sexta-feira, 2 de agosto de 2019

Olhares:Após 'Cristo desgovernado', imagem do Brasil no exterior sofre nova baixa




Capas da The Economist sobre Brasil
Image captionBrasil ganhou novamente destaque no noticiário internacional, mas sendo retratado como principal ameaça aos esforços globais de combate ao aquecimento global
Em 10 anos, o Brasil passou de promessa de futura potência econômica para país com economia desgovernada e, mais recentemente, nação que ameaça os esforços mundiais de combate ao aquecimento global e de preservação do planeta.
Pelo menos é essa a narrativa estampada em alguns dos principais jornais e revistas estrangeiras.
É difícil esquecer a icônica capa de 2009 da prestigiada revista britânica The Economist em que a estátua do Cristo Redentor aparece subindo aos céus como foguete, com o título "Brazil takes off" ou Brasil decola, na tradução para o português.
Quatro anos depois, em 2013, a revista conhecida pelo pensamento liberal na economia e progressista nos costumes, substituiu o otimismo por uma reportagem repleta de críticas ao país.
Na capa, o Cristo que antes decolava aparecia em queda desgovernada. O título questionava se o Brasil havia jogado fora a chance de ser o "país do futuro".
Nesta sexta (2), o Brasil voltou a estampar a capa da Economist. Dessa vez, como principal ameaça ao meio-ambiente. Uma imagem de toco de árvore com o formato do mapa do Brasil ilustra o título dramático "Vigília da morte para a Amazônia"
O texto diz que o presidente Jair Bolsonaro "deixou claro para os infratores (desmatadores) que eles não têm nada a temer".
A política ambiental do governo brasileiro, que prevê a possibilidade de mineração em terras indígenas e de expansão de atividades econômicas na Amazônia, também teve destaque - não exatamente positivo - em jornais americanos.
Em 28 de julho, um dos principais jornais dos Estados Unidos, o The New York Times, publicou artigo com o seguinte título: "Sob líder de extrema-direita brasileiro, proteções à Amazônia são cortadas e florestas caem".
O artigo diz que, se antes o Brasil era visto como liderança na área de meio-ambiente, agora o governo Bolsonaro coloca essa imagem em xeque.
Artigo do The New York Times sobre BrasilDireito de imagemREPRODUÇÃO
Image captionThe New York Times aponta que desmatamento na Amazônia acelerou durante governo Bolsonaro
Empresas de marketing e pesquisa também calculam a evolução (ou involução) da "marca Brasil" no exterior. A consultoria de imagem e marketing FutureBrand, que tem escritórios nos EUA, na Europa e na América do Sul, faz todo ano um ranking dos países com melhor imagem internacional.
O Brasil caiu quatro posições de 2014 a 2019, figurando em 47º na lista de 69 países analisados. Segundo o relatório da FutureBrand, embora nosso país ainda se mantenha entre as 10 maiores economias do mundo (é a nona maior), "há previsão de nuvens carregadas no horizonte".
"A nação se dividiu com a eleição de Jair Bolsonaro e a turbulência continua a afetar o Brasil, podendo influenciar o desempenho do país nos próximos rankings."
Mas quais foram os momentos-chave que ajudaram a moldar e transformar a imagem do Brasil no exterior? E seriam justas essas avaliações da imprensa estrangeira sobre o nosso país?

