terça-feira, 24 de setembro de 2019

'Ofensivo', 'racista' e 'paranoico': a visão de líderes indígenas sobre discurso de Bolsonaro na ONU



O-é Kayapó
Image captionPara O-é Kayapó, líder na Associação Floresta Protegida (AFP), no Pará, indígena levada por Bolsonaro à ONU 'só tem o apoio da própria família' entre comunidades do Xingu
"Lamentável", "ofensivo", "racista" e "paranoico" foram alguns dos adjetivos com que lideranças de algumas das principais organizações indígenas brasileiras classificaram o discurso do presidente Jair Bolsonaro na Assembleia Geral da ONU, nesta terça-feira (24/9).
A BBC News Brasil ouviu líderes da Associação do Território Indígena do Xingu (Atix), da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN), da Associação Floresta Protegida (AFP) e da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) — entidade que agrega associações de todas as regiões do país e representa os 305 povos indígenas brasileiros.
Todos repudiaram o discurso de Bolsonaro, defenderam o cacique Raoni Metuktire de críticas feitas pelo presidente e afirmaram que Ysani Kalapalo — jovem indígena que integrou a comitiva presidencial na ONU — não tem representatividade no movimento indígena brasileiro.
Líderes indígenas brasileiros que estão em Nova York para a Cúpula Climática da ONU convocaram uma coletiva de imprensa para se pronunciar sobre a fala do presidente.
Bolsonaro se referiu várias vezes aos indígenas brasileiros ao defender as políticas de seu governo em relação à Amazônia e ao criticar o que ele considera uma ingerência indevida de estrangeiros na região.
Ele fez a primeira menção aos grupos ao se referir às queimadas na Amazônia, tema que ganhou o noticiário global nos últimos meses. Bolsonaro disse que "o clima seco e os ventos favorecem queimadas espontâneas e criminosas" nesta época do ano, e que "existem também queimadas praticadas por índios e populações locais, como parte de sua respectiva cultura e forma de sobrevivência".
Coordenadora da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Sônia Guajajara diz que comunidades nativas fazem, sim, pequenas queimadas para abrir roças, mas que "o incêndio florestal (de larga escala) não é uma cultura dos povos indígenas".
"Ele utiliza essa informação sobre nossas queimadas para esconder todo o desmonte da política ambiental autorizado por ele", afirma Guajajara, que foi candidata a vice-presidente na chapa liderada por Guilherme Boulos (PSOL) na eleição de 2018, vencida por Bolsonaro.
A maioria dos incêndios que consomem florestas brasileiras nos últimos meses tem ocorrido fora de terras indígenas. Por estarem mais preservadas, essas áreas retêm mais umidade e estão menos sujeitas a queimadas descontroladas.
Marivelton BaréDireito de imagemARQUIVO PESSOAL
Image captionMarivelton Baré, presidente da FOIRN (Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro), diz que fala de Bolsonaro na ONU é 'paranoica'

