terça-feira, 1 de outubro de 2019

A batalha entre católicos e evangélicos pelo domínio dos Conselhos Tutelares




Jaziel dos Santos FerreiraDireito de imagemDIVULGAÇÃO
Image captionÀ direita, Jaziel dos Santos Ferreira, que concorre como Irmão Jaziel ao cargo de conselheiro tutelar em Goiânia e diz ser apoiado por mais de 60 líderes evangélicos de sua região
Interessadas em ocupar um espaço estratégico na arena política sobre crianças e adolescentes, dezenas de igrejas tentarão eleger representantes nas eleições para os Conselhos Tutelares, que ocorrerão em quase todos os municípios brasileiros, em 6 de outubro.
Entre os temas que mobilizam as entidades está o controle da abordagem de questões de gênero e sexualidade nas escolas.
A disputa opõe católicos e evangélicos, e espelha o crescimento de igrejas protestantes no Brasil. Uma busca feita no Facebook revela dezenas de candidatos, de todas as regiões do Brasil, que se apresentam como pastores evangélicos — a maioria de igrejas em bairros periféricos. Alguns citam passagens bíblicas no material de campanha.
As eleições são abertas a todos os eleitores. Como o voto é facultativo, candidatos apoiados por organizações capazes de engajar eleitores, como igrejas, saem na frente.
A ofensiva preocupa entidades de defesa de direitos de crianças e adolescentes, que temem a transformação dos órgãos em instâncias religiosas e em trampolins políticos (leia mais abaixo).

'Compromisso com Deus'

Uma das denominações evangélicas envolvidas nas eleições para os conselhos é a Igreja Universal do Reino de Deus. Em 15 de setembro, a igreja publicou em seu site um artigo intitulado "Conselho Tutelar: é nosso dever participar".
"Talvez nunca na história da humanidade crianças e adolescentes tenham precisado tanto de quem defenda seus direitos, que dia a dia são desrespeitados pela mídia que expõe material inapropriado, pelos maiores de idade que os agridem de alguma forma e até pelas próprias famílias que não suprem suas necessidades básicas", diz a Universal.
O texto exorta os fiéis a votar em candidatos "que, acima de tudo, tenham compromisso com Deus".
Procurada pela BBC News Brasil, a Universal não quis responder a perguntas sobre a eleição e questionou se a reportagem também citaria o papel da Igreja Católica no pleito, enviando em anexo um texto do jornal da Arquidiocese de São Paulo.
No texto, publicado em agosto, a coordenadora arquidiocesana da Pastoral do Menor em São Paulo, Sueli Camargo, conclama os católicos a participarem da eleição para frear o avanço evangélico nos conselhos.
"Quando nos ausentamos, deixamos espaço aberto para outras denominações religiosas, como os evangélicos, que estão presentes não só nos conselhos, mas em diversos campos da política e nem sempre estão preparados para ocupar esses cargos", afirmou Camargo ao jornal.
Montagem
Image captionBusca no Facebook revela dezenas de candidatos a conselheiro tutelar que se apresentam como pastores ou usam passagens bíblicas no material de campanha
Questionada pela BBC sobre a declaração, Camargo diz não se opor à presença de qualquer evangélico nos conselhos. "O problema é quando essa atuação faz o conselho perder sua essência, que é a defesa da criança", afirma. Segundo ela, muitos candidatos evangélicos encaram os conselhos como "trampolim político" para outros cargos eletivos.
Quanto à abordagem de temas sexuais e de gênero nas escolas, no entanto, Camargo afirma que candidatos católicos têm visões parecidas com as dos evangélicos. "Também somos contra essa ideologia que é pregada", diz ela, sem detalhar a que ideologia se refere.
Camargo diz que a Arquidiocese de São Paulo tem incentivado a participação de leigos católicos na eleição, formando candidatos e estimulando o voto dos fiéis. Segundo ela, porém, a Arquidiocese não pede votos para candidatos nem indica padres para os cargos.