A linha do tempo da imagem do Brasil no mundo

Em entrevista à BBC News Brasil, o professor de Relações Públicas Internacionais Christopher Sabatini, da Universidade Columbia, em Nova York, lembrou alguns episódios e momentos que ajudaram a forjar a forma como o nosso país era visto no exterior.
Segundo ele, antes de Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva se tornarem presidentes, a visão sobre o Brasil era concentrada em aspectos culturais e na ideia de um país diplomático e amigável.
Trump e BolsonaroDireito de imagemREUTERS/KEVIN LAMARQUE
Image captionNo governo Bolsonaro, Brasil passa a ser visto como país que não se compromete com o combate ao aquecimento global
"O Brasil era visto como fonte de riqueza cultural, não só com samba, mas com a MPB, Bossa Nova, Caetano Veloso e outros excelentes músicos", disse.
"E muitos reconheciam o potencial diplomático do Brasil, a boa tradição diplomática do Itamaraty. Quem trabalhava com política e diplomacia sabia da capacidade de soft power e de negociação."
Soft power é um termo que descreve a influência de um país em decisões internacionais por meio de sua capacidade de persuasão, sem uso de coerção, poder econômico ou militar.
A diretora do Programa de Estudos Brasileiros da Universidade Oxford, Andreza de Souza Santos, diz que "o mito" de que o Brasil era uma "democracia racial", ou seja, um país aberto à miscigenação e sem racismo, também contribuiu para que o país fosse percebido como aberto, liberal e tolerante.
"O Brasil nunca encarou profundamente o seu legado de escravidão e desigualdade, mas a imagem que se tinha no exterior era a de que havia tolerância religiosa e racial."

Brasil como potencial de ser líder regional

Durante o governo de Fernando Henrique Cardoso o Brasil passou a ser encarado mais seriamente como país com potencial de influência internacional e liderança regional, diz o professor americano Sabatini, que também integra a Chatham House, uma das instituições de pesquisa mais respeitadas do Reino Unido..
"FHC era um acadêmico de proeminência internacional que corrigiu os rumos da economia quando estava no poder. Ele não recebe os créditos devidos, mas foi responsável por dar maior importância e peso ao Brasil internacionalmente."
Já o ex-presidente Lula seria a "personificação" das expectativas que o mundo tinha em relação ao Brasil.
"A história de Lula representava essa ascensão e modernização do Brasil. Ele é um homem que veio da pobreza num dos países mais desiguais do mundo", diz Sabatini.
"E a nossa percepção é a de que os brasileiros são carismáticos. Lula era muito carismático. Então, ele personalizava o que muitos estrangeiros pensavam sobre o Brasil."
Além disso, nos dois mandatos de Lula, o Brasil viveu um momento de estabilidade financeira e crescimento ecomômico, impulsionado pelo boom no preço das commodities.
floresta desmatadaDireito de imagemRAPHAEL ALVES/AFP
Image captionHá menos de 10 anos, o Brasil era visto como líder na proteção ambiental
Nessa época, lembram Christopher Sabatini e Andreza dos Santos, o Brasil se firmou como liderança ambiental, se comprometendo voluntariamente a reduzir a emissão de gases poluentes.
Com a crise econômica no governo de Dilma Rousseff, a imprensa estrangeira passou a classificar as conquistas econômicas anteriores do Brasil como "bolhas" ou "voo de galinha".
"Muitos perderam a esperança de que o país está destinado ao sucesso e concluíram que foi apenas outro voo de galinha", dizia artigo de 2013 da Economist.
Já no governo Bolsonaro, o Brasil passou a estampar as capas dos jornais como país que não mais se compromete com o combate às mudanças climáticas e cujo líder coloca em xeque direitos de minorias.
As falas de Bolsonaro sobre a comunidade LGBT, mulheres e negros foram amplamente noticiadas no exterior.
Andreza Santos observa que, quando o Cristo apareceu "desgovernado" na capa da Economist de 2013, o foco das críticas ao Brasil era a gestão econômica.
Agora, o noticiário questiona grande parte dos valores antes associados ao Brasil.
"A crítica em 2013 focava no crescimento econômico fraco, na desaceleração, nos problemas orçamentários. Enfim, pintava a imagem de um país bagunçado na gestão financeira", ressalta Santos.
"Agora é muito diferente, é como se os alicerces de imagem do Brasil estivessem se rompendo. Na questão diplomática, por exemplo, o Brasil passou a optar por decisões de confronto com antigos parceiros, quebrando uma tradição consolidada de agir com neutralidade."