Dados imprecisos

Ao citar os indígenas brasileiros na ONU, Bolsonaro usou dados que destoam de informações de órgãos do governo. O presidente disse que existem no Brasil "225 povos indígenas, além de referências de 70 tribos vivendo em locais isolados". Segundo o IBGE, porém, há 305 povos indígenas no Brasil, e, segundo a Funai, há registros de 107 povos isolados.
Bolsonaro disse ainda que "o Brasil não vai aumentar para 20% sua área já demarcada como terra indígena, como alguns chefes de Estados gostariam que acontecesse" — mas não citou quais líderes teriam esse interesse, nem disse de onde tirou a menção aos 20%.
Um dos trechos do discurso que causaram mais revolta entre os entrevistados foi a crítica que Bolsonaro fez ao cacique Raoni Metuktire, líder do povo caiapó reconhecido como um dos maiores ativistas da causa indígena no Brasil e no mundo.
Nas últimas semanas, um grupo de antropólogos, ambientalistas e indígenas brasileiros propôs a indicação de Raoni ao Prêmio Nobel da Paz por sua atuação em prol da defesa do meio ambiente e dos direitos dos povos indígenas.
Segundo Bolsonaro, porém, Raoni é um exemplo de líderes que são usados "como peça de manobra por governos estrangeiros na sua guerra informacional para avançar seus interesses na Amazônia".
"O discurso do presidente é uma ofensa muito grave aos povos indígenas. Ofende o reconhecimento e o trabalho que Raoni vem fazendo durante mais de 40 anos na defesa de direitos dos indígenas", rebate Yanukula Kaiabi Suiá, presidente da Associação Terra Indígena do Xingu (Atix).
A associação representa os 16 povos indígenas que habitam o Território Indígena do Xingu (MT), entre as quais a etnia kalapalo, à qual pertence a indígena levada por Bolsonaro à ONU.
A presença de Ysani Kalapalo na comitiva presidencial foi duramente criticada pelo representante da Atix e pelos outros líderes entrevistados, que destacaram a falta de representatividade da convidada no movimento indígena brasileiro.
Em carta divulgada após o anúncio de que Ysani integraria a delegação presidencial, a Atix disse que "o governo brasileiro ofende as lideranças indígenas do Xingu e do Brasil ao dar destaque a uma indígena que vem atuando constantemente em redes sociais com objetivo único de ofender e desmoralizar as lideranças e o movimento indígena do Brasil".
Ysani, que nasceu no Território Indígena do Xingu e hoje passa a maior parte do tempo em São Paulo, ganhou notoriedade com um canal no YouTube no qual expõe visões políticas de direita e o apoio a posições de Bolsonaro.
O presidente citou diversas vezes a indígena em seu discurso, mas errou a pronúncia de seu nome: ele a chamou de Yzaní, embora o correto seja Yssâni.
Ao mencioná-la, Bolsonaro leu uma carta do Grupo de Indígenas Agricultores, única organização indígena a se manifestar publicamente em favor da presença de Ysani na comitiva.
O grupo disse que "o ambientalismo radical e o indigenismo ultrapassado e fora de sintonia com o que querem os povos indígenas representam o atraso, a marginalização e a completa ausência de cidadania".
A carta é assinada por supostos líderes de comunidades favoráveis a mudanças na legislação sobre terras indígenas e a abertura dos territórios para a exploração econômica em larga escala.
Todos os líderes ouvidos pela BBC dizem que as posições chanceladas pelo Grupo de Indígenas Agricultores são minoritárias entre os povos indígenas brasileiros, a maioria dos quais defende a preservação da floresta e os modos de vida tradicionais dos grupos.
Para O-é Kayapó, representante da Associação Floresta Protegida (AFP), entre as dezenas de milhares que indígenas que vivem na bacia do Xingu, Ysani só tem o apoio de sua própria família.
"Ysani tem um pensamento muito ao contrário da maioria do povo que vive nas aldeias. Por ela ter crescido na cidade, acabou confundindo ou se perdendo entre as duas culturas branca e indígena", afirma.
Ela diz ainda que o Grupo de Indígenas Agricultores é desconhecido pela grande maioria das comunidades.
Ysani KalapaloDireito de imagemREPRODUÇÃO/YOUTUBE
Image captionYsani Kalapalo ganhou notoriedade com um canal no Youtube no qual expõe visões políticas de direita

'Homens das cavernas'

Em seu discurso, Bolsonaro disse ainda que "algumas pessoas, de dentro e de fora do Brasil, apoiadas em ONGs, teimam em tratar e manter nossos índios como verdadeiros homens das cavernas".
Para O-é Kayapó, ao se referir aos indígenas como "nossos índios", Bolsonaro assume a mesma postura de tutela que ele atribui às ONGs. "Nós não somos posse do presidente Bolsonaro."
Sônia Guajajara, da Apib, diz que a relação que Bolsonaro estabelece entre indígenas e homens das cavernas é "racista e revela seu desrespeito quanto aos diferentes modos de vida dos povos indígenas".
Para Marivelton Baré, presidente da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN), entidade que representa 23 etnias no Amazonas, "é Bolsonaro quem ainda parece viver nas cavernas".
"Ele diz que nós queremos ingressar na sociedade, mas a gente já faz parte da sociedade, mas sem esquecer nossa cultura e sem buscar uma integração total. Nós lutamos pelo nosso modo de ser", afirma.

