades católicas".

Frederico 3°, príncipe da Saxônia, em pintura do século 16

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Lutero foi salvo porque tinha um protetor: o príncipe da Saxônia, Frederico 3°, mandou capturá-lo e passou a abrigá-lo como hóspede no castelo de Wartburg

A historiadora Souza explica que Lutero não pretendia fundar uma nova religião, nem abandonar o catolicismo. "Quando ele publicou suas 95 teses, eles chamava para um debate acadêmico, queria conversar com seus pares sobre uma prática que ele considerava abusiva: seu objetivo era combater [a venda de] indulgências", diz ela.

"Quando ele fala em reforma, ele está se referindo ao curso de teologia de sua universidade, porque ele acreditava que reformando-se a teologia, seria reformado o clero, e reformando o clero, seria reformada a piedade do povo", prossegue a historiadora. "Ou seja, ele olhava numa perspectiva de melhoramento. Não pensava, não passava de forma alguma pela sua cabeça, em momento algum, romper com a Igreja católica. Ele buscava o melhoramento da teologia e, portanto, da piedade cristã."

Cristianismo não católico

Mesmo que ele não pretendesse fundar uma nova igreja, o movimento acabou desencadeando para isso. Mas essa cristalização, essa institucionalização, só começaria a ocorrer uma década mais tarde. "A ideia de uma igreja luterana surgiu mais ao fim da vida de Lutero. Mas ele próprio não aceitava a ideia de uma igreja com seu nome", afirma Santos.

Mas mais do que dar origem a um segmento cristão com cerca de 80 milhões de praticantes atualmente no mundo, esse movimento permitiu a criação de todas as igrejas cristãs não católicas do mundo ocidental.

"Obviamente que o que Lutero fez deu liberdade para qualquer um fazer", comenta Souza. "Se o sujeito questiona o papa, ele também dá liberdade para outros o questionarem. Nesse sentido, as igrejas de hoje são herdeiras de Lutero."

Por outro lado, ela ressalta que as identidades são muito variadas, dentro do espectro das religiões cristãs. A partir do século 16, uma sucessão de movimentos religiosos passou a ocorrer em diversas partes do Ocidente, com a criação de diversas denominações, com suas próprias teologias e suas próprias maneiras de viver a religiosidade.

"Lutero teve papel importante no processo de estruturação do protestantismo", frisa a pastora Bencke. "No entanto, não compreendo que todas as igrejas protestantes sejam herdeiras do movimento iniciado por ele. O protestantismo já nasceu plural."

Lutero na Dieta de Worms

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Movimento de Lutero permitiu a criação de todas as igrejas cristãs não católicas do mundo ocidental.

A historiadora Souza explica que, ao olhar para o cenário evangélico do Brasil de hoje, a divisão clássica consiste em encarar parte das igrejas como de raízes de migração e missionária, e parte como pentecostalistas.

No primeiro grupo estão o luteranismo — trazido ao Brasil por meio dos imigrantes alemães — e igrejas como a presbiteriana e a metodista — fundadas por missionários estrangeiros. Já as igrejas pentecostais podem ser classificadas em ondas. "Na primeira, a grande ênfase era o falar em línguas [manifestação bíblica do Espírito Santo]. Na segunda, as curas [milagrosas]. E a terceira onda vem com a teologia da prosperidade", contextualiza a historiadora Souza.

"Não tem nada a ver com Lutero essa teologia da prosperidade. Ele combateria isso firmemente", comenta ela. "No evangelicalismo do Brasil [contemporâneo], muitos acusam luteranos de serem liberais, não no sentido econômico ou da teologia, mas do sentido de serem 'frouxos', de não serem tão rígidos, em questões morais. [O luterano] trata essas questões de forma mais leve."

Se 500 anos atrás foi um racha com a Igreja Católica que deu origem ao luteranismo, contudo, hoje há uma amistosidade entre as denominações. "Ao longo dos séculos, as trocas de farpas entre as duas confissões cristãs foram recíprocas", conta Medeiros. "A reaproximação começou a acontecer quando ambas as partes optaram por um processo de purificação da memória, focando mais nos pontos que as unem do que naqueles que as separam."

"Hoje em dia, evita-se a tendência de encontrar o culpado pela separação e prefere-se atribuir às duas partes a responsabilidade pelo ocorrido", complementa a vaticanista. "A reaproximação oficial, sem contar todo o processo de diálogo que começou a acontecer entre alguns grupos ecumênicos europeus, começou em 1967, quando se criou uma comissão bilateral para discutir as controvérsias doutrinais e teológicas que impediam essa reaproximação."