Mas é justa a imagem que a imprensa estrangeira faz do Brasil?

Para o professor Sabatini, os discursos do presidente Bolsonaro sobre meio-ambiente e direitos de minorias prejudicam a imagem consolidada do Brasil como país tolerante, aberto às diferenças e vanguardista na proteção ambiental.
Mas ele também critica o que chama de exageros e "bipolaridade" da imprensa internacional ao escrever sobre Brasil. Para Sabatini, a Economist exagerou no otimismo e agora exagera no pessimismo e na "generalização" dos problemas brasileiros.
Ele argumenta que, em 2009, a revista britânica subestimou, por exemplo, o fato de que a economia brasileira ainda se baseava na exportação de produtos básicos, como alimentos, e negligenciou a existência de corrupção no sistema político.
"De certa maneira, aquela capa não foi justa com o Brasil porque não apontou as fragilidades institucionais da economia brasileira e não considerou que muitas daquelas conquistas foram construídas com práticas corruptas", disse.
"Ou seja, a primeira reportagem superestimou as conquistas e ignorou as vulnerabilidades do Brasil. A segunda capa, do Cristo em colapso, é injusta com o Brasil, porque é uma consequência do próprio erro anterior da Economist ao analisar o Brasil."
Para Sabatini, a imprensa estrangeira em geral, ao se propor a fazer reportagens analíticas sobre o Brasil, continua a errar no tom e na "generalização" das responsabilidades.
Assinatura de acordoDireito de imagemEPA/FRANCK ROBICHON
Image captionUnião Europeia adverte que acordo com Mercosul depende de cumprimento de compromissos ambientais pelo Brasil
"Claro que o ritmo do desmatamento é preocupante e é um fato que o governo Bolsonaro deu sinal verde, direta ou indiretamente, para que isso acontecesse. Mas essa é parte da história e não reflete a prática de grande parte da agricultura praticada no Brasil. Esse aspecto de produção sustentável não é retratado pela imprensa", diz Sabatini.
O professor lembra ainda que alguns anos atrás o Brasil era celebrado pela produção de alimentos e visto como nação necessária para garantir a segurança alimentar do mundo.
"Há um comportamento bipolar. Antes, o Brasil era divulgado como o país que ajudará a combater a fome no mundo. Agora, a imprensa estrangeira exclama que o país está destruindo a floresta e culpa a agricultura."
Na reportagem sobre os riscos para a Amazônia no governo Bolsonaro, a Economist faz um apelo para que os países compradores de produtos brasileiros condicionem parcerias comerciais a um "bom comportamento por parte do Brasil".
Recentemente, a União Europeia fez um alerta ao Brasil ao dizer que o acordo de comércio entre Mercosul e União Europeia, que ainda precisa ser ratificado, está condicionado ao compromisso com a proteção ambiental e dos povos indígenas.

Que consequências a erosão da imagem do Brasil pode ter?

Andreza Santos, da Universidade Oxford, afirma que a redução do prestígio internacional do Brasil pode influenciar negativamente a capacidade de o país atrair investimentos, turistas e parcerias.
Apesar de não ter grande poderio militar nem estar entre as cinco maiores economias, o Brasil conseguiu usar o soft power para ter destaque em organismos internacionais e obter vantagens econômicas em negociações comerciais com grandes potências.
Atualmente, a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) e a Organização Mundial do Comércio (OMC) são presididas por dois brasileiros: José Graziano da Silva e Roberto Azevêdo, respectivamente.
"A imagem do Brasil no exterior afeta parcerias comerciais, cooperação cientifica e tecnológica, e o turismo", lista Santos.
Sabatini compartilha essa opinião.
"Embora eu enxergue equívocos na cobertura da imprensa internacional, é verdade que o nacionalismo de Bolsonaro, seus planos sobre demarcação indígena e o discurso sobre minorias geram uma preocupação genuína", diz.
"Os aspectos que tornavam o Brasil atrativo para muita gente, como a imagem de progressista, de potencial líder do hemisfério sul e de ser uma liderança na cultura e na proteção ambiental, estão se desfazendo", conclui o professor americano.
Professor Edgar Bom Jardim - PE

quinta-feira, 1 de agosto de 2019

Escravidão no Brasil:'Ficava sem salário e tinha que tomar água suja', diz resgatado de trabalho análogo à escravidão


