sexta-feira, 25 de outubro de 2019

Bioética:Essenciais para o planeta, manguezais no Nordeste são 'sufocados' por petróleo



Praia de TamandaréDireito de imagemCLEMENTE COELHO JÚNIOR
Image captionManguezais no nordeste são atingidos por petróleo que assola costa brasileira há quase dois meses
O petróleo que há quase dois meses atinge a costa brasileira no maior acidente ambiental do país em extensão e duração chegou aos manguezais —e isso é grave.
Primeiro, porque os manguezais são "ecossistemas essenciais" para o planeta, como são unânimes em descrever os especialistas. Segundo, porque é praticamente impossível retirar o petróleo dessas regiões.
O óleo chegou a manguezais em pelo menos três Estados. Em Pernambuco, atingiu pelo menos sete rios. Também chegou a áreas de mangue em estuários de Sergipe e da Bahia.
Manguezais são ecossistemas costeiros, de transição entre a terra e o mar, que ficam em regiões tropicais e subtropicais do planeta. É ali onde ficam aquelas plantas retorcidas por cima da lama escura que, de acordo com a maré, ora ficam cobertas pela água salgada do mar, ora ficam expostas com as raízes fincadas na água que se mistura à dos rios.
Peixes, camarões, moluscos, caranguejos e outros organismos habitam esses ecossistemas.
O Brasil tem quase 14 mil quilômetros quadrados de áreas de manguezais, segundo o Atlas dos Manguezais do Brasil, um documento produzido pelo ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) publicado em 2018.
Além disso, o país tem a maior extensão contínua de manguezais do mundo, e fica em segundo ou terceiro lugar entre os países com maior área de manguezal — a classificação muda de acordo com a metodologia aplicada.
Rio Massangana, PEDireito de imagemCLEMENTE COELHO JÚNIOR/DIVULGAÇÃO
Image captionManguezal é considerado um ecossistema essencial para o planeta: é berçário da vida marinha e contribui para o combate do aquecimento global
"Meu medo é que a gente dê muita atenção para a praia e se esqueça de olhar para o manguezal, onde tem o berçário das espécies. Isso vai ter impacto a médio e longo prazo muito grande", diz à BBC News Brasil Marcio Alves-Ferreira, professor do Departamento de Genética da UFRJ que pesquisou o impacto de petróleo em plantas de mangue.
E por que os manguezais são tão importantes para a natureza?
Eles prestam uma série de "serviços", de acordo com a professora do Instituto Oceonográfico da USP, Yara Schaeffer Novelli, e o biólogo e oceanógrafo Clemente Coelho Júnior, professor da Universidade de Pernambuco que está participando do trabalho de retirada de petróleo das praias. Ambos são fundadores do BiomaBrasil, instituto que dá capacitações formal e informal sobre conservação da biodiversidade.
Eles citam algumas dessas funções dos manguezais:
1. Berçário natural: de 70% a 80% das espécies de importância econômica passam pelo menos uma fase da vida nos sistemas de manguezal, o que faz com que os mangues sejam conhecidos como os "berçários naturais" da vida marinha.
Ali, os filhotes ficam em seus primeiros estágios de desenvolvimento, aproveitando o ambiente mais calmo, onde as raízes das árvores dão proteção e eles. Como é um ambiente cheio de nutrientes, os filhotes também têm alimentação ali. Depois, migram para o mar aberto.
2. Protege de processo natural de erosão: o mangue atenua o processo de erosão costeiro, protegendo todo litoral. A pressão e energia do mar que atingiriam a costa são dissipadas no mangue.
"O manguezal protege as costas das ações de ressacas, de tsunamis. Isso foi bem provado no tsunami de 2004, no dia 26 de dezembro em Sumatra [Indonésia]. Onde ainda havia manguezal, as comunidades que estavam por trás dessa barreira natural foram menos prejudicadas que aquelas comunidades que já haviam substituído os manguezais por resorts, plantações de arroz e outros", lembra Schaeffer Novelli.
Plantas no mangue em Rio Massangana, Suape (Pernambuco)Direito de imagemCLEMENTE COELHO JÚNIOR/DIVULGAÇÃO
Image captionOs manguezais também promovem um filtro biológico e retêm sedimentos de rios antes de seu desague no mar; na foto, rio Massangana, em Pernambuco
3. Filtro biológico: a floresta tem capacidade de "digerir" matéria orgânica e absorver muitos nutrientes. Se esgoto é lançado no rio, por exemplo, os mangues filtram isso, retendo as substâncias, absorvendo nutrientes e acumulando em sua biomassa.
4. Retenção de sedimentos: os rios correm arrastando solo e sedimentos, e quando chegam no estuário as partículas se acumulam nas raízes do mangue. Isso significa que o mangue cuida do leito do rio, assoreando, retendo os sedimentos antes de chegarem ao mar, garantindo uma água mais limpa na zona costeira.
5. Combate ao aquecimento global: dentro dos ecossistemas, as florestas de mangue são as que mais sequestram carbono da atmosfera. Isso significa que o mangue ajuda a combater o aquecimento global. "O manguezal tem importância nesse contexto moderno das mudanças climáticas por ser muito eficiente fixador e acumulador de carbono", diz Schaeffer Novelli.
6. Importância cultural e cênica: em muitas regiões as áreas de manguezal são tidas como sagradas. Além disso, sua beleza cênica é importante para o turismo.