ONGs e riquezas minerais

Ao criticar as ONGs, Bolsonaro exaltou os depósitos minerais que estão nas terras indígenas e disse que a demarcação dessas áreas atenderia a interesses estrangeiros por impedir o Brasil de explorar essas áreas.
Ele disse que "o índio não quer ser latifundiário pobre em cima de terras ricas" e afirmou, sem citar fontes, que as terras indígenas Yanomami e Raposa/Serra do Sol são "as mais ricas do mundo".
"Isso demonstra que os que nos atacam não estão preocupados com o ser humano índio, mas sim com as riquezas minerais e a biodiversidade existentes nessas áreas", disse o presidente.
Para Baré, da FOIRN, o discurso do presidente é "paranoico". "As riquezas minerais sempre estiveram nos nossos territórios sagrados", afirma ele.
Marivelton diz ainda que as ONGs "são parceiros de trabalho que nos ajudam a desenvolver atividades e respeitam nossa forma de existência".
"Bolsonaro deveria respeitar nossas escolhas sobre os grupos com quem queremos trabalhar. Ele só critica as organizações filantrópicas e não mostra nenhuma proposta alternativa para implementar políticas públicas para os povos indígenas", diz o representante dos povos indígenas rio-negrinos.
Professor Edgar Bom Jardim - PE

Bolsonaro perdeu 'oportunidade de ouro' na ONU com discurso 'belicoso' para agradar base, dizem analistas



Bolsonaro na ONUDireito de imagemREUTERS
Image captionNo discurso, Bolsonaro afirmou ter 'compromisso solene com a preservação do meio ambiente e do desenvolvimento sustentável em benefício do Brasil e do mundo'
O discurso do presidente Jair Bolsonaro na abertura da Assembleia-Geral da ONU, nesta terça-feira (24/9), não responde a anseios internacionais por mais proteção à Amazônia e pode acirrar mais as relações com outros países e investidores estrangeiros, afirmam quatro especialistas em relações internacionais brasileiras ouvidos pela BBC News Brasil.
A fala também foi vista mais como um aceno à sua base de apoio do que à comunidade internacional.
Para o diretor do Brazil Institute da Universidade King's College London, Anthony Pereira, em vez de "pacificar" a questão amazônica, Bolsonaro abriu as portas para mais críticas e possíveis retaliações ao Brasil com base no argumento de que o país abandonou compromissos com a proteção do meio ambiente.
No discurso, Bolsonaro afirmou ter "um compromisso solene com a preservação do meio ambiente e do desenvolvimento sustentável em benefício do Brasil e do mundo. (...) Contudo, os ataques sensacionalistas que sofremos por grande parte da mídia internacional devido aos focos de incêndio na Amazônia despertaram nosso sentimento patriótico. (...) Valendo-se de falácias, um ou outro país, em vez de ajudar, embarcou nas mentiras da mídia e se portou de forma desrespeitosa, com espírito colonialista".
"Acho que esse discurso não constrói pontes nem atende às preocupações levantadas por países e ativistas, como Greta Thunberg, na ONU. Talvez tenhamos mais conflitos sobre essas questões", diz Pereira. "Houve uma repetição de falas já pronunciadas pelo presidente Bolsonaro no Brasil, sem nenhuma abertura para um diálogo construtivo."
Ernesto Araujo e Alta Representante da UE para Política Externa e Segurança Federica MogheriniDireito de imagemEPA/OLIVIER HOSLET
Image captionChanceler brasileiro, Ernesto Araújo, e a representante da UE para Política Externa, Federica Mogherini: para especialistas, questão amazônica pode enterrar acordo histórico do Mercosul com a UE
Sobre as possíveis reações à manifestação de Bolsonaro na ONU, Pereira lembra que o desmatamento na Amazônia já tem sido usado por países europeus para tentar bloquear nos parlamentos locais o acordo comercial firmado em junho entre Mercosul e União Europeia.
E, na visão do professor, esse tipo de retaliação tende a continuar diante do discurso do presidente brasileiro.
"Ele não acalmou os ânimos e sabemos que França e Irlanda já disseram que vão votar contra a ratificação do tratado entre Mercosul e União Europeia", afirma.
"Claro que não há apenas a questão ambiental. Esses países têm produtores que enxergam os agricultores brasileiros como competidores. Mas a minha interpretação sobre a fala de Bolsonaro é a de que ela não fecha essas portas [para as críticas]. É possível que tenhamos mais desse tipo de retaliação."