Situação onde viviam trabalhadores resgatados recentementeDireito de imagemSÉRGIO CARVALHO/AUDITOR-FISCAL DO TRABALHO
Image captionTrabalhador relata que ficava salário e tinha que tomar água suja no MT
"Isso eu não desejo pra ninguém", diz João (nome fictício), de 53 anos, ao relembrar o período em que trabalhou em situação análoga à escravidão.
Ele e os colegas se amontoavam em barracas de lona no mato, onde dormiam em redes e bebiam água suja. "Não tínhamos outra opção", conta à BBC News Brasil.
João relata que desde o fim da década de 80, quando se mudou para Vila Rica (MT), trabalhou em situação degradante em diversas propriedades rurais da região, que faz divisa com o Pará. "Era tudo muito precário e complicado", lamenta.
Ele costumava trabalhar em derrubadas de mata em fazendas, para abrir espaços de pastagem - prática frequentemente considerada ilegal, por não haver autorização para o desmatamento.
O papel de João nas atividades era de "badeco", como são chamados os responsáveis pelos serviços gerais no lugar e pelas refeições dos trabalhadores.
"Em alguns dias havia carne, em outros a gente tinha que matar algum animal para ter alguma comida", diz João.

O recrutamento

Os serviços nas propriedades rurais eram liderados por uma figura conhecida como "gato", responsável por intermediar o contato entre o fazendeiro e o trabalhador.
Ao chegar às fazendas, segundo João, eles eram informados que somente poderiam sair dali ao fim do trabalho - que chegava a durar dois meses.
"Ninguém tinha carro ou moto, então, a gente não tinha como ir embora, mesmo que a gente quisesse. Falavam que iam assinar a nossa carteira, mas nunca assinavam", detalha.
Nas propriedades rurais, os trabalhadores esperavam receber conforme a produção que faziam. Mas raramente viam o pagamento. "O 'gato' sempre enrolava, dizia que o fazendeiro não tinha pagado e não repassava o dinheiro para a gente. Não tínhamos o que fazer", detalha.
Histórias como a de João chamam a atenção após declarações do presidente Jair Bolsonaro, na terça-feira (30). Ele afirmou que é necessário rever as regras do combate ao trabalho análogo à escravidão.
Bolsonaro disse que "ninguém é favorável ao trabalho escravo", mas se dirigiu ao ministro Ives Gandra Martins Filho, do Tribunal Superior do Trabalho (TST), e afirmou: "Alguns colegas de vossa excelência entendem que o trabalho análogo à escravidão também é escravo. E pau nele."
Para o presidente, há uma linha "muito tênue" que distingue o trabalho análogo à escravidão e a escravidão. "O empregador tem que ter essa garantia. Não quer maldade para o seu funcionário, nem quer escravizá-lo. Isso não existe. Pode ser que exista na cabeça de uma minoria insignificante, aí tem que ser combatido. Mas deixar com essa dúvida quem está empregando, se é análogo ou não é, você leva o terror para o produtor", disse Bolsonaro.
Trabalhadores dormiam em redesDireito de imagemSÉRGIO CARVALHO/AUDITOR-FISCAL DO TRABALHO
Image captionLocal onde viviam trabalhadores resgatados recentemente em operação do Ministério Público do Trabalho
No dia seguinte à repercussão das declarações, o presidente afirmou que não planeja enviar ao Congresso uma proposta para alterar a legislação.
As declarações de Bolsonaro incomodaram entidades que atuam no combate ao trabalho análogo à escravidão. O questionamento sobre a legislação referente ao tema foi considerado uma forma de retrocesso.
"Em política de direitos humanos, é vedado o retrocesso. A partir do momento em que se tem uma conquista da civilização, não se pode voltar à barbárie anterior", ressalta a procuradora Catarina Von Zuben, titular da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, em entrevista à BBC News Brasil.
De 2003 a 2018, foram resgatados 45 mil trabalhadores em situação de trabalho semelhante à escravidão no Brasil, conforme o Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas.