'Como é que vai ficar a situação para quem vive só da pesca?'

A chegada do petróleo tem um impacto não apenas no ecossistema como também na renda de quem depende dele para sobreviver.
"Aqui no nosso estuário de Rio Formoso nós infelizmente já demos de cara com esse óleo. Tivemos sorte porque foi uma maré pequena. Mesmo assim, chegou a afetar os manguezais. Pouco, mas afetou", diz Francisco Assis, de 65 anos, pescador e secretário da colônia de pescadores de Rio Formoso, a 88km do Recife (PE).
Ele faz parte de um grupo de pescadores e voluntários que têm se empenhado para limpar os manguezais.
petróleo na Praia de TamandaréDireito de imagemCLEMENTE COELHO JÚNIOR/DIVULGAÇÃO
Image captionPetróleo visto na praia de Tamandaré, em Pernambuco; pescadores serão afetados pela redução de pescado e organismos contaminados
Ali, ele diz, há famílias inteiras que vivem da pesca. A colônia que representa tem cerca de 300 pescadores, mas ele estima que no município todo cerca de 2 mil pessoas trabalhem com a pesca, ganhando cerca de um salário mínimo (R$ 998) por mês, às vezes trabalhando com o corte de cana-de-açúcar de dia e a pesca à noite.
"Lá dentro é onde estão os moluscos, onde as marisqueiras... O sururu, o marisco, a ostra, aratu, caranguejo. Com a penetração desse óleo, vai comprometer todos esses seres vivos. Tudo isso é complicado para nós, pescadores. Sem contar a grande contaminação no peixe. Já encontramos peixe mortos no estuário. Isso dificulta para muito pescadores", lamenta. "Como é que vai ficar a situação para quem vive só da pesca?"
Ele faz uma pausa na entrevista à BBC News Brasil para conversar com outros pescadores que o procuravam. Ele conta o que disseram: "Uma pescadora comeu um peixe e depois passou mal. E depois outro pescador foi para a cidade vender os peixes. Chegando lá, eles estavam todos podres, sem condições de venda".
Esse impacto do petróleo nos manguezais é o mais próximo dos humanos. Mas por trás dele há todo um processo que afeta as plantas e os organismos, de forma imediata e depois de forma crônica.

