domingo, 28 de março de 2021

Por que o Congresso quer demissão de Ernesto Araújo?




Ernesto Araújo de perfil, com bandeira atrás

CRÉDITO,RICARDO MORAES/REUTERS

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Na avaliação de um senador que conversou com a reportagem, 'está claro que Ernesto Araújo vive de fazer tweets e nada mais'

Nos sistemas elétricos, o fusível é a peça desenhada para absorver o impacto de uma descarga de alta voltagem sem danificar o resto da estrutura. Quando isso acontece, o fusível queima, fica inutilizável, tem que ser trocado. Na avaliação de diplomatas e políticos ouvidos pela BBC News Brasil, desde a quarta-feira (24/3) o chanceler Ernesto Araújo se converteu nessa peça para Jair Bolsonaro.

O Brasil vive uma crise de escassez de vacinas e insumos para fabricar imunizantes contra a covid-19 ao mesmo tempo em que bate recordes de novos casos da doença e acumula mais de 300 mil mortes na pandemia.

O agravamento da pandemia no Brasil tem levado a uma deterioração da popularidade de Bolsonaro nas pesquisas de opinião e, segundo fontes consultadas pela reportagem, isso pode respingar nas chances eleitorais de aliados do governo no Congresso, que integram o chamado Centrão.

As mudanças de olho nas urnas começaram com a saída do general Eduardo Pazuello do comando do Ministério da Saúde. Ele foi o fusível ligado à recusa de sucessivas ofertas de vacinas da Pfizer, ao boicote da CoronaVac, à falta de oxigênio em Manaus e defesa do tratamento precoce. Mas a troca de Pazuello não estancou a crise com aliados, já que o ministro foi substituído por um nome ligado à família Bolsonaro, Marcelo Queiroga, e não por um indicado do Congresso.

A responsabilidade pela falta de vacinas também pesa sobre Ernesto Araújo, segundo análise do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). Foi isso o que o parlamentar ouviu sistematicamente de embaixadores estrangeiros e de empresários brasileiros nas últimas semanas.


A mesma insatisfação chegava ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), que aceitou enviar uma carta direta à vice-presidente americana Kamala Harris, sem intermediação do Itamaraty, para apelar por vacinas. Na avaliação de um senador que conversou tanto com Pacheco quanto com Lira nos últimos dias, "está claro que Ernesto Araújo vive de fazer tweets e nada mais".

"Obviamente que as críticas estão externadas em relação à política externa do Brasil e cabe ao presidente decidir quem é o melhor nome ora ser o chanceler do Brasil, se é o ministro atual ou se é outro ministro. Nós tivemos muitos erros no enfrentamento dessa pandemia e um deles foi o não estabelecimento de uma relação diplomática de produtividade com diversos países que poderiam ser colaboradores nesse momento agudo de crise que temos no Brasil. Então ainda está em tempo de mudar para poder salvar vida", afirmou Pacheco, na tarde desta quinta-feira.

Em 2 anos e 4 meses à frente do Itamaraty, Araújo esteve à frente de uma guinada ideológica na política internacional do Brasil e feriu simultaneamente o relacionamento do país com Estados Unidos, China e Índia, três nações com produção própria de imunizantes que poderiam ajudar imediatamente a aumentar o estoque do país.

Em relação aos EUA, o Brasil deixou de lado sua tradicional neutralidade e apoiou abertamente um candidato, o derrotado Donald Trump, e falhou em reconhecer a vitória do atual presidente Joe Biden e em condenar o ataque de trumpistas ao capitólio.

No caso da China, Araújo fez ataques sistemáticos ao país e a seu embaixador no Brasil via Twitter. E em relação à Índia, o Brasil optou por quebrar outra tradição diplomática ao se alinhar a países ricos quando os indianos sugeriram quebrar patentes de tratamentos contra a covid-19 na Organização Mundial do Comércio.

Prédio do Congresso Nacional à noite

CRÉDITO,AGÊNCIA BRASIL

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Base aliada do governo vê Ernesto Araújo como empecilho para governo Bolsonaro superar crise política e sanitária

Chamado a se explicar tanto na Câmara quanto no Senado na quarta-feira, 24/3, Araújo respondeu em tom considerado arrogante e impróprio até por congressistas aliados do governo. Ele defendeu sua gestão, disse que selou o acordo Mercosul-União Europeia, em negociação havia 20 anos, mas que ainda não foi colocado em prática pelas resistências europeias à atual gestão ambiental brasileira.