Os resgates

João passou quase 15 anos trabalhando em fazendas em situação degradante. "O 'gato' era quem levava a gente para os lugares. Era uma das poucas formas de trabalho que a gente encontrava", detalha.
Em todas as propriedades rurais onde trabalhou na época, as situações eram semelhantes: comida rara, água suja e local precário para dormir.
Ele, junto com mais de 50 colegas, foi resgatado em 2003 por auditores do Ministério da Fazenda. Na época, o grupo estava havia um mês em uma propriedade rural no Pará, em uma área próxima ao Mato Grosso, onde fazia a derrubada de árvores.
A situação vivida por João e pelos colegas somente foi descoberta após uma briga entre dois trabalhadores do grupo. "Um pegou até machado para matar o outro", relembra. Um funcionário da fazenda, que tinha acesso ao telefone, ligou para a polícia, que foi ao local para atender a ocorrência da briga. Os policiais notaram o serviço ilegal na fazenda e acionaram o Ministério Público do Trabalho (MPT).
Em 2003, além de João e dos colegas, também foram resgatadas outras 5,2 mil pessoas em situação análoga à escravidão. Em comparativo com os últimos anos, o número de resgates diminuiu.
Em 2018, por exemplo, segundo dados divulgados pelo Ministério da Economia, foram encontradas 1.723 pessoas em condições semelhantes à escravidão - destas, 1.113 foram resgatadas.
À primeira vista, a redução de resgates pode parecer um dado positivo. Porém, Catarina Von Zuben é enfática: a diminuição representa uma situação ainda mais alarmante.
"Houve certa conscientização de alguns segmentos. Mas o problema é que há menos fiscalização, porque houve redução nos números de fiscais. Muitas aposentadorias de auditores não foram repostas e os concursos são insuficientes. Em todo o Brasil, há apenas 19 auditores fiscais que atuam diretamente com trabalho escravo. Hoje, eles compõem quatro equipes. No passado, havia mais de 10 equipes para fazer esse trabalho", diz.
Catarina Von ZubenDireito de imagemDIVULGAÇÃO/MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO
Image captionProcuradora diz que possíveis alterações na lei em relação ao trabalho análogo à escravidão pode ser pejudicial até mesmo para a economia do país
Com menos fiscalização, os números de resgates cada vez mais deixam de corresponder à realidade no Brasil. "Há muitos casos que não são mais notificados, por haver menos fiscais", ressalta Catarina.
O setor rural é a área em que há mais casos de trabalho análogo à escravidão. A categoria "trabalhador agropecuário em geral" corresponde a 73% dos casos registrados no Brasil. Há também registros em funções como servente de obras (3%), trabalhador da pecuária (3%) e pedreiro (2%), entre outros.