'Oportunidade perdida'

Rubens Ricupero, diplomata de carreira, ex-embaixador do Brasil em Washington e ex-ministro do governo FHC, concorda que a fala de Bolsonaro na ONU reforça a corrente que acredita que "acordos como o (do Mercosul) com a União Europeia podem, na prática, estar mortos, porque nenhum governo europeu vai ter coragem de submeter a ratificação do acordo a seu Parlamento em um futuro previsível".
Ricupero lembra que, na semana passada, 230 fundos estrangeiros que administram US$ 16 trilhões fizeram um comunicado conjunto pedindo ao Brasil medidas concretas de combate a queimadas e ao desmatamento amazônico.
"Depois desse tipo de advertência, se esperaria uma atitude mais conciliadora de Bolsonaro, mas pelo contrário, foi um discurso agressivo. (...) Na diplomacia, contam o tom, a maneira de falar, até mais do que o conteúdo. E o discurso foi violento, lido de forma belicosa", opina o ex-ministro.
Plateia da Assembleia Geral da ONU durante discurso de BolsonaroDireito de imagemEPA
Image captionFala do presidente na ONU foi 'belicosa', na avaliação do ex-ministro e diplomata Rubens Ricupero
O brasilianista Brian Winter, editor-chefe da publicação Americas Quarterly, acredita que "Bolsonaro perdeu uma oportunidade de ouro de acalmar o mundo na questão da Amazônia. Poderia ter dito 'entendemos que (o desmatamento) é um problema, estamos cuidando disso e cabe a nós resolver'. Mas acabou fazendo um discurso belicoso, que pega bem com sua base, mas incita a comunidade global, com repercussões ruins para o Brasil e sua economia."
Winter diz que, em conversas recentes com diferentes investidores, tem escutado que suas decisões relacionadas a investimentos no Brasil estão em compasso de espera.
"Mesmo os investidores que não têm elo com a questão ambiental temem três coisas: o risco a sua reputação [pela polêmica em torno da Amazônia]; o risco de a economia brasileira não crescer o bastante; o temor de que os ruídos políticos não parem nunca", diz.
Para Mark Langevin, diretor do centro de estudos BrazilWorks, em Washington, ainda que Bolsonaro tenha afirmado estar comprometido com a preservação da Amazônia, o contraste com números oficiais que apontam para aumento nas queimadas ainda desperta cautela em investidores e companhias com negócios no país.
"Qualquer pessoa que olhe os dados vai achar que o que Bolsonaro diz não muda o fato de que sua política está perdendo credibilidade", opina Langevin.
"Investidores e fundos sérios estão olhando o Brasil com atenção e avaliando o risco para sua própria reputação, e esse risco é alto no momento. (...) Não acho que vão sancionar ou sair do país, mas tampouco vão fazer grandes investimentos."
Para ele, reivindicações de soberania sobre a Amazônia, sejam ditas por Bolsonaro ou por antecessores como Luiz Inácio Lula da Silva, soam ingênuas para a comunidade internacional, "porque há tanta coisa em jogo, desde países vizinhos [que também são parte da floresta] até Estados que investem na sua preservação".

'Público interno'