Mencionou conversas recentes com quadros da gestão Biden como prova de que está revertendo o mal-estar com os americanos. Defendeu a aproximação com Israel, país que visitou recentemente, mas foi lembrado por parlamentares que não trouxe vacinas de lá. E argumentou que seu trabalho estava "mudando" o Brasil ao realinhar o país aos conceitos de conservadorismo, valores da família e espiritualidade e afastá-lo do globalismo.

Araújo acusou os parlamentares de fazerem "perguntas retóricas" e não "questões objetivas" sobre sua atuação na obtenção de vacinas para o Brasil.

No Senado, que em dezembro do ano passado já dera sinais de desgaste ao chanceler ao não aprovar uma indicação sua para posto no exterior, a reação foi dura e coordenada. A condição de Araújo de novo fusível queimado ficou evidente.

"Chama a atenção que nenhum senador ali, nem os mais governistas, o tenha defendido", analisou um embaixador em condição de anonimato.

"Faço um desafio para o senhor que acha que não atrapalha o Brasil nesse momento de pandemia: peça exoneração por 30 dias. Vamos ver se, com esse gesto, não conseguimos mais rapidamente a vacina da Coronavac e mesmo a vacina Pfizer. Tenho certeza que com o gesto da sua exoneração, estaríamos nos redimindo perante China e os Estados Unidos e teríamos muito mais facilmente as vacinas nos braços do povo brasileiro", afirmou a senadora Simone Tebet (MDB-MS).

"O senhor não tem condições de ser ministro. Faça um favor, em homenagem aos mais de 300 mil brasileiros que perderam a vida, renuncie a esse cargo, peça para sair", disse o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP)

"Ministro, o senhor não tem mais condições de continuar no Ministério das Relações Exteriores. E, ao contrário do que muitos pensam, não é para criar uma crise, mas para acabar com a crise", afirmou o senador Tasso Jereissati (PSDB-CE)

Em meio à tensão da sessão, o assessor da Presidência para assuntos internacionais Filipe Martins, fez gestos considerados obscenos e racistas pelos senadores. Pacheco chegou a chamar a polícia legislativa para lidar com o assessor, que nega que tenha feito um gesto ofensivo e afirma que apenas ajeitava a lapela do paletó. Martins será investigado.

O episódio teria selado em definitivo o destino de Araújo. Na manhã desta quinta, Ernesto teria ido a Lira para se desculpar, mas o presidente da Câmara não teria mudado sua percepção e, em conversa privada com Bolsonaro, teria dito que não haveria mais condições de o ministro das Relações Exteriores seguir no posto.

Cara a cara, Lira teria repetido o tom do discurso feito ainda ontem na Câmara: "estou apertando hoje um sinal amarelo para quem quiser enxergar: não vamos continuar aqui votando e seguindo um protocolo legislativo com o compromisso de não errar com o país se, fora daqui, erros primários, erros desnecessários, erros inúteis, erros que são muito menores do que os acertos cometidos continuarem a serem praticados".

Arthur Lira

CRÉDITO,REUTERS

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Em conversa privada com Bolsonaro, Lira teria dito que não haveria mais condições de o ministro das relações exteriores seguir no posto

'Saída honrosa'

A demissão de Ernesto, segundo fontes, agora dependeria apenas de dois acertos. O primeiro seria a busca por uma saída honrosa para o chanceler. Muito ligado ao filho de Bolsonaro, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, e seguidor do escritor Olavo de Carvalho, Ernesto cumpria a função de ser uma ponte ideológica de Bolsonaro com parte de seu eleitorado doméstico.

"Estou dando toda a minha vida por isso, porque é nisso que eu acredito. Contarei aos meus netos que participei de um projeto bem-sucedido, que livrou o Brasil da corrupção, do atraso e da falta de condições", afirmou Araújo em dado ponto da sessão, com a voz embargada.

Sua disposição de ser submetido ao que embaixadores consideraram como um papel "humilhante" e "sem precedentes na história do Itamaraty" no Congresso em nome da defesa do governo deve garantir a ele algum posto confortável dentro da carreira diplomática, a qual ele pertence.

Mas as possibilidades são escassas porque para boa parte dos altos postos diplomáticos no exterior, o nome indicado precisa ser aprovado pelo Senado. Hoje, é corrente a percepção de que o nome de Araújo não seria aprovado para nada entre os senadores.

A segunda variável é o substituto de Araújo. O Congresso faz pressão para indicar o sucessor, e assim reduzir a ascendência de Eduardo Bolsonaro sobre os assuntos do Ministério das Relações Exteriores. O nome mais cotado é o do ex-presidente Fernando Collor.