A legislação

O Artigo 149 do Código Penal prevê punição a quem reduzir alguém à condição análoga à de escravo, que pode ser caracterizada por situações como trabalhos forçados, jornada exaustiva, condições degradantes de trabalho, restrição à locomoção do empregado - principalmente em razão de dívidas contraídas com o empregador.
Ainda nas declarações da terça, Bolsonaro criticou o fato de que situações como "colchão abaixo de oito centímetros" e "quarto com ventilação inadequada" são utilizadas como critérios para definir condições análogas às de escravidão.
A titular da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo rebate as argumentações do presidente.
"Quando há a fiscalização, o auditor fiscal autua por todas as irregularidades que ele encontra. Dentre elas, pode haver irregularidades mais simples, como o caso em que faltava saboneteira em um banheiro. Era uma das infrações no meio de dezenas. Não é a saboneteira que caracteriza a mão de obra escrava. São vários fatos. A nossa fiscalização é boa. Os resgates são criteriosos e não é algo banal", declara Catarina.
A procuradora afirma que a legislação atual é clara em relação ao trabalho análogo à escravidão. Possíveis alterações que possam afrouxar a definição sobre o tema são vistas como prejudiciais, inclusive para a economia do país.
"Não é só o combate à corrupção e à lavagem de dinheiro que melhora a situação do país. É necessário haver transparência das cadeias produtivas. Há grandes países e fundos que não investem se não houver uma cadeia produtiva, do campo até a entrega, na qual não há certeza de que não houve danos ambientais ou desrespeito aos direitos humanos", pontua Catarina.
"Até para a sobrevivência do país, não tem como não imaginar a importância do combate ao trabalho escravo. Era um assunto que a gente nem deveria mais estar falando. É uma questão de direitos humanos", acrescenta.

Após o resgate

Depois que os auditores foram à propriedade rural em que trabalhava, João e os colegas foram liberados e encaminhados para uma unidade da Pastoral do Imigrante na região - diversas instituições filantrópicas prestam apoio a resgatados.
O proprietário da fazenda foi autuado e teve de pagar R$ 600 a cada um dos mais de 50 trabalhadores que ficaram um mês em sua propriedade - na época, o valor correspondia a mais de dois salários mínimos.
As indenizações são formas de punição aplicadas àqueles que exploram o trabalho escravo. Conforme o Ministério da Economia, as multas aplicadas aos que exploravam as pessoas resgatadas no ano passado, em todo o Brasil, somaram cerca de R$ 3,4 milhões.
Lona e redes onde trabalhadores dormiam em resgate feito em 2016, em Chapada dos Guimarães (MT)Direito de imagemSÉRGIO CARVALHO/AUDITOR-FISCAL DO TRABALHO
Image captionTrabalhadores foram liberados e encaminhados para unidade da Pastoral do Imigrante
Em 2014, uma emenda incluiu um trecho que também permite a possibilidade de a área rural ou urbana em que houver exploração de trabalho escravo ser expropriada e destinada à reforma agrária ou habitação popular, sem indenização ao proprietário. O trecho foi criticado por Bolsonaro, que o classificou como uma forma de insegurança ao produtor rural.
Depois da indenização, João teve apoio de representantes do Ministério Público do Trabalho e de instituições filantrópicas que ajudam pessoas resgatadas em situação análoga à escravidão.
Ele fez curso profissionalizante por dois meses, para que pudesse trabalhar como tratorista. Para o homem, que estudou somente até a quarta série, as aulas foram uma forma de se sentir novamente valorizado. "Foi um período muito importante para mim, depois de tudo o que passei", diz.
Hoje, mais de 15 anos depois, João é casado e mora em Marabá (PA) e trabalha como atendente na cantina de uma propriedade rural. Ele conta que recebe R$ 1,5 mil por mês e se orgulha por ter a carteira assinada.
"Agora eu vejo o trabalho escravo como uma falta de atenção e humanidade. Deveriam ter mais compaixão com a gente que vive nessa luta, sem profissão certa. As pessoas ganham pouco e ainda são obrigadas a trabalhar de qualquer jeito. Isso é uma forma muito triste para humilhar o ser humano", declara.
Professor Edgar Bom Jardim - PE

Por unanimidade, STF derrota Bolsonaro e mantém demarcação indígena na Funai





Por unanimidade, o plenário do Supremo Tribunal Federal manteve suspensa uma medida provisória (MP 886) do presidente Jair Bolsonaro (PSL) que visa transferir da Fundação Nacional do Índio (Funai) para o Ministério da Agricultura a responsabilidade de demarcar terras indígenas.
Bolsonaro editou uma segunda medida provisória depois que o Congresso Nacional rejeitou uma primeira que também havia tentado fazer essa mudança na estrutura da administração pública.