O que é o Conselho Tutelar

Criado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 1990, o Conselho Tutelar é um dos principais órgãos de democracia participativa no Brasil.
Entre suas atribuições está notificar o Ministério Público sobre violações de direitos de crianças e adolescentes, solicitar a troca de guarda familiar e fiscalizar as políticas públicas para menores. Em cada município brasileiro há pelo menos um conselho, composto de cinco membros eleitos.
São Paulo, maior cidade do país, abriga 52 conselhos tutelares, com 260 integrantes ao todo.
O mandato dos conselheiros dura quatro anos, e eles recebem salários definidos pelas Câmaras de Vereadores (cerca de R$ 1,5 mil por mês em média, segundo dados o — hoje extinto — Ministério do Trabalho e Emprego).
Alguns municípios submetem os candidatos a uma prova e exigem experiência no atendimento a crianças e adolescentes. Em muitos outros, porém, basta que os candidatos morem no município, tenham mais de 21 anos e "reconhecida idoneidade moral".
Em vários aspectos, a campanha para conselheiro tutelar se assemelha a uma disputa por cargos legislativos. Candidatos criam páginas em redes sociais para pedir votos, divulgar atividades de campanha e exibir vídeos com apoiadores ilustres.
Muitos que se elegem como conselheiros posteriormente concorrem a vereadores, e é comum que vereadores recompensem cabos eleitorais apoiando-os na disputa para conselheiros. As práticas não são ilegais.
Especialistas em direitos de crianças e adolescentes dizem que conselheiros movidos pela fé ou por interesses políticos podem causar mais danos por omissões do que por ações de sua autoria. Isso porque várias de suas decisões precisam do aval do Ministério Público e da Justiça para serem concretizadas, o que limita o poder dos conselheiros.
Por outro lado, caso deixem de agir em casos que avaliem contrariar suas crenças religiosas — como o de crianças vítimas de homofobia nas escolas —, eles podem perpetuar cenários de violação de direitos. Nessas situações, caso se comprove que descumpriram as funções, os conselheiros podem sofrer sanções e até perder o cargo, embora isso raramente ocorra.
Pastor ValnezDireito de imagemARQUIVO PESSOAL
Image captionPastor Valnez (à dir.) concorre ao posto de conselheiro tutelar em Pacatuba, na Grande Fortaleza
Não há dados sobre presença de religiosos em conselhos tutelares hoje. Entidades que militam em prol de crianças e adolescentes dizem que, embora organizações religiosas tenham sempre participado das eleições, o fenômeno vem se intensificando à medida que igrejas evangélicas expandem sua atuação política e tentam ocupar espaços em vários órgãos públicos.

Experiência como pastor

Valnez de Freitas concorre com o nome Pastor Valnez a uma vaga de conselheiro no município de Pacatuba, na Grande Fortaleza. Formado em Teologia e servidor na área de saúde, ele atua como pastor há 11 anos na Assembleia de Deus Ministério de Sião de Pacatuba.
"Me sinto habilitado para atuar como conselheiro tendo em vista as demandas que surgem dentro da comunidade evangélica em relação a crianças, como denúncias, abusos, violência e evasão escolar", diz o pastor à BBC News Brasil.
Valnez afirma que uma de suas funções será fiscalizar o que as escolas de Pacatuba ensinam sobre sexualidade. "Nós, do segmento evangélico, entendemos que as escolas não devem impor assuntos como ideologia de gênero e sexualidade. Esses assuntos cabem aos pais e à família", ele diz.
O combate à chamada "ideologia de gênero" é uma das principais bandeiras da bancada religiosa no Congresso. O grupo avalia que a abordagem de temas sexuais e de gênero entre crianças pode antecipar a vida sexual dos alunos e estimulá-los a adotar comportamentos que, segundo a bancada, agridem valores cristãos, como a homossexualidade e a transexualidade.
Já defensores da inclusão dos temas os consideram essenciais para conscientizar alunos sobre questões como ISTs (infecções sexualmente transmissíveis) e a gravidez precoce, além de combater a homofobia e a transfobia entre jovens.
Conselheiros que reprovem o conteúdo das aulas podem pedir ao Ministério Público que verifique se a escola está descumprindo o ECA por oferecer conteúdo impróprio. Se houver concordância, a Justiça pode ser acionada para decidir sobre o caso.
O ECA não especifica que tipos de conteúdo se enquadram na categoria de impróprios, mas há o entendimento de que materiais pornográficos ou que promovam a violência são inadequados para crianças e adolescentes.
Juristas ouvidos pela BBC afirmam que as restrições não se aplicam a beijos e demonstrações de afeto entre homossexuais, e que o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou a homofobia um crime equivalente ao racismo em junho.
Parada LGBT no RioDireito de imagemAGÊNCIA BRASIL
Image captionDefensores da abordagem de temas relacionados à diversidade sexual e de gênero nas escolas afirmam que postura busca combater homofobia e transfobia entre os jovens