Aliado a Lira, Collor tem se aproximado de Bolsonaro, que antes o chamava de "grande mentiroso", e já demonstrou interesse no posto a colegas de Senado. Outro nome também cotado seria o do também senador Antonio Anastasia (PSDB-MG). Anastasia, no entanto, estaria reticente a abraçar a função e se ver como possível alvo do chamado "gabinete do ódio" do Planalto.

Mas Bolsonaro também gostaria de fazer um aceno à sua base eleitoral, o que poderia credenciar figuras de perfil mais conservador, oriundos do próprio Itamaraty, como o atual embaixador nos EUA, Nestor Forster, ou o embaixador na França, Luís Fernando Serra. A possibilidade é vista com má vontade por políticos do Centrão.

"Se quer continuar mandando desse jeito na política externa, que Bolsonaro coloque o filho Eduardo no posto de uma vez", disse um deles à BBC News Brasil, em caráter reservado.

  • Mariana Sanches -
  • Da BBC News Brasil em Washington
Professor Edgar Bom Jardim - PE

Covid-19: uma breve história das máscaras faciais, da Peste Negra à pandemia




Mulher usando máscara contra o smog

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Ao longo dos séculos, humanos buscaram proteção cobrindo o rosto

Antes limitado a ladrões de banco, estrelas pop excêntricas e turistas japoneses preocupados com a saúde (e conscienciosos), o uso de máscaras em público agora é comum o suficiente para ser apelidado de "o novo normal".

Pode até ser normal — mas não é novo.

Da Peste Negra ao smog sufocante, da poluição do tráfego à ameaça de ataques de gás, coberturas faciais têm sido usadas nos últimos 500 anos.

Embora as primeiras máscaras fossem usadas como disfarce, vestir uma máscara protetora (em vez de uma usada como traje) remonta pelo menos ao século 6 a.C. Imagens de pessoas usando panos sobre a boca foram encontradas nas portas de tumbas persas.

De acordo com explorador Marco Polo, os servos na China do século 13 cobriam o rosto com lenços de tecido. A ideia era que o imperador não queria que o hálito deles afetasse o cheiro e o sabor de sua comida.

As chaminés de uma fábrica do East End atravessam o manto de poluição que cobre Londres. Circa 1952

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Pode parecer um transatlântico afundando no mar, mas são chaminés de fábricas que surgem em meio à poluição no East End de Londres em 1952

A praga

Foi a Peste Negra — uma praga que varreu a Europa no século 14, matando pelo menos 25 milhões de pessoas entre 1347 e 1351 — que pressagiou o advento da máscara médica.

Os teóricos acreditavam que a doença se propagava através do ar envenenado ou "miasma", criando um desequilíbrio nos fluidos corporais de uma pessoa.

Eles tentaram evitar que esse ar asqueroso os afetasse ora cobrindo o rosto ora agarrando-se a buquês de flores.

O garoto-propaganda da peste, aquele cruzamento sinistro de máscara de pássaro entre a Sombra da Morte e um corvo steampunk, não apareceu até os últimos estertores do surto final, em meados do século 17.

Perfumes e especiarias também estavam envolvidos — o "bico" surgiu como um local para encher ervas e aromáticos para neutralizar o chamado miasma.

Os médicos da praga antes da introdução da máscara em forma de pássaro

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Os médicos da praga antes da introdução da máscara em forma de pássaro

Anti-poluição

A Revolução Industrial do século 18 ajudou a criar a infame poluição atmosférica de Londres, que aumentou à medida que mais e mais fábricas expeliam fumaça e as famílias mantinham seus fogos de carvão acesos.

Médico da praga usando roupa de pássaro

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A parte semelhante a um bico da máscara da peste era recheada com ervas aromáticas para neutralizar 'miasmas' prejudiciais

Muitos invernos viram grossas mantas de fumaça amarelo-acinzentada cobrindo a capital.

O pior episódio foi em 1952, quando entre 5 e 9 de dezembro, pelo menos 4 mil pessoas morreram no período imediatamente posterior, e estima-se que mais 8 mil foram a óbito nas semanas e meses seguintes.

O smog, uma combinação de fumaça e névoa, ocorre quando o tempo frio prende o ar estagnado sob uma camada de ar quente.

Ele pode agravar problemas respiratórios e cardiovasculares e causar irritação nos olhos.

A partir da década de 1930, as máscaras "anti-poluição" tornaram-se tão comuns no rosto quanto o Homburg (chapéu semi-formal de feltro de pele) ou cloche de feltro na cabeça.