A MP 886 já havia sido suspensa em junho pelo ministro do STF Luís Roberto Barroso, atendendo a pedido dos partidos Rede Sustentabilidade, PDT e PT. Nesta quinta-feira (1º), o plenário da corte referendou a decisão liminar de Barroso, por 10 votos a 0. Somente o ministro Alexandre de Moraes não votou porque não estava presente na sessão.

A Constituição impede o presidente reedite, na mesma legislatura, uma medida provisória que tenha sido rejeitada ou que tenha caducado sem ser apreciada a tempo pelo Congresso.

Após a liminar de Barroso, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP) declarou sem validade o trecho da medida provisória que tratava da demarcação de terras indígenas e quilombolas. Davi, assim como o ministro do STF, entendeu que Bolsonaro tentou reeditar uma MP que já havia sido rejeitada pelos parlamentares. De acordo com o regimento interno, o presidente da Casa tem a prerrogativa de impugnar proposições que lhe pareçam contrárias à Constituição.

Em seu voto na sessão desta quinta, Barroso disse que a última palavra sobre o que deve ser lei cabe ao Parlamento. O voto mais enfático foi o do decano do Supremo, o ministro Celso de Mello, que viu na reedição da MP, a despeito da vedação constitucional, um resquício de autoritarismo.

"O comportamento do atual presidente da República, revelado na reedição de medida provisória clara e expressamente rejeitada pelo Congresso Nacional, traduz uma clara, inaceitável transgressão à autoridade suprema da Constituição Federal e representa inadmissível e perigosa transgressão ao princípio fundamental da separação de Poderes", afirmou.

"Uma visão do processo político institucional que se recuse a compreender a supremacia da Constituição e que hesite em submeter-se à autoridade normativa dos seus preceitos [...] é censurável", completou o decano. "É preocupante essa compreensão pois torna evidente que parece ainda haver, na intimidade do poder hoje, um resíduo de indisfarçável autoritarismo, despojado sob tal aspecto, quando transgride a autoridade da Constituição, de qualquer coeficiente de legitimidade ético-jurídica."

Logo após a edição da MP, no fim de junho, Bolsonaro disse que assumia o bônus e ônus sobre o processo de demarcação de terras indígenas no país. "Quem demarca terra indígena sou eu! Não é ministro. Quem manda sou eu. Nessa questão, entre tantas outras. Eu sou um presidente que assume ônus e bônus", afirmou.

O presidente tem dito que não vai liberar a demarcação de novas terras e que planeja legalizar a extração de minério em áreas indígenas.

"É intenção minha regulamentar garimpo, legalizar o garimpo. Inclusive para índio, que tem que ter o direito de explorar o garimpo na sua propriedade. Terra indígena é como se fosse propriedade dele. Lógico, ONGs de outros países não querem, querem que o índio continue preso num zoológico animal, como se fosse um ser humano pré-histórico", afirmou na segunda (29), ao comentar a suspeita de assassinato de um líder indígena no oeste do Amapá.

Na visão de Bolsonaro, as demarcações indígenas estão "inviabilizando o negócio" no Brasil. "Está inviabilizando nosso negócio. O Brasil vive de commodities, daqui a pouco o homem do campo vai perder a paciência e vai cuidar da vida dele. Vai vender a terra, aplicar aqui ou lá fora, e cuidar da vida dele. A gente vai viver do quê? O que nós temos aqui além de commodities? Será que o pessoal não acorda para isso? Se esse negócio quebrar todo mundo vai para o barro, acabou o Brasil."
Professor Edgar Bom Jardim - PE