Diversidade sexual em Juazeiro

Em artigo de 2017 na Revista de Gênero, Sexualidade e Direito, o advogado Sérgio Pessoa Ferro, mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba, analisou como conselheiros tutelares de Juazeiro (BA) trataram casos relacionados à diversidade sexual e de gênero em 2010 e 2011.
Ferro diz que muitas famílias acionaram o conselho para reprimir condutas de filhos que destoavam da "moralidade popular cristã". Segundo ele, houve casos em que os pais procuraram conselheiros "para 'curar' os(as) filhos(as) da homossexualidade, do comportamento afeminado ou masculinizado".
O advogado diz que, nessas situações, os conselheiros deveriam identificar que as crianças estavam sendo discriminadas pelos pais e mediar os conflitos familiares. Mas ele afirma que temas que envolvam gênero e sexualidade são vistos como um tabu pelos conselheiros, o que os impediu de encontrar soluções para os casos.
Segundo Ferro, a formação "explicitamente preconceituosa de alguns (conselheiros)" é empecilho "à adoção de uma política de combate às situações de violência por motivo de LGBTfobia".

Apresentação de 'drag queen'

Em 2017, a apresentação da drag queen Femmenino em um colégio de Juiz de Fora (MG) motivou protestos do conselheiro tutelar Abraão Fernandes, que pediu ao Ministério Público que investigasse o caso. Ele citou um vídeo, gravado dias após a apresentação na escola, em que Femmenino dizia buscar "destruir a família tradicional".
Segundo o conselheiro, no vídeo, a drag queen deixou "transparecer a questão da ideologia de gênero ao dizer que não existe brinquedo de menino e de menina", além de ter ofendido "crianças que são parte de uma família".
O caso teve uma reviravolta um ano depois, quando o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente pediu o afastamento do conselheiro por descumprir normas do cargo e disseminar conteúdo "racista, homofóbico, preconceituoso, machista e político-ideológico" em suas redes sociais.
O Ministério Público encampou a ação. Fernandes foi destituído do cargo e condenado por improbidade administrativa. Em artigos, ele agradeceu "igrejas evangélicas e católicas" que o apoiaram no processo e disse ter sido condenado por "defender crianças do assédio psicológico e da ideologia de gênero".
Catedral da SéDireito de imagemARQUIDIOCESE DE SP
Image captionArquidiocese de São Paulo tem estimulado a participação de católicos nas eleições para conselheiro tutelar

Expulsão de conselheiros

Para Glícia Salmeron, presidente da Comissão Especial da Criança e do Adolescente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), conselheiros que usem os cargos como trampolim político devem ser afastados pela Justiça — assim como conselheiros que, por motivos religiosos, deixem de agir em casos de homofobia ou transfobia contra jovens.
"A gente percebe uma dificuldade de compreensão de que o conselheiro precisa se desvincular de sua função religiosa pra assumir a função de conselheiro tutelar", afirma. Ela diz que igrejas podem indicar candidatos ao conselho, "mas não para ensinar religião ou doutrinar as crianças".
Salmeron menciona outro tipo de omissão ligado a questões religiosas com que já deparou: conselheiros que se recusam a agir para proteger crianças discriminadas por integrar religiões afrobrasileiras. "Não me lembro de nenhuma denúncia feita por conselheiros tutelares com relação à violação de direitos de crianças de comunidades de terreiro", afirma.