Manguezal 'sufocado'

Ao chegar ao manguezal, o petróleo primeiro provoca um impacto agudo, diz Coelho Júnior à BBC News Brasil. Dependendo da maré, pode recobrir as raízes das plantas de mangue, o caule das árvores e os organismos que vivem ali.
Quando plantas de manguezais são atingidas por petróleo, elas sofrem o que se chama de "estresse". "As plantas são acostumadas a ficar sem água ou a ficar na água com sal. Mas elas não estão adaptadas a lidar com esse tipo de estresse do petróleo. Elas sofrem", diz Ferreira, o professor do Departamento de Genética da UFRJ. Ele é autor de um estudo publicado em 2018 que avaliou o que acontece geneticamente com as plantas expostas a petróleo.
Petróleo no rio Massangana, SuapeDireito de imagemCLEMENTE COELHO JÚNIOR/DIVULGAÇÃO
Image captionEspecialistas dizem que é praticamente 'impossível' retirar o petróleo do mangue
Ele diz que a reação das plantas observadas em sua pesquisa foi a seguinte: hipóxia, que é a falta de oxigênio e que impede que a planta respire, e estresse por calor, já que o petróleo impede a transpiração da planta para diminuir sua temperatura. Cobertas, as árvores também podem deixar de executar a fotossíntese e morrer.
Com a planta sob estresse, "o bioma passa a sofrer por conta de seu estado". Isso porque as plantas vão cessar sua atividade de crescimento e deixar de se reproduzir, sem produzir flores e sementes. Também não produzem novas raízes ou folhas, de onde animais se nutrem e se alimentam.
Segundo Ferreira, com a ausência dessa produção, os animais vão deixar a região, e em curto prazo será possível notar uma redução do pescado. Isso atrapalha toda a cadeia alimentar. Além disso, não haverá plantas novas para substituir as que morreram.
Depois, há um impacto crônico. Quando o petróleo começar a se decompor, vai liberar moléculas que podem ser nocivas. Os animais que entrarem em contato com as moléculas dissolvidas podem ter respostas de deformação de tecidos e órgãos, levando até à morte.
E, se não morrerem, isso pode ser transferido na cadeia alimentar para aves que os consomem, por exemplo, e inclusive para humanos, que também consomem esses animais.
Mapa dos Manguezais do Brasil produzido pelo IbamaDireito de imagemIBAMA
Image captionMapa dos Manguezais do Brasil produzido pelo Ibama mostra quantidade de ecossistema na costa brasileira
"Participei como perita judicial no caso de derramamento de óleo de 1983 no canal da Bertioga, que atingiu área muito grande de manguezal. Esse óleo impregnou no manguezal. As árvores perderam suas folhas, galhos, troncos", relata Schaeffer Novelli, da USP. "Matou todo o bosque, e esse óleo até hoje continua aprisionado no substrato daquele manguezal."
Todos os pesquisadores concordam que é muito difícil tirar o petróleo dos manguezais. Não existe protocolo no mundo sobre como fazer isso. É muito difícil tirar o petróleo incrustado nas raízes e troncos, e não dá para salvar os animais expostos, como os caranguejos, por exemplo, como é possível com tartarugas.
"Na praia é relativamente fácil para limpar, até. Quando chega no mangue, o petróleo cobre as raízes das plantas, e as plantas são especiais. Sufoca o manguezal. Não tem como tirar isso de maneira simples como se faz na praia. É dramático", diz Alexandre Soares Rosado, professor titular da UFRJ, do Instituto de Microbiologia. "Eu diria que é impossível", afirma Schaeffer Novelli, da USP.

E agora?