Vários encontros foram promovidos nas décadas seguintes até que, em 1993, as duas instituições redigiram uma declaração conjunta, ratificada seis anos mais tarde. "Foi um marco porque, além de ser um acordo oficial de comunhão, superou uma das questões que mais contribuíram com o cisma do passado. Para se ter uma ideia, afirmou-se, por meio do acordo, que não fazia mais sentido hoje as condenações recíprocas feitas no passado", diz Medeiros. "Foi uma virada de página mesmo. O diálogo entre católicos e luteranos já é visto como um dos pontos que mais têm gerado resultado dentro do movimento ecumênico, para se ter uma ideia."

Ela recorda a visita que o hoje papa emérito Bento 16 realizou à Alemanha em 2011, ainda durante seu pontificado. "Ele disse algo que sinaliza bem em que pé está esse diálogo. Ao comentar as intenções de Lutero no século 16, [Bento 16] acabou revolucionando o magistério papal em relação à questão ao afirmar que, por trás das inquietações do reformador alemão estava uma profunda experiência com a misericórdia de Deus", pontua a vaticanista. "Não dá para imaginar um papa no século 18 ou 19 fazendo um elogio desses à pessoa que, durante anos, foi vista como pivô do cisma ocidental."

  • Edison Veiga
  • De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil
Professor Edgar Bom Jardim - PE

sexta-feira, 23 de abril de 2021

Auxílio emergencial: Com benefício reduzido em 2021, Brasil terá 61 milhões na pobreza

Pés negros descalços, próximos a um par de chinelos, sobre chão de terra batida

CRÉDITO,ARNALDO CARVALHO/GETTY IMAGES

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Mulheres e a população negra são mais afetadas pela piora das condições de vida no país

Com o valor menor do auxílio emergencial este ano, o Brasil deve somar 61,1 milhões de pessoas vivendo na pobreza e 19,3 milhões na extrema pobreza, segundo estudo publicado nesta quinta-feira (22/04) pelo Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades da Universidade de São Paulo (Made-USP).

Em 2021, são consideradas pobres as pessoas que vivem com uma renda mensal per capita (por pessoa) inferior a R$ 469 por mês, ou US$ 5,50 por dia, conforme critério adotado pelo Banco Mundial. Já os extremamente pobres são aqueles que vivem com menos de R$ 162 mensais, ou US$ 1,90 por dia.

Em 2019, os brasileiros vivendo abaixo da linha da pobreza somavam 51,9 milhões. Isto significa que, em 2021, o Brasil terá 9,1 milhões de pobres a mais do que antes da chegada do coronavírus ao país.

No ano anterior à pandemia, os extremamente pobres eram 13,9 milhões. Assim, em apenas dois anos, 5,4 milhões de brasileiros se somarão a esse grupo que convive com a carência extrema.

Para as pesquisadoras Luiza Nassif-Pires, Luísa Cardoso e Ana Luíza Matos de Oliveira, autoras do estudo, o aumento da miséria esperado para esse ano revela que o auxílio emergencial com valor médio de R$ 250 é insuficiente para recompor a perda de renda da população mais pobre em meio à pior fase da crise de saúde pública provocada pela covid-19.


"Já havia um crescimento da pobreza antes da pandemia, isso só não se agravou no ano passado devido ao auxílio emergencial de R$ 600 a R$ 1.200", observa Oliveira.

"O novo modelo do auxílio, que sofreu um corte significativo, está deixando grande parte da população desamparada", acrescenta a economista, lembrando ainda que a queda de 4,1% do PIB (Produto Interno Bruto) em 2020 só não foi maior devido ao benefício, que permitiu a parcela significativa da população manter um nível mínimo de consumo.

As economistas destacam ainda que as mulheres e a população negra são as mais afetadas por essa grave piora das condições de vida no país.

Menino estuda em frente a uma janela, em uma casa de tijolos aparentes

CRÉDITO,IGOR ALECSANDER/GETTY IMAGES

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Bolsa Família, salário mínimo e maior acesso à educação levaram à redução da pobreza no Brasil até 2014

Pobreza vem crescendo desde 2015

Até 2014, a pobreza diminuiu durante anos no Brasil, graças ao avanço de políticas sociais como o Bolsa Família, os ganhos reais do salário mínimo e a ampliação do acesso à educação.