'Irmão Jaziel - Deus é fiel'

Evangélico, Jaziel dos Santos Ferreira é um dos três aspirantes ao Conselho Tutelar da região oeste de Goiânia a adotar termos religiosos na ficha de candidato. Nas cédulas, seu nome aparecerá como Irmão Jaziel — Deus é fiel (os outros candidatos a usarem nomenclatura religiosa são Pastor Julio e Pastor José Roberto).
Em sua página do Facebook, Ferreira divulga vídeos em que pastores de Goiânia endossam sua candidatura. Segundo ele, mais de 60 líderes de igrejas evangélicas estão engajados em sua campanha. Ferreira não é pastor, mas diz que sua família fundou há 34 anos a Assembleia de Deus Faiçalville Ministério Vila Nova, o que lhe deu credibilidade junto a muitos líderes religiosos de Goiânia.
Bancada evangélica e BolsonaroDireito de imagemAGÊNCIA BRASIL
Image captionMembros da bancada evangélica do Congresso se reúnem com o presidente Jair Bolsonaro e ministros em Brasília
Ele diz ter trabalhado por 20 anos numa ONG que promovia oficinas de informática entre crianças pobres. Como conselheiro, diz que pretende estimular atividades esportivas em comunidades carentes. "Muitos craques saem do campo de terra", afirma.
Ferreira é crítico à abordagem de temas sobre diversidade sexual nas escolas, por avaliar que os conteúdos podem estimular jovens a antecipar sua vida sexual e a mudar de gênero. "A criança está em formação, não se pode incentivá-la", diz.
Mas ele afirma que, se eleito conselheiro, não fechará os olhos para casos de homofobia contra jovens. Negro, Ferreira diz ter sofrido com apelidos racistas na infância, experiência que o sensibilizou para outros tipos de discriminação. "Não é porque um menino é, entre aspas, mais afeminado que ele pode sofrer bullying. Não concordo, temos de respeitar."
Ferreira tampouco concorda com outras pautas caras a setores da direita brasileira, como a do Movimento Escola Sem Partido. Acusado por críticos de promover a censura, o movimento defende controlar o conteúdo político das aulas para impedir que os alunos sejam "doutrinados ideologicamente".

Para Ferreira, porém, não cabe à escola restringir o debate político. "Se Deus que é Deus nos deu o livre arbítrio, na política é da mesma forma: a pessoa vai para onde achar que é melhor", afirma.
Professor Edgar Bom Jardim - PE

Gilmar Mendes acata pedido de Flávio Bolsonaro e suspende caso Queiroz



As investigações estão relacionadas às suspeitas de movimentação atípica de R$ 1,2 milhão nas contas de ex-assessor de Flávio Bolsonaro

O ministro Gilmar Mendes, do STF, atendeu a um pedido feito pelo senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ) e suspendeu, nesta segunda-feira 30, as investigações sobre o parlamentar quando ele ainda era deputado estadual pelo Rio de Janeiro.
As investigações estão relacionadas às suspeitas de movimentação atípica de 1,2 milhão de reais nas contas de Fabrício Queiroz, ex-assessor do filho 01 do presidente Jair Bolsonaro.
Em julho deste ano, o presidente da Corte, ministro Dias Toffoli deu uma decisão suspendendo as investigações contra Flávio até que o caso fosse julgado pela plenário do STF. Isso porque houve compartilhamento sem autorização judicial de dados sigilosos detalhados de órgãos de inteligência, como o extinto Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) – hoje Unidade de Inteligência Financeira (UIF).
No início de setembro, a defesa de Flávio foi até a Corte apresentar uma reclamação dizendo que, mesmo com a suspensão do caso determinada por Toffoli, as investigações contra ele e seu ex-assessor continuavam sendo feitas por autoridades do Ministério Público do Rio de Janeiro.
Assim, Gilmar Mendes determinou a suspensão das investigações pelo Ministério Público do Rio e da tramitação no Tribunal de Justiça do Rio (TJ-RJ) de recursos relacionados ao caso, até o julgamento do tema pelo Supremo.
“Diante da gravidade dos fatos (…) determino que seja oficiado ao Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), para a apuração da responsabilidade funcional dos membros do Ministério Público do Rio de Janeiro”, escreveu ainda o ministro em sua decisão.
O julgamento do tema pelo tribunal está marcado para o dia 21 de novembro.
Carta Capital
Professor Edgar Bom Jardim - PE