Ricupero enxerga o discurso desta terça na ONU mais como uma instigação à base de apoio interna do que um pronunciamento à comunidade internacional.
Ele cita como exemplo disso o tuíte de Flávio Bolsonaro, senador pelo Rio e filho do presidente, dizendo que o pronunciamento do pai "levou ao conhecimento mundial a pauta vencedora das eleições de 2018. Por isso, os derrotados nas urnas estão criticando o discurso libertador verdadeiro e que ainda fez convite ao mundo para que venham conhecer o Brasil".
"É uma fala para o público interno, porque Bolsonaro não parece sensível à opinião que o mundo faça dele. É mais preocupado com apoiadores que esperam atitudes radicais. (...) Transformar Cuba e Venezuela em ameaças [Bolsonaro dedicou boa parte do discurso a críticas aos governos cubano e venezuelano] apenas agrada mais seus partidários."
Brian Winter vê de modo semelhante. "Foi um discurso para consumo interno, consistente com o estilo de Bolsonaro e que lhe elegeu presidente. O problema é a repercussão disso no estágio internacional e na economia, em um momento em que o Brasil tem 12 milhões de desempregados. A ironia é que o Brasil tem histórias interessantes para contar em [preservação] do meio ambiente, e não é o único país a sofrer com queimadas — na Bolívia o problema é tão grande quanto. A diferença é que lá o governo [de Evo Morales] dá sinais de que entende a necessidade de resolver o problema."
O risco, para Ricupero, é um isolamento do Brasil na comunidade internacional, em um momento em que os líderes estrangeiros de quem Bolsonaro se aproximou — Matteo Salvini, da Itália, Benjamin Netanyahu, de Israel, e o próprio Donald Trump, nos EUA — enfrentam cenários adversos internamente.
O presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), João Martins, não compartilha dessa opinião. À BBC News Brasil, ele afirmou que "o presidente Jair Bolsonaro conseguiu posicionar o Brasil na ONU. Defendeu a soberania nacional, esclareceu equívocos sobre a Amazônia e ressaltou o importante papel do Brasil na produção mundial de alimentos e na preservação do meio ambiente. Também afastou a tese de que o governo está colocando o mundo contra o agro brasileiro, defendendo não apenas o setor, mas toda a nação".

Ataque à esquerda

Bolsonaro abriu seu discurso dizendo que o Brasil "ressurge depois de estar à beira do socialismo". Segundo o presidente, esse sistema de governo trouxe "corrupção generalizada para o Brasil". O presidente ainda acusou o ex-presidente Lula — ao lado de Fidel Castro e Hugo Chávez — de criarem o "Foro de São Paulo para implementar o socialismo na América Latina".
Anthony Pereira, do King's College, no entanto, vê nisso indicativo de que Bolsonaro não reconhece a participação de partidos de esquerda no ambiente democrático, algo "problemático".
Incêndio florestal em Rondônia, em foto de 15 de setembroDireito de imagemREUTERS
Image captionProteção ao meio ambiente ainda é considerada a questão mais sensível do atual governo perante comunidade internacional, dizem brasilianistas
"Ele não está falando só de Venezuela e Cuba, mas também sobre o PT e outros partidos de esquerda. É um pouco semelhante ao discurso do regime militar", avalia.
"É como se, para ele, houvesse as pessoas corretas e as pessoas subversivas que não teriam legitimidade de participação democrática. E, fazendo isso, ele está excluindo muitos atores. Isso é problemático do ponto de vista democrático e de um sistema em que o presidente deve representar a todos."
O professor do King's College opina ainda que, em seu discurso na ONU, Bolsonaro aprofunda a tentativa de se descolar de todos os seus antecessores.
"Minha impressão é que Bolsonaro quer distinguir o governo dele de todos os governos que sucederam a transição para democracia, incluindo Sarney, Collor, FHC, Lula, Dilma, Temer", diz.
"Ele rejeita o consenso construído por esses governos pós-transição, apresentando-os como governos contaminados pelo esquerdismo e a corrupção."
Esse consenso, diz ele, se refere à valorização da diversidade, à postura de neutralidade internacional diante de conflitos entre potências e à atitude multipartidária na política interna — de negociar e abarcar ideologias distintas em busca de uma maioria no Legislativo para governar.
Bolsonaro não está só nesse ponto: as críticas ao socialismo, à Venezuela e a Cuba vão ao encontro das posições do presidente Donald Trump, que discursou na ONU logo depois de Bolsonaro.
"Como Trump falou depois, e houve afinidade entre o discurso dele com o de Bolsonaro, talvez um dos objetivos do presidente Bolsonaro seja mostrar alinhamento claro com governos mais nacionalistas e contrários a algumas normas do multilateralismo", avalia Pereira.
*Colaborou Mariana Sanches, da BBC News Brasil em Nova York
Professor Edgar Bom Jardim - PE

