domingo, 1 de julho de 2018

Copa:Conheça o professor de escola pública que fez seleção trocar pontapés por bom futebol


Durante décadas, a seleção do Uruguai carregou a fama de equipe violenta, uma herança principalmente dos jogos sanguinários realizados por Peñarol e Nacional nas Copas Intercontinentais, disputadas inicialmente pelos vencedores da Copa Libertadores e da Uefa Champions League em tensos jogos de ida e volta, um na América do Sul e outro na Europa.
 estigma só começou a ser dissipado quando a seleção celeste foi assumida, primeiro entre 1988 e 1990, e depois em 2006 até os dias de hoje, por um professor e diretor de escola pública chamado Óscar Washington Tabárez Silva.
Conhecido como El maestro ("o professor"), por ter de fato lecionado a língua de Cervantes por muitos anos em uma escola do bairro de Cerro, em Montevidéu, Tabárez é descrito como um treinador "diferenciado" por um dos jogadores que melhor lhe conhecem: o ex-zagueiro Diego Lugano, que durante anos o capitão da Celeste.
"Ele é professor de escola pública no Uruguai, vem de uma família toda de professores. É um cara muito diferenciado entre todas as pessoas que já conheci. Possui um grande vocabulário e uma cultura enorme", conta o defensor, em entrevista ao ESPN.com.br.
"Você pode falar com ele sobre qualquer tema, de qualquer parte do mundo, que com o conhecimento dele ele conversa sem problemas. O Tabárez possui o melhor vocabulário do idioma espanhol que já escutei. De todos os treinadores que já tive, sem dúvidas é o que melhor se expressa", completa.
El maestro já está há 12 anos no comando da equipe nacional de seu país, que assumiu em 2006 após ficar quatro anos parado, sem trabalhar como treinador.
Nesse tempo, teve como grande destaque a conquista da Copa América de 2011, além do 4º lugar na Copa do Mundo de 2010. Em sua primeira passagem pela Celeste, no final dos anos 80, aliás, ele já havia vencido também os Jogos Pan-Americanos de 1983.
Nesta década de trabalho, ele se notabilizou por fazer um trabalho muito sólido, mantendo a sempre presente garra charrúa, mas trocando as pancadas pelo bom futebol. Para isso, utilizou algumas habilidades e a experiência de seus tempos como diretor.
Em seu time, só jogam atletas com "valores e ética", segundo Lugano, que conhece o técnico desde março de 2006, quando foi convocado pela primeira vez por ele.
"A principal característica dele é que trouxe um projeto de institucionalização da seleção uruguaia. Ou seja, ele supervisionava tudo e tinha uma mesma forma de pensar desde a base até o profissional. E, neste processo, ele deu mais importância à formação de seres humanos", descreve o zagueiro.
"Antes de ser jogador de seleção do Uruguai, você precisa ser um bom ser humano para jogar com ele. Tabárez só convoca profissionais com valores e éticas. Isso importa mais para ele que ser um grande jogador. Se coincidirem as duas coisas, ótimo, mas essa é a ideia dele. Para estar na seleção, primeiro precisa ter esses dois requisitos: valores e ética. Se o cara é bom ou não vem depois", ressalta Lugano.
No Mundial da Rússia, o Uruguai levou um cartão amarelo e cometeu somente 33 faltas (média de 11 por partida). Neste sábadom às 15h (de Brasília), será a vez de Tabárez enfrentar o time de Portugal do técnico Fernando Santos, pelas oitavas de final da Copa do Mundo de 2018.
Resta saber qual professor irá dar uma "aula" em campo...

De zagueiro central a 'Maestro'

Antes de ser professor, Oscar Tabárez foi zagueiros de vários times pequenos e médios do Uruguai. Após pendurar as chuteiras, foi lecionar, ao mesmo tempo em que trabalhava como treinador de clubes como Bella Vista, Danúbio e Montevideo Wanderers.
Seus bons métodos lhe renderam sua primeira chance na seleção uruguaia sub-20 em 1983, com ele conquistando os Jogos Pan-Americanos com uma equipe montada em cima da hora. Aquilo chamou a atenção do gigante Peñarol, à época ainda uma grande potência sul-americana, que o contratou em 1986 para reconduzir a equipe às glórias.
No ano seguinte, os resultados já vieram, com os Carboneros vencendo a Copa Libertadores em uma final histórica contra o América de Cali-COL, decidida apenas com um gol no último minuto da prorrogação da 3ª partida - obra de Diego Aguirre, ex-atacante letal dos aurinegros e hoje técnico do São Paulo.
Em 1988, Tabárez assumiu pela primeira vez a seleção uruguaia, terminando como vice-campeão da Copa América de 1989, atrás somente do anfitrião Brasil de Romário.
Saiu em 1991, para assumir o também gigante Boca Juniors, sendo campeão argentino e da extinta Copa Masters da Conmebol em 1992, batendo o Cruzeiro por 2 a 1 na final.
Depois, El maestro se aventurou na Europa, comandando times como Cagliari-ITA e Oviedo-ESP. Seu maior feito foi ter chegado ao poderoso Milan, em 1996, mas ele não teve muito sucesso e acabou substituído após alguns meses pelo lendário Arrigo Sacchi.
O uruguaio voltou em 2001 à América do Sul, para comandar o Vélez Sarsfield-ARG, passando em seguida mais uma vez pelo Boca, em 2002, desta vez sem tanto sucesso.
Após ser demitido do clube de Buenos Aires, Tabárez "se aposentou" como treinador e ficou quatro anos apenas atuando como professor. Em 2006, porém, foi chamado para tentar resgatar as glórias da Celeste, assumindo a equipe que não havia conseguido se classificar para três das últimas quatro Copas do Mundo.
O comandante arregaçou as mangas e topou, aplicando imediatamente o "Processo de institucionalização de seleções e formação de seus futebolistas", criado por El maestro e citado acima por Lugano.
Esse método unificou os treinamentos de todas as seleções de base com a principal do Uruguai, colocando a formação 4-3-3 como padrão e criando janelas de tempo para os jogadores estudarem tática e entenderem melhor as ideias de seu comandante.
Hoje, 10 dos 11 jogadores mais convocados da história do Uruguai participaram de "El proceso", como ficou conhecido o método que tirou a Celeste Olímpica da ruína e a fez voltar a ser temida no futebol mundial, tanto em competições oficiais quanto de base.
"Ele é 100% gestor. Neste aspecto, é um dos melhores do futebol mundial. Já como treinador, não é de inventar. Ele estuda e se atualiza, mas não é inovador. Não é um Mourinho ou um Guardiola. É muito mais pragmático", salienta o defensor.
No gerenciamento do grupo, destacam-se sempre a calma e a educação.
"No dia a dia, ele é muito respeitoso. Em 11 anos, nunca escutamos uma palavra ruim dele. Ao contrário: nos momentos mais tentos e difíceis, sempre usou palavras justas, que acabam tranquilizando o jogador", relata o ex-capitão da seleção.
"Mas ele é muito firme. Muito firme mesmo! Sem nunca levantar a voz ou faltar com o respeito, mas é muito claro mesmo tomando decisões difíceis. E ele já tomou muitas na seleção. Todo mundo o respeita muito, tanto os que já jogaram, os que seguem jogando ou os que não tiveram oportunidade, pois Tabárez trata a todos com igualdade", acrescenta.