Por isso, a palavra que todos os especialistas repetem é "prevenir".
O Estado de Pernambuco colocou barreiras na desembocadura de oito rios. Em Sergipe, o governo federal só colocou barreiras depois de uma decisão da Justiça provocada por um pedido do Ministério Público. O governo argumentou que as barreiras não funcionariam.
"Nos casos em que o óleo derramado é de origem conhecida e sua dispersão é prevista, a instalação de barreiras em águas calmas é tecnicamente recomendável para proteger pontos sensíveis, como manguezais. Contudo, se os manguezais já estiverem oleados, a medida poderá provocar o efeito inverso e impedir a depuração natural do ambiente", disse o Ibama, em nota.
Clemente diz que não funcionam necessariamente 100%, mas já ajudam — ele viu o petróleo sendo retido em um barreira. "A questão agora não é se vai funcionar ou não. Temos que testar tudo o que pudermos. Não sabemos ainda quanto de petróleo vai chegar, então temos que recorrer a todas as coisas possíveis e imagináveis", diz ele, que também ressalta ser importante conter "as grandes manchas ainda em alto-mar".
Para Schaeffer Novelli, depois da contaminação será preciso fazer um monitoramento para entender o quão grave foi a contaminação. E também "um rescaldo, como depois de um grande incêndio: ver quanto custou, qual foi o prejuízo que os pescadores e marisqueiros tiveram, que os que têm jangadas e fazem passeios na zona costeira tiveram", entre outros.
Praia de TamandaréDireito de imagemCLEMENTE COELHO JÚNIOR
Image captionUma possibilidade para a retirada de petróleo dos manguezais a longo prazo é a biorremediação, mas não há garantia de que funcionará
Rosado, do Instituto de Microbiologia da UFRJ, já testou uma solução que normalmente fica restrita a laboratórios.
Em 2010, ele e outros pesquisadores fizeram um teste na Baía de Todos-os-Santos, que estava contaminada com petróleo. O que fizeram se chama biorremediação. O mangue tem bactérias já adaptadas para degradar hidrocarbonetos — e o petróleo é formado por hidrocarbonetos. Então, os cientistas usaram um coquetel de bactérias do próprio manguezal para degradar diferentes partes do óleo.
Como os manguezais não estão preparados para degradar tantos hidrocarbonetos, cientistas entram como médicos, fazem um diagnóstico e balanceiam a "dieta" do manguezal.
O experimento deu certo, mas Rosado diz que não existe fórmula mágica e será preciso avaliar cada contaminação em cada manguezal, já que há diferentes tipos de contaminação e diferentes tipos de manguezais. Não há garantias de que dê certo. Ele também usou a biorremediação na estação brasileira da Antártida, que pegou fogo em 2012 e deixou o solo contaminado com diesel.
Schaeffer Novelli diz esperar que os efeitos dessa contaminação de petróleo nos manguezais no nordeste do Brasil não sejam "tão dramáticos". "O óleo que está chegando é muito denso. Já perdeu grande parte de seus subprodutos químicos", diz ela. Então, o maior efeito desse petróleo pode ser "físico, de recobrir as estruturas".
"Esse óleo não deve penetrar tanto quanto um óleo mais novo, mais recente, mais fino, com componentes mais aromáticos como o de 1983 [do canal de Bertioga, onde ela trabalhou como perita]. Eu quero demais acreditar que o efeito seja mais físico, de recobrimento, ficando mais nas franjas, e que seus efeitos não sejam tão dramáticos."
Professor Edgar Bom Jardim - PE

quinta-feira, 24 de outubro de 2019

Ciência e Tecnologia:A pré-história da internet – e a palavra bíblica que deu seu pontapé inicial


El Pentágono en los años 60.Direito de imagemGETTY IMAGES
Image captionO Pentágono nos anos 60; a partir dali, nasceu a rede precursora da internet
Na década de 1960, Bob Taylor, um engenheiro que já havia estudado psicologia, trabalhava no Pentágono, sede do Departamento de Defesa dos EUA na capital, Washington DC.
Ele ficava no terceiro andar, perto do secretário de Defesa e do chefe de uma agência fundada em 1958 como parte desse setor: a Agência de Projetos de Pesquisa Avançada (Darpa, na sigla em inglês).
Estava agência tinha entrado inicialmente na corrida espacial, mas a Nasa, criada alguns meses depois, a eclipsou.
Tudo parecia indicar que a Darpa não tinha futuro, mas ela se reergueu e teve um papel fundamental em tecnologias transformadoras.
Bob TaylorDireito de imagemGARDNER CAMPBELL/WIKIPEDIA
Image captionTaylor estudou psicologia na universidade antes de trabalhar como engenheiro aeronáutico, passar pela Nasa e chegar à Darpa