Bolsonaro contra o mundo na ONU





Em seu primeiro discurso no plenário da Assembleia-Geral das Nações Unidas, o presidente Jair Bolsonaro abriu frentes de ataques severos contra os governos de esquerda no Brasil, a atitude da França diante dos incêndios na Amazônia e até mesmo o cacique caiapó Raoni Metuktire, uma das principais vozes contra as políticas indigenista e ambiental da sua gestão. Sob a alegação de que trazia a “verdade” ao plenário, o brasileiro criticou até mesmo a própria ONU, a quem acusou de “perverter a identidade biológica”, em referência à agenda da organização em favor da diversidade de gênero.
“Apresento aos senhores um novo Brasil, que esteve à beira do socialismo”, declarou logo no início de seu discurso de 31 minutos – 11 a mais do que o determinado pela ONU a cada chefe de Estado. “Meu país esteve muito próximo do socialismo, o que nos colocou numa situação de corrupção generalizada, grave recessão econômica, altas taxas de criminalidade e de ataques ininterruptos aos valores familiares e religiosos que formam nossas tradições”, completou, em uma clara apresentação do viés ideológico de seu governo.
Em plena situação de fritura de seu ministro da Justiça, em Brasília, Bolsonaro interrompeu seus ataques apenas ao alçar a figura do ex-juiz Sergio Moro, a quem elogiou por seu combate à corrupção. Igualmente valeu-se da presença da indígena Yzany Kalapalo, que trouxe à ONU como parte de sua delegação, para dar credibilidade a sua versão de que a Amazônia não está sendo destruída, de que seu governo combate o incêndio criminoso e de que sua política indigenista segue os anseios dos nativos brasileiros.
Bolsonaro não chegou a mencionar a França diretamente, mas referiu-se à nação presidida por Emmanuel Macron como “um país” que adotou uma postura colonialista, seguiu a “mídia sensacionalista” e ousou “sugerir a aplicação de sanções contra o Brasil” no episódio dos incêndios na Amazônia. O presidente brasileiro pediu respeito à soberania nacional e atribuiu a polêmica internacional em torno do desmatamento da Amazônia à “mídia sensacionalista”.
“É uma falácia dizer que a Amazônia é patrimônio da humanidade, e um equívoco, como atestam os cientistas, afirmar que nossa floresta é o pulmão do mundo”, afirmou. “Valendo-se dessas falácias, um ou outro país, em vez de ajudar, embarcou nas mentiras da mídia e se portou de forma desrespeitosa, com espírito colonialista.”
Nesse capítulo, Bolsonaro voltou a ser agressivo em relação às reservas indígenas. Afirmou que não vai aumentar a área demarcada como terra indígena dos atuais 14% do território nacional para 20%, “como alguns chefes de Estado gostariam que acontecesse”. Mas completou que pretende permitir aos índios brasileiros, como os ianomâmis e os da Raposa Serra do Sol, a exploração econômica de suas reservas – citou ouro, diamante, urânio, nióbio e terras raras -,  para que não sejam mais “latifundiários pobres em terras ricas”.
O presidente alegou ainda que haver no país 225 povos indígenas e outras 70 tribos isoladas para sustentar, em seguida, que o cacique Raoni não fala em nome de todos eles. Raoni é a principal liderança que, especialmente no plano internacional, atua em favor da preservação ambiental e da proteção de áreas indígenas desde os anos 1980.
“A visão de um líder indígena não representa a de todos os índios brasileiros. Muitas vezes alguns desses líderes, como o cacique Raoni, são usados como peças de manobra por governos estrangeiros na sua guerra informacional para avançar seus interesses na Amazônia”, declarou. “Infelizmente, algumas pessoas, de dentro e de fora do Brasil, apoiadas em ONGs, teimam em tratar e manter nossos índios como verdadeiros homens das cavernas.”
Em seu afã de declarar superada a suposta conversão do Brasil ao regime socialista, Bolsonaro deu destaque especial à ação de Cuba, país que se desdobra atualmente para manter sua orientação política e que enfrenta crises fiscal e de desabastecimento. Afirmou que o Brasil “deixou de contribuir com a ditadura cubana” ao revisar o programa Mais Médicos.
“Há poucas décadas, tentaram mudar o regime brasileiro e de outros países da América Latina. Foram derrotados”, declarou, como forma indireta de defender as ditaduras militares de direita que vigoraram na região entre os anos 1960 e 1980.
Em mais um ataque à esquerda, acusou o Foro de São Paulo de ser uma “organização criminosa” criada para difundir o socialismo por Fidel Castro e os ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Hugo Chávez, da Venezuela. O Foro é uma entidade legítima que reúne os partidos de esquerda. Bolsonaro, porém, foi sucinto ao tocar no desafio da crise política da Venezuela, onde disse haver 60.000 agentes cubanos em ação. Em apenas duas linhas escritas, disse estar o Brasil empenhado no restabelecimento da democracia no país com o qual tem a maior fronteira terrestre.
Seu discurso não deixou de causar impressão na plateia. A chanceler Angela Merkel expressou na face sua contrariedade. Mas não houve, como se temia, protesto de delegação insatisfeita com a mensagem de Bolsonaro.
 A chanceler da Alemanha, Angela Merkel, durante discurso de Jair Bolsonaro: enfado – 24/09/2019
A chanceler da Alemanha, Angela Merkel, durante discurso de Jair Bolsonaro: enfado – 24/09/2019 (Tv Brasil/Reprodução)