Em 2015, sob efeito da crise econômica, a tendência se inverteu e a miséria voltou a crescer ano após ano. A trajetória de alta, no entanto, foi interrompida em 2020, graças ao efeito do auxílio emergencial.

O benefício foi criado em abril do ano passado, com valor de R$ 600, que podia chegar a R$ 1.200 para mães solteiras chefes de família. Foram pagas cinco parcelas nesses valores cheios e outras quatro com os valores reduzido à metade, num total de R$ 295 bilhões.

Em julho de 2020, mês em que o efeito do benefício atingiu o seu auge, a taxa de extrema pobreza do país foi reduzida a 2,4% e a de pobreza a 20,3%, estimam as pesquisadoras, com base em dados da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) Contínua e da Pnad Covid-19 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

Foram os patamares mais baixos já registrados para esses indicadores em pelo menos 40 anos, conforme uma série mais longa produzida pelo pesquisador Daniel Duque, do Ibre-FGV (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas).

A título de comparação, essas mesmas taxas eram de 6,6% e 24,8% em 2019, antes da pandemia. Agora em 2021, a expectativa é de que a extrema pobreza atinja 9,1% da população e a pobreza chegue a 28,9%.

Casas coloridas em uma favela densamente ocupada

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População de baixa renda ficou sem auxílio nenhum de janeiro a março de 2021

Neste ano, a população de baixa renda ficou sem auxílio nenhum de janeiro a março. Em abril, o pagamento começou a ser feito primeiramente apenas através do aplicativo da Caixa, o que dificultou o uso do recurso por parte das famílias, que têm dificuldade de acesso à internet.

O valor do benefício foi reduzido a uma média R$ 250, variando entre R$ 150 para pessoas que moram sozinhas, R$ 250 para domicílios com mais de uma pessoa e R$ 375 para mães solo.

O universo de beneficiários foi diminuído de 68,2 milhões de pessoas em 2020, para 45,6 milhões de famílias em 2021.

O saque foi restrito a uma pessoa por família e limitado a indivíduos que já receberam o auxílio em 2020 - o que significa que quem perder a renda esse ano, não poderá contar com a ajuda.

O montante autorizado pelo Congresso para o auxílio emergencial em 2021 é de R$ 44 bilhões, comparado aos R$ 295 bilhões do ano passado. Está previsto o pagamento de quatro parcelas este ano, ante nove parcelas pagas em 2020.

"Estamos no pior momento da pandemia em termos sanitários, com diversas cidades voltando a restringir atividades e, justamente agora, foi reduzido o estímulo fiscal", observa Oliveira, que é professora visitante da Flacso Brasil (Faculdade Latino-​Americana de Ciências Sociais) e coordenadora-geral da secretaria executiva da Frente Parlamentar Mista em Defesa do Serviço Público.

"Isso deve ter um impacto não só para a população vulnerável, mas também um efeito macroeconômico muito grande. Então é um problema para os mais pobres e para o Brasil como um todo."

Mulheres negras são as mais prejudicadas

Embora a redução do estímulo fiscal afete o Brasil como um todo, são as mulheres negras as mais prejudicadas pela redução do auxílio emergencial em 2021, aponta o estudo lançado nesta quinta-feira pelo Made-USP.

Antes da pandemia, a pobreza atingia 33% das mulheres negras, 32% dos homens negros e 15% das mulheres brancas e dos homens brancos. Com o auxílio reduzido de 2021, esses mesmos indicadores devem subir a 38%, 36% e 19%.

Já a taxa de extrema pobreza, antes da crise, era de 9,2% entre mulheres negras, 8,9% entre homens negros, 3,5% entre mulheres brancas e 3,4% entre homens brancos.

Com o benefício emergencial nos valores de 2021, a miséria deve chegar a percentuais muito acima dos verificados antes da crise: respectivamente, 12,3%, 11,6%, 5,6% e 5,5%.

Mulher negra de lenço na cabeça com olhar triste, com menino sorridente ao fundo

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'Como a posição das mulheres no mercado de trabalho já é mais vulnerável, quando há uma crise, elas são mais atingidas', diz pesquisadora

"De modo geral, as mulheres estão mais sujeitas à pobreza", observa Nassif-Pires, professora no Levy Economics Institute do Bard College (EUA).

"Elas são mais propensas a terem emprego informal, estão segregadas em ocupações que pagam menos e existe um hiato salarial entre homens e mulheres mesmo dentro de uma mesma ocupação. Além disso, elas mais frequentemente têm dependentes do que os homens", diz a economista.