Três terminais espalhados pelos EUA

A ressurreição começou em 1966, quando Taylor e a Darpa plantaram a semente de algo grande
Ao lado do escritório do engenheiro, havia uma sala de terminais, um pequeno espaço no qual havia três terminais de acesso remoto com três teclados diferentes, um do lado do outro.
Cada terminal permitia que Taylor emitisse comandos para um computador mainframe (de grande porte, responsável por processar um volume grande de informações) distante.
Um deles estava no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), a mais de 700 km de distância dali.
Outros dois estavam do outro lado do país, na outra costa: um na Universidade da Califórnia e o outro no Comando Aéreo Estratégico de Santa Mônica (também na Califórnia), chamado AN / FSQ32XD1A — ou Q32, para abreviar.
Cada um desses enormes computadores exigia um procedimento de login e uma linguagem de programação diferente.
Era, como definiram os historiadores Katie Hafner e Matthew Lyon, como "ter uma sala lotada de várias televisões, cada uma dedicada a um canal diferente".
Ainda que Taylor pudesse acessar esses computadores remotamente por meio de seus terminais, eles não podiam se conectar facilmente entre si ou com outros computadores financiados pela Darpa nos Estados Unidos.
Era quase impossível compartilhar dados, fazer conjuntamente um cálculo complexo ou até enviar uma mensagem entre esses computadores.

'Comece, você terá US$ 1 milhão a mais'

O próximo passo era óbvio, diz Taylor.
"Tínhamos de encontrar uma maneira de conectar todas essas máquinas diferentes", propôs Taylor.
Taylor falou com o então chefe da Darpa, Charles Herzfeld, sobre seu plano.
"Já sabemos como fazer isso", assegurou ele, embora não estivesse claro se alguém realmente sabia como conectar uma rede nacional de computadores mainframe.
"Ótima ideia!", exclamou Herzfeld. "Comece. Você terá US$ 1 milhão a mais em seu orçamento."
A reunião levou 20 minutos.

Desafio formidável

Ovo com ilustração mostrando rede representando a internet dentroDireito de imagemGETTY IMAGES
Image captionHavia algo nascendo, só talvez não se sabia o quão grandioso
Larry Roberts, do MIT, já havia conseguido que um de seus computadores mainframes compartilhasse dados com o Q-32: dois supercomputadores conversando por telefone.
Chegar a isso foi um processo lento e desafiador.
Mas Taylor, Roberts e seus colegas visionários tinham algo muito mais ambicioso em mente: uma rede à qual qualquer computador pudesse se conectar.
Como Roberts disse na época, "quase todos os elementos concebíveis de hardwaree softwarede computadores estarão na rede".
Foi uma grande oportunidade, mas também um desafio enorme.

Motor de Ferrari para aquecer... um bife?

Os computadores eram raros, caros e frágeis para os padrões de hoje.
Geralmente, eram máquinas programadas manualmente pelos cientistas que as usavam.
Quem convenceria aqueles poucos privilegiados a deixar de lado seus projetos para escrever um código a serviço da troca de dados com outras pessoas?
Era como pedir ao dono de uma Ferrari que desligasse o motor para aquecer um bife que o cachorro de outra pessoa iria comer.
Felizmente, outro pioneiro da computação, o físico Wesley Clark, surgiu com uma solução.
Ilustração mostra foto de Larry Roberts e desenhos feitos por ele em 1969, projetando a Arpanet
Image captionDesenhos feitos por Larry Roberts em 1969 projetando a Arpanet

Novas oportunidades com os minicomputadores

Clark vinha acompanhando o surgimento de uma nova geração de computadores.
O minicomputador era modesto e econômico em comparação com os mainframes do tamanho de uma sala instalados nas universidades dos EUA.
Clark sugeriu a instalação de um minicomputador em cada ponto desta nova rede.
mainframe local, o enorme Q-32, por exemplo, se comunicaria com um minicomputador perto dele.
Foto do PDP-8, o primeiro minicomputador, fabricado pela DECDireito de imagemGETTY IMAGES
Image captionO PDP-8, o primeiro minicomputador, fabricado pela DEC
O minicomputador ficaria encarregado de se comunicar com todos os outros minicomputadores da rede. Ele seria responsável também pelo novo e interessante desafio de transportar pacotes de dados de forma confiável para que chegassem a seu destino.
Todos os minicomputadores funcionariam da mesma maneira; portanto, se você escrevesse um programa de rede para um, ele funcionaria em todos.
Adam Smith, o pai da economia, teria ficado orgulhoso da maneira como Clark estava se aproveitando da especialização e divisão do trabalho.
Os mainframes existentes continuariam a fazer o que já faziam bem. Já os novos minicomputadores seriam otimizados para gerenciar a rede de maneira confiável, sem falhas.