ONU:Discursos incendiários e tensão global



Se a 74ª Assembleia Geral das Nações Unidas, que terminou na segunda 30 em Nova York, é capaz de oferecer uma fotografia sobre os temas que dominam o debate internacional, certamente a Amazônia aparece em foco. E a agressiva estreia do presidente Jair Bolsonaro (PSL), na terça-feira 24, não está sozinha nesta imagem. O temperamento bélico do presidente brasileiro pode ter sido uma nota fora do tom para a abertura de discussões de alto nível, mas discursos de líderes na tribuna da ONU exibem um retrato com cores semelhantes: o mundo está em conflito.
A começar por nossos vizinhos da América. Nos discursos dos países da região amazônica, a assembleia assistiu a um embate entre duas formas de lidar com a temática ambiental. A primeira, isolacionista, de Jair Bolsonaro, e a segunda, multilateralista, exposta pelo presidente da Bolívia, Evo Morales.
Com Bolsonaro, a estratégia foi reivindicar a soberania nacional, atacar os países europeus que repudiaram a conduta ambiental do Palácio do Planalto e reforçar sua aliança com o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump.
“Problemas, qualquer país os tem. Contudo, os ataques sensacionalistas que sofremos por grande parte da mídia internacional devido aos focos de incêndio na Amazônia despertaram nosso sentimento patriótico”, argumentou Bolsonaro. “É uma falácia dizer que a Amazônia é patrimônio da humanidade e um equívoco, como atestam os cientistas, afirmar que a Amazônia, a nossa floresta, é o pulmão do mundo. Valendo-se dessas falácias, um ou outro país, em vez de ajudar, embarcou nas mentiras da mídia e se portou de forma desrespeitosa e com espírito colonialista.”
Morales preferiu relacionar as mudanças climáticas a duras críticas às desigualdades sociais do capitalismo. Defensor do multilateralismo, ou seja, do trabalho em conjunto sobre a causa, o presidente boliviano enumerou medidas de redução da extrema pobreza e de garantia de direitos humanos como fundamentais para a atuação integrada pelo meio ambiente.
“As consequências das mudanças climáticas condenarão milhões de pessoas à pobreza, à fome, a não contar com água potável, a perder suas casas para o deslocamento forçado, a mais crises de refugiados e a novos conflitos armados”, disse Morales. “Agradecemos à comunidade internacional por sua cooperação oportuna em nossa luta contra o fogo, assim como o compromisso para participar das ações pós-incêndio.”
A comparação entre os dois discursos faz parte da análise do doutor em Ciências Sociais e professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Jaime Coelho. Para o pesquisador, o discurso de Bolsonaro expôs uma noção nebulosa sobre soberania e apresentou uma retórica utilizada no século 19 contra os países europeus.
“O Brasil faz um discurso que utiliza a palavra de ordem ‘A Amazônia é nossa’, mas a Amazônia é nossa para ser explorada de uma forma conjunta com a grande potência dos Estados Unidos. Ele tenta reproduzir uma dicotomia do século 19, em que a Europa é vista como uma região colonialista contra as Américas, e os Estados Unidos são a grande potência que tem um destino manifesto de defender a soberania da região. Não é uma defesa da soberania brasileira absoluta, mas sim uma soberania compartilhada com o poder dos Estados Unidos”, examina.
Enquanto isso, Evo Morales teve tom combativo, na visão do professor. “É interessante observar o contraste com o Evo Morales, porque ele diz que as mudanças climáticas são uma questão global que afeta a todos e exige uma solução cooperativa global. Mas essa solução passa por uma mudança na forma de organização da sociedade. Ele aproveita a crítica própria do ambientalismo para criticar o capitalismo”, analisa o professor.