Roupas da praga no Museu Wellcome em Londres

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Pesadas túnicas de couro, grossas coberturas de vidro para os olhos, luvas e chapéus faziam parte das roupas de proteção usadas pelos médicos que tratavam de pacientes durante a Grande Peste de 1665

Poluição do trânsito

Durante a Londres vitoriana, senhoras bem-educadas — especialistas em cobrir a pele e sempre ansiosas por qualquer coisa que pudesse ser um adorno intrincado que viesse em preto — começaram a prender véus em seus chapéus.

Embora usado durante o luto, o papel do véu não era exclusivamente fúnebre. Também ajudava a proteger o rosto de uma mulher do sol, da chuva e de poluentes, bem como da sujeira e da poeira transportadas pelo ar.

De acordo com pesquisas, a maior causa de poluição do ar nas grandes cidades agora é o tráfego. As emissões dos canos de descarga, incluindo óxidos de nitrogênio e minúsculas partículas de borracha e metal, são lançadas no ar.

Ciclistas usando máscaras antipoluição era uma cena comum em algumas cidades muito antes de o coronavírus obrigar todo mundo a usar cobertura facial. Os véus frágeis, como os usados pelas motoristas britânicas no início do século 20, não estavam mais à altura.

Mulher dirigindo

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Véus de condução - atraentes e práticos

Gripe espanhola

Um surto de gripe no final da 1ª Guerra Mundial tornou-se uma pandemia global devastadora. Apelidada de gripe espanhola porque os primeiros casos foram registrados na Espanha, cerca de 50 milhões de pessoas morreram.

Acredita-se que a disseminação do vírus tenha sido intensificada pelos soldados que retornavam das trincheiras. Espalhou-se das estações ferroviárias ao centro das cidades, depois aos subúrbios e ao campo.

As empresas de transporte tentaram impedir a propagação da infecção fazendo seus funcionários usarem coberturas faciais.

A publicação britânica Nursing Times de 1918 incluiu conselhos para conter a doença, com uma descrição de como as freiras da St Marylebone Infirmary, em Londres, ergueram divisórias desinfetadas entre cada cama e "cada enfermeira, médico, babá ou assistente" que entrasse no local tinha que usar uma máscara para se proteger.

As pessoas comuns também foram instadas a "usar uma máscara e salvar sua vida" — muitas as fizeram com gaze ou adicionaram gotas de desinfetante a engenhocas embaixo do nariz.

Pedestres em uma rua de Londres usando máscaras na boca

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Alguns médicos sugeriram gaze pulverizada com desinfetante como proteção contra a mortal gripe espanhola

Soldados de infantaria indianos treinando para ataques com gás

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Exércitos de todo o mundo, incluindo esses soldados de infantaria indianos, tiveram que realizar treinamento de ataque com gás

Gás

A ameaça de uma 2ª Guerra Mundial, 20 anos após o primeiro conflito global ter presenciado o uso de cloro e gás mostarda, fez com que o governo distribuísse máscaras de gás tanto para as pessoas comuns quanto para os militares.

Dançarinas mascaradas

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As dançarinas do cabaré Murray's em Londres usaram máscaras de gás em suas fantasias

As coberturas faciais se tornaram, assim, predominantes na maioria das áreas da vida em algumas cidades europeias.

Cavalo com máscara

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Até os animais tinham suas próprias máscaras

Poluição do escapamento de 1971

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Motorista de 1971 usa máscara de gás

Fama e privacidade

Outro tipo de máscara surgiu nos últimos tempos — uma que atende à necessidade de proteger o rosto do olhar fulgurante de fãs ávidos (e presumivelmente, inimigos).

Michael Jackson usando uma máscara cirúrgica e acenando de um carro; Boy George chegando a um aeroporto com um lenço enrolado na cabeça; Justin Bieber em uma máscara de gás

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De Michael Jackson a Boy George e Justin Bieber - as máscaras faciais têm sido surpreendentemente populares entre os músicos

São perfeitos para celebridades que querem chamar a atenção para si mesmas, ao mesmo tempo que mantêm a negação plausível de "Não quero ser reconhecido, é por isso que estou usando uma máscara perceptível".

Ainda está para ser estabelecido como elas estão lidando com pessoas normais, não famosas, encobrindo seus rostos normais, não famosos, agora que esconder o rosto não consegue receber nem mesmo o mais breve dos olhares curiosos.

  • Bethan Bell
  • BBC News

Professor Edgar Bom Jardim - PE