À prova de estudantes

A beleza da ideia de Clark era que cada unidade central local tinha que simplesmente se comunicar com a pequena caixa preta ao lado: o minicomputador local.
Essa era a única coisa necessária para conectar-se a toda a rede.
As "pequenas caixas pretas" eram na verdade grandes e cinza e foram chamadas de IMP (Interface Message Processors).
Os IMPs eram versões personalizadas dos minicomputadores Honeywell, que tinham tamanho de geladeiras e pesavam mais de 400 kg.
Outro superlativo: custavam US$ 80 mil cada, cerca de US$ 500 mil em valores de hoje (cerca de R$ 2 milhões).
Os projetistas da rede queriam processadores de mensagens que trabalhassem em silêncio, com supervisão mínima e que resistissem à ação de calor ou frio, vibrações ou oscilações, mofo, ratos e, o pior, de estudantes curiosos armados com chaves de fenda.
Os computadores Honeywell, na época usados pelo setor militar, pareciam um ponto de partida ideal, embora a blindagem das máquinas fosse, talvez, um pouco excessiva.

'Lo!'

Um mapa com pontos, destinos e conexões da Arpanet inicialDireito de imagemGETTY IMAGES
Image captionUm mapa com pontos, destinos e conexões da Arpanet inicial
O protótipo, IMP 0, estava pronto no início de 1969. Mas não funcionou.
Um jovem engenheiro tentou consertá-lo por meses, desenvolvendo e enrolando manualmente fios em torno de palitos de metal separados por uma distância de aproximadamente 1 milímetro.
Somente em outubro daquele ano, é que o IMP 1 e o IMP 2 estavam prontos para uso na Universidade da Califórnia e no Stanford Research Institute, a mais de 500 km de distância um do outro.
Em 29 de outubro de 1969, dois computadores centrais (mainframe) trocaram sua primeira palavra por meio de seus IMPs complementares.
A palavra foi: "Lo", uma interjeição de supresa que significa algo como "veja!" e que aparece em traduções para o inglês da Bíblia.
A verdade é que a intenção inicial do operador era escrever "Login", mas a rede caiu após as duas letras surgirem.
Um começo difícil, mas a Arpanet estava ligada.
Outras redes se seguiram, e o projeto da década seguinte foi interconectá-las em uma rede de redes, ou simplesmente a "internet" — "net" em inglês quer dizer "rede".
Finalmente, os IMPs foram substituídos por dispositivos mais modernos chamados roteadores. No final dos anos 80, aqueles já eram peças de museu.
Mas o mundo que Roberts havia previsto, no qual "quase todos os elementos concebíveis de hardware e software de computadores estarão na rede" estava se tornando realidade.
E os IMPs abriram e mostraram o caminho.
E a Darpa? Graças ao sucesso desta missão, da qualidade de seus funcionários e à confiança em seus projetos, a agência continua hoje tendo papel fundamental no desenvolvimento tecnológico, como na criação do sistema de posicionamento global, o GPS e, mais recentemente, nos carros sem motorista.
Tim Harford escreve a coluna "Economista clandestino" no jornal britânico Financial Times. O Serviço Mundial da BBC transmite a serie 50 Things That Made the Modern Economy. Você pode encontrar mais informações sobre as fontes do programa escutar todos os episodios, ou ainda al seguir o podcast da serie (em inglês).
Professor Edgar Bom Jardim - PE

Ciência e tecnologia:O que é a 'supremacia quântica' que o Google diz ter alcançado