Venezuela e Cuba, como era de se esperar, foram com pedras na mão contra o discurso de Bolsonaro sobre a “ditadura socialista” nesses países. Em discurso na sexta-feira 27, a vice-presidente venezuelana, Delcy Rodríguez, atribuiu a crise ambiental ao “devastador modelo capitalista” e responsabilizou Bolsonaro, mas também acenou para a criação de mecanismos multilaterais de cooperação.
“Destacamos a agenda 2030 como um compromisso conjunto desta assembleia geral. Nesta casa, estimulamos também mecanismos comuns de cooperação para abordar a impostergável preservação do meio ambiente, impactada pelo devastador modelo capitalista. Como país amazônico, alçamos nossa voz para rechaçar a bárbara mercantilização da nossa Amazônia, liderada pelo presidente do Brasil, Jair Bolsonaro”, discursou.
A pauta central da Venezuela foi o bloqueio econômico imposto pelo presidente americano Donald Trump no início de agosto, o maior em 30 anos a um país ocidental. Segundo a vice de Nicolás Maduro, desde 2015, os Estados Unidos impuseram cerca de 350 medidas coercitivas unilaterais contra a república bolivariana, como a apropriação ilícita de recursos venezuelanos a as sanções comerciais que afetam fornecimento de alimentos e remédios.
As sanções aplicadas à Venezuela são parte do plano dos Estados Unidos de derrubar Maduro à força. Para isso, os americanos reconheceram o opositor Juan Guaidó como presidente interino. Na ONU, Delcy expôs fotos que mostram relações de Guaidó com paramilitares colombianos envolvidos com narcotráfico, chamados de “Los Rastrojos”.
VICE-PRESIDENTE DA VENEZUELA, DELCÍ RODRÍGUEZ MOSTRA À ONU FOTOS DO OPOSITOR JUAN GUAIDÓ COM NARCOTRAFICANTES COLOMBIANOS. (FOTO: JESUS ADRIAN/CHANCELARIA VENEZUELA)
Delcy afirmou que os últimos três presidentes americanos foram os que mais investiram em armamento militar. Ela citou que, entre 2001 e 2009, o então presidente George W. Bush lançou 70 mil bombas, em uma média de 24 bombas diárias; depois, Barack Obama, 100 mil bombas, com 34 bombas diárias; e Trump, até agora, lançou quase 45 mil bombas, com o recorde de 121 bombas por dia. Porém, ela ressaltou que as forças militares não são a única prática de terrorismo dos americanos.
“Há um novo tipo de terror, ou de terrorismo de Estado, que se impõe sobre os povos e já não utiliza bombas, mas também bancos e companhias de seguros que estão ao alcance de uma tecla na era digital”, protestou. “A Venezuela tem sido o maior experimento perverso contra o multilateralismo. O terrorismo econômico contra a Venezuela diminuiu em mais de nove vezes a sua renda, e se estima que entre 2015 e 2018 as perdas econômicas alcançaram 130 milhões de dólares.”
No sábado 28, foi a vez de Cuba devolver a Bolsonaro as acusações que recebeu na abertura da assembleia. O chanceler Bruno Rodríguez repudiou a campanha negativa adotada pelo Brasil sobre o programa “Mais Médicos”, que levou médicos cubanos a longínquas localidades para prestar serviços de saúde. Contra Trump, Rodríguez denunciou as sanções americanas à ilha caribenha, que inclui bloqueios a embarcações e empresas de exportação de petróleo. Também acusou os Estados Unidos de retomarem a Doutrina Monroe, política americana do século 19 que justificara intervenções em países latinos.
Por fim, alinhou-se à Venezuela e à Bolívia nas duras críticas à relação dos países capitalistas com o meio ambiente.
“O capitalismo é insustentável. Seus padrões irracionais de produção e consumo e a crescente e injusta concentração da riqueza são a principal ameaça ao equilíbrio ecológico do planeta. Não haverá desenvolvimento sustentável sem justiça social”, afirmou.