"Então, há toda uma questão que vem de antes da pandemia, mas tudo isso se agrava com a crise, porque, devido à informalidade maior, é mais fácil para elas perderem o emprego", destaca, acrescentando que a pandemia também exigiu maior produção dentro de casa, em atividades de cuidado dos filhos e de idosos, que são no geral realizadas pelas mulheres.

"Em casais heterossexuais, frequentemente é a mulher que abre mão do emprego", lembra a professora do Bard College. Além disso, com as escolas e creches fechadas, muitas mulheres tiveram que deixar seus trabalhos fora de casa por não terem com quem deixar as crianças.

"Em resumo, como a posição das mulheres no mercado de trabalho já é mais vulnerável, quando tem uma crise, elas são mais atingidas", sintetiza Nassif-Pires.

Com relação à população negra, a pesquisadora é enfática quanto à origem das maiores taxas de pobreza desta parcela dos brasileiros: a herança da escravidão.

"Essa é a resposta rápida, mas, para além disso, há todo um racismo estrutural que resulta que, mesmo para um grupo de pessoas com a mesma escolaridade, há diferenças no nível salarial, nos tipos de ocupação e na taxa de informalidade entre negros e brancos."

"Então existe um racismo muito forte dentro do mercado de trabalho que coloca a população negra numa posição um tanto mais precária em termos de trabalho formal", observa.

'Estados deveriam complementar auxílio'

Para Oliveira, a pesquisa deixa evidente que são as mulheres negras as que mais estão sofrendo com a crise atual.

"Fica claro que precisamos de políticas específicas voltadas para esse grupo", diz a pesquisadora. "Precisamos também entender como a política fiscal e a política econômica como um todo impactam especificamente essa parcela da população."

A professora da Flacso-Brasil destaca, por exemplo, que cortes de recursos destinados à saúde, educação e assistência social afetam diretamente essa população mais vulnerável.

Além disso, a pandemia traz o risco de que avanços conquistados nas últimas décadas na redução da desigualdade racial e de gênero se percam, caso o Estado não dê uma resposta, na forma de medidas de apoio a essa população.

"Recomendamos a continuação do auxílio enquanto a pandemia durar e o pagamento de auxílios adicionais por Estados e municípios, para complementar esse valor tão baixo do auxílio federal de 2021", diz Cardoso, pesquisadora de pós-doutorado na UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).

Um menino e três meninas negras no batente de uma porta em casa de tijolos sem acabamento

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'A pobreza tem um caráter geracional. É muito provável que impacto que as famílias estão sofrendo agora tenha reflexos no futuro', afirma economista

"Além disso, indicamos também a elaboração de políticas voltadas aos jovens e crianças que estão em casa, como políticas de acesso à internet para os alunos de escolas públicas, porque a pobreza tem um caráter geracional", afirma a economista e demógrafa.

"Então esse impacto de agora que as famílias estão sofrendo não vai durar apenas um ano ou dois. É muito provável que isso se estenda e tenha reflexos no futuro também."

Para Cardoso, a demora do governo para retomar o auxílio em 2021 e os baixos valores estabelecidos mostram o descaso do governo com a população e com o combate às desigualdades. "Essas coisas deveriam ser prioridades", avalia.

Quanto à viabilidade de se estender o auxílio enquanto durar a pandemia, Nassif-Pires avalia que a restrição financeira imposta pelo teto de gastos é uma limitação política.

"O espaço fiscal poderia existir, mas existe um embate político por esse espaço", afirma.

"Pensando de forma estratégica, o custo do auxílio emergencial não é somente o seu valor de face, porque há um retorno disso. Ele faz com que a economia continue funcionando, então seu custo líquido é muito menor do que aquele que vai aparecer no Orçamento."

Além disso, a professora destaca que o auxílio emergencial tem papel fundamental no controle da pandemia.

"As pessoas que estão na extrema pobreza e na pobreza não têm a possiblidade de escolher cuidar de sua saúde. Elas estão numa situação de vida ou morte diária e não podem deixar de trabalhar, mesmo que estejam doentes ou trabalhando em situações precárias e expostas à pandemia", diz a economista.

"Manter a economia funcionando apesar da emergência de saúde, às custas de as pessoas precisarem se expor para sobreviver, tem impacto sobre a própria continuidade da pandemia. O problema econômico é resultado do problema sanitário."

  • Thais Carrança
  • Da BBC News Brasil em São Paulo
Professor Edgar Bom Jardim - PE