Sycamore processorDireito de imagemGOOGLE
Image captionO processador Sycamore executou em 200 segundos uma tarefa que, segundo o Google, os computadores convencionais levariam 10 mil anos para concluir
O Google anunciou na quarta-feira (23/10) que um computador quântico desenvolvido pela companhia foi o primeiro a alcançar um feito chamado "supremacia quântica", ao superar o desempenho de supercomputadores clássicos.
De acordo com a gigante da tecnologia, seu processador quântico, chamado Sycamore, foi capaz de executar em 200 segundos uma tarefa específica que os melhores supercomputadores do mundo levariam 10 mil anos para concluir.
A IBM, que também vem desenvolvendo computadores quânticos, questionou, no entanto, alguns dados apresentados pelo Google.
Mas o fato é que físicos, engenheiros e cientistas da computação em todo o mundo vêm investindo há décadas nessa tecnologia, uma vez que os computadores quânticos prometem ser muito mais velozes.
Nos computadores clássicos, a unidade de informação é chamada "bit" e pode ter um valor de 1 ou 0. Mas seu equivalente em um sistema quântico, o qubit (bit quântico), pode assumir o valor de 1 e 0 ao mesmo tempo.
Isso abre caminho para que vários cálculos sejam realizados simultaneamente.
A expectativa é de que os computadores quânticos possam ajudar no futuro, por exemplo, a acelerar a cura de doenças, a descoberta de novos medicamentos e a desvendar os mais seguros sistemas criptografados.
Computador quântico do GoogleDireito de imagemGOOGLE
Image captionGoogle e concorrentes trabalham há anos no desenvolvimento de um computador quântico
Os cientistas têm tido dificuldade, no entanto, para desenvolver dispositivos eficientes com qubits suficientes para serem capazes de competir com os computadores convencionais.
O Sycamore tem 54 qubits, mas como um deles não funcionou, o dispositivo usou 53.

Questão de tempo

Segundo artigo publicado pela revista científica Nature, John Martinis, do Google, e seus colegas apresentaram ao processador um problema em que ele teve de verificar padrões em um conjunto de números distribuídos aleatoriamente.
O Sycamore conseguiu concluir a tarefa em 3 minutos e 20 segundos. Em contrapartida, os pesquisadores afirmam que o Summit, o supercomputador mais poderoso do mundo, levaria 10 mil anos para resolver a questão.
Mulher em frente a computadorDireito de imagemGETTY IMAGES
Image captionA IBM diz que a operação pode ser realizada em 2,5 dias por computadores convencionais
A IBM colocou em xeque, no entanto, esses dados.
"Argumentamos que uma simulação ideal da mesma tarefa poderia ser realizada em um sistema clássico em 2,5 dias e com uma fidelidade muito maior", escreveram Edwin Pednault, John Gunnels e Jay Gambetta, pesquisadores da IBM, no blog da companhia.
"Essa é, na verdade, uma estimativa conservadora para o cenário mais pessimista, e esperamos que, com melhorias adicionais, o custo base da simulação possa ser reduzido ainda mais."
A empresa também questionou a definição de "supremacia quântica" apresentada pelo Google, sugerindo que pode gerar confusão.
"Primeiro porque, em sua definição mais estrita, o objetivo não foi atingido. Mas, sobretudo, porque os computadores quânticos nunca vão reinar 'supremos' sobre os computadores clássicos, eles vão trabalhar juntos, já que cada um tem seus pontos fortes únicos", concluíram.
Jonathan Oppenheim, professor da University College London (UCL), no Reino Unido, avalia, por sua vez, que ainda estamos muito longe de um computador quântico real.
"É um dispositivo impressionante e, sem dúvida, um marco impressionante. Ainda estamos a décadas de um computador quântico real capaz de resolver problemas em que estamos interessados", afirmou Oppenheim, que não participou da pesquisa.
"É um teste interessante, mostra que eles têm bastante controle sobre o dispositivo e baixas taxas de erro. Mas não chega nem perto do tipo de precisão que precisaríamos para ter um computador quântico em escala real."
Professor Edgar Bom Jardim - PE