EUA miram em Venezuela, Cuba, China e Irã

O discurso antissocialista de Bolsonaro foi corroborado por Trump logo em seguida, já que o presidente americano foi o segundo a discursar na assembleia. O mandatário dos Estados Unidos acusou Havana de saquear a riqueza petroleira venezuelana e chamou Nicolás Maduro de “títere de Cuba”.
“Um dos desafios mais sérios que nossos países enfrentam é o espectro do socialismo: é o arruinador de nações e o destruidor de sociedades. Os acontecimentos na Venezuela nos lembram que o socialismo e o comunismo não se baseiam em justiça e igualdade, nem se tratam de ajudar os pobres e o bem-estar das nações. Baseiam-se apenas em uma coisa: poder para a classe dirigente”, discursou, afirmando que, no último século, o socialismo matou 100 milhões de pessoas. “Os Estados Unidos nunca serão um país socialista.”
China também foi alvo de Trump. A república comunista, segundo ele, exerceu “práticas injustas” desde que foi admitida na Organização Mundial do Comércio (OMC), em 2001. Trump se queixou de que a China se negou a adotar reformas prometidas, baseou seu sistema econômico em barreiras de mercado, dedicou a ele fortes subsídios estatais, promoveu “manipulações monetárias” e roubou propriedade intelectual e segredos comerciais. “Os Estados Unidos perderam 60 mil fábricas desde que a China entrou na OMC”, reclamou.
Sobre o Irã, Trump afirmou que prosseguirá com os bloqueios econômicos, em resposta aos ataques às instalações petroleiras da Arábia Saudita em 14 de setembro, atribuídos à república islâmica. “Nenhum governo responsável deve subsidiar a sede de sangue do Irã”, afirmou. “Enquanto continuarem o comportamento ameaçador, as sanções não serão desfeitas. Serão endurecidas.”
“É difícil para o Ocidente aceitar que seu domínio nos assuntos mundiais está diminuindo”, diz chanceler da Rússia.

O contra-ataque de Rússia e China

O ministro de Relações Exteriores russo, Sergey Lavrov, questionou o real poder das potências do Ocidente. Logo no início do seu discurso, o chanceler analisou que os países que se autoproclamaram vencedores da Guerra Fria, como os Estados Unidos, não querem considerar os interesses legítimos de outras nações e agem para impedir o desenvolvimento de um “mundo policêntrico”.
Segundo Lavrov, há uma “interpretação limitada do liberalismo” que leva estes países a impor normas à comunidade internacional para reter novas influências políticas e recuperar posições privilegiadas. Para ele, isso ocorre porque o Ocidente está se enfraquecendo.
“É difícil para o Ocidente aceitar que seu domínio nos assuntos mundiais, que durou vários séculos, está diminuindo”, afirmou.
A China também repudiou as tensões criadas pelos Estados Unidos com a guerra comercial. O chanceler Wang Yi afirmou que a China não será passiva “frente aos ventos do protecionismo”. Ele também ressaltou que, neste ano, a república comunista completa 70 anos em comemoração por se considerar o “principal motor do desenvolvimento global”.
“O mundo de hoje não é pacífico. O protecionismo e o unilateralismo representam ameaças à ordem internacional”, afirmou. “Quanto às questões comerciais, a China está disposta a resolvê-las de maneira tranquila, racional e se dispõe a demonstrar a maior paciência e boa vontade. Se a outra parte atua de má fé ou não mostra respeito a uma situação de igualdade de regras nas negociações, teremos que dar as respostas necessárias para salvaguardar nossos direitos legítimos.”