Ideologia

Em linha com o pensamento do guru de seu governo, Olavo de Carvalho, o presidente condenou os “sistemas ideológicos de pensamento que não buscam a verdade, mas o poder absoluto”. Trata-se de uma definição repetida com frequência pelo chanceler Ernesto Araújo em seus discursos contra a “contaminação” do globalismo e do marxismo cultural em instituições e até mesmo na família.
Bolsonaro se disse vítima desse sistema, ao ter sido “covardemente esfaqueado por um militante de esquerda”, e trouxe esse arrazoado ao falar contra a atuação da própria ONU em prol dos direitos humanos e, especificamente, da defesa à diversidade de gênero. Para o presidente, “essa ideologia” a ser eliminada está expressa no politicamente correto, na repetição de clichês e palavras de ordem. Afeta a família, atinge as crianças e “deixa um rastro de morte, ignorância e miséria”.
“Não estamos aqui para apagar nacionalidades e soberanias em nome de um interesse global abstrato. esta não é a Organização do Interesse Global. É a ONU. Assim deve permanecer”, declarou.
Em resposta a duras críticas dirigidas a seu governo pela alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, Bolsono insistiu que a criminalidade está diminuindo no país. Avisou também que terroristas disfarçados de perseguidos políticos não terão mais esconderijo no Brasil.

Abertura econômica

Indo e voltando aos temas, sem uma ordem muita clara em sua oratória, Bolsonaro cometeu um deslize ao afirmar que, em apenas oito meses, seu governo conseguiu arrematar as negociações de livre comércio entre o Mercosul e a União Europeia e também com os países do EFTA (Noruega, Suíça, Islândia e Liechtenstein). As discussões haviam sido retomadas e praticamente finalizadas na gestão anterior, de Michel Temer.
Sua declaração em favor da assinatura de novos acordos comerciais, porém, remarcou seu compromisso com a agenda liberal do Ministério da Economia. Bolsonaro condenou os “vícios e amarras de quase duas décadas de irresponsabilidade fiscal, aparelhamento do Estado e corrupção generalizada” que, embora não tenha mencionado, vinculou aos governos do PT. Mencionou também, com entusiasmo, o início do processo de adesão do Brasil à Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Como manda a tradição nas Nações Unidas, coube ao Brasil o primeiro discurso, seguido pelos Estados Unidos. Essa deferência se dá desde a primeira reunião plenária oficial da Assembleia-Geral, em 1947. Naquela época, a ONU tinha 57 membros. Nesta 74ª reunião, são 195.
Até 1982, os discursos do Brasil foram feitos pelos ministros de Relações Exteriores ou pelos chefes da missão do país na ONU. Naquele ano, porém, o discurso foi feito pelo então presidente brasileiro, o general João Baptista Figueiredo. Na redemocratização, falaram no plenário da Assembleia-Geral os presidentes José Sarney, Fernando Collor de Mello, Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva, Dilma Rousseff e Michel Temer.
Bolsonaro deverá manter uma conversa informal com o presidente americano, Donald Trump, logo depois de seus discursos, no prédio da ONU. O retorno de Bolsonaro a Brasília está previsto para hoje. Por razões médicas, ele cancelou todos os encontros bilaterais que manteria ao longo da semana em Nova York. O chanceler Ernesto Araújo cumprirá parte dos encontros nos quais o presidente se ausentará.
Com informação de Veja.
Professor Edgar Bom Jardim - PE