Irã, Turquia e o Oriente Médio em chamas

Outro discurso incendiário foi do presidente do Irã, Hassan Rouhani. O mandatário disse que o Golfo Pérsico está “à beira do colapso” e que somente um erro de cálculo pode arruinar a região. A república islâmica também se declarou vítima de “terrorismo econômico” de Washington, devido à série de sanções aplicadas pelo governo Trump.
Rouhani lamentou que o Oriente Médio esteja envolto de derramamentos de sangue, fanatismos religiosos extremistas, que atingem principalmente, segundo ele, a Palestina. O presidente do Irã acusou Israel e Estados Unidos de serem os principais responsáveis pela crise na região. Outra queixa de Rouhani foi o desprezo dos Estados Unidos ao acordo nuclear, costurado em 2015 e desfeito por Trump em 2018.
“Contra os planos destrutivos dos Estados Unidos, o Irã tem acordos de cooperação e assistência regionais e internacionais”, afirmou, exaltando as parcerias com Rússia e Turquia. “O governo dos Estados Unidos impõe sanções extraterritoriais e emite ameaças contra outras nações. Tem feito grandes esforços para privar o Irã das vantagens de participar na economia mundial e recorrido à pirataria para fazer uso indevido do sistema bancário internacional. A nação iraniana jamais perdoará estes delitos.”
Para o doutor em Geografia, professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) e especialista em Oriente Médio, Danny Zahreddine, o Irã precisa ter um posicionamento mais duro porque a crise econômica causada pelos EUA é nefasta para o país.
“Eu concordo com o presidente iraniano. A posição deve ser contundente, porque não foram eles que romperam com o acordo. Boa parte da assembleia geral vai entender e ser solidária. O problema, ao meu ver, é que a questão que liga os houthis no Iêmen e o problema com os sauditas tem um limite tênue. Uma parte da assembleia vai avaliar a fala de Rouhani mais em função do seu comportamento sobre o Iêmen e a Arábia Saudita do que simplesmente o problema entre EUA e Irã, e o acordo nuclear”, avalia Zahreddine, referindo-se ao movimento rebelde dos houthis, apoiados pelo Irã, que assumiram a responsabilidade dos ataques às petrolíferas sauditas em 14 de setembro.
O PRESIDENTE DA TURQUIA, RECEP ERDOGAN, ESCANCAROU SITUAÇÃO DA PALESTINA. (FOTO: REPRODUÇÃO/ONU)
O presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, também fez discurso histórico na tribuna das Nações Unidas. O chefe do estado turco exibiu mapas ilustrativos sobre o domínio de Israel no território palestino desde 1947, e protestou contra as ofensivas sionistas na região.
“E esse mapa de Israel? Onde está Israel? Onde começa e termina o território de Israel? Observem este mapa. Onde estava Israel em 1947? Onde está agora? Especialmente entre 1949 e 1967. Vejam, em 1947, este era o território palestino, todo o território pertence a eles. Mas em 1947, se realiza o plano de distribuição e o território da Palestina começa a diminuir, enquanto Israel se expande. Hoje, esta é a situação: parece que não há presença palestina. Toda a terra pertence a Israel”, manifestou-se.
Na avaliação de Zahreddine, a pauta palestina é útil para Erdogan se fortalecer no poder. Segundo o pesquisador, o debate é fundamental para a pacificação da região, carece de espaços no âmbito internacional e oferece aos turcos uma posição de protagonismo regional.
“Assumir essa instância num momento em que os americanos não representam um mediador adequado, em que as Nações Unidas têm limites evidentes para lidar com isso e que os russos estão preocupados com o problema da Ucrânia e da Síria, isso reforça uma posição interessante para o presidente Erdogan”, examina.
Para Zahreddine, chamou atenção que o Brasil tenha tratado a discussão sobre a região de forma marginal. Apesar de estar tradicionalmente presente nos discursos brasileiros na ONU, o Oriente Médio, segundo o professor, foi citado de modo periférico por Jair Bolsonaro.
“Do ponto de vista da política externa brasileira, a pauta Oriente Médio, com o presidente Bolsonaro, praticamente não existiu. Nos últimos anos, nossa relação com o mundo árabe e com o mundo muçulmano cresceu demais, na área comercial e diplomática. O discurso de Bolsonaro mostra que não é mais uma prioridade buscar este eixo de política externa”, avalia.
Carta Capital
Professor Edgar Bom Jardim - PE