Tabárez quase tirou a faixa de Lugano

Como nos tempos de professor, Oscar Tabárez também é disciplinador quando necessário. Diego Lugano sentiu bem isso quando quase teve sua faixa de capitão retirada pelo técnico.
"Em 2007, quando eu estava jogando no Fenerbahce, participei de uma briga em um clássico contra o Galatasaray. Fui um pouco responsável (pela briga), e nessa época já era capitão do Uruguai. E se tinha algo que ele proibia era que um jogador da seleção deixasse esse tipo de imagem: de brigão, que não dá bom exemplo para o clube, para a sociedade e para o espetáculo", lembra o atleta, que jogou cinco anos pelo Fener.
"Eu achava que não tinha nada a ver uma coisa com a outra, né? Mas ele me ligou e me chamou a atenção. Disse que não tinha me escolhido para ser o capitão desse projeto dele para depois eu dar um exemplo desses em campo. Aí falou que iria pensar se eu era mesmo o cara indicado para cumprir a função mais importante do projeto dele. Ele quase me tirou a faixa, mas por sorte veio outra oportunidade depois e eu agarrei. Mas essa convicção, esse estilo dele, faz a diferença em muitos aspectos. Eu respeito muito", elogia.
Além do pragmatismo tático e do cuidado com a disciplina e o bom exemplo, Tabárez ainda exige que os jogadores estudem para se expressar melhor. De acordo com Lugano, ele já chegou a comemorar mais um prêmio acadêmico do que uma vitória charrúa.
Aconteceu em 2010, quando o Uruguai voltou da Copa de 2010, na África do Sul, com o 4º lugar. A seleção recebeu uma comenda da Real Academia Española, instituição fundada em 1713 e que tem como função a preservação do idioma espanhol, principalmente na elaboração de dicionários e concursos mundiais de literatura, poesia e textos em geral.
"Quando voltamos, ele me mostrou um prêmio que a gente tinha recebido, que reconhecia o Uruguai como seleção que melhor se expressou no Mundial. Ele falou isso com uma alegria enorme no rosto e na maneira de falar. Muito maior do que se tivéssemos ganho um jogo importante ou que fosse um prêmio por resultado esportivo", contou.
"Ele vê no nosso time algo muito além do esporte. É uma meta e uma obrigação que ele sente fazer a seleção representar de verdade o seu país. Eu nunca o vi tão alegre quanto no dia em que recebeu aquele prêmio. Nem na conquista da Copa América!", observa.

'Se não treinou, não vai jogar'

Outro fator da personalidade de Óscar Tabárez que chama a atenção para Lugano é sua incrível tranquilidade para lidar com qualquer tipo de situação, nas vitórias e nas derrotas.

"Claro que ele fica muito feliz quando ganhamos, mas acho que fica mais feliz por nós. Ele é uim cara que não é de fazer alarde na vitória e nem drama na derrota. É muito equilibrado. Em 10 anos, já passamos por muitos momentos difíceis, como eliminatórias, e êxtases como a Copa América e a Copa do Mundo. Para cada momento, sempre tinha palavras justas e coerentes. Ele te segura na empolgação, e te levanta na tristeza", elogia.
As palavras "justas e coerentes" muitas vezes também são duras, como o próprio Lugano ouviu durante a Copa do Mundo de 2014, no Brasil, quando sentiu dores em meio ao torneio e acabou não jogando por opção de Tabárez, que seguiu sua coerência de sempre.
"Depois do jogo contra a Costa Rica, fiquei com uma dor muito grande no joelho e pedi para ficar três dias no departamento médico para tentar jogar na partida seguinte. Pedi para ele três dias de repouso. Ele disse que permitia, mas que eu iria perder o lugar no time, porque eu tinha que treinar com o restante do grupo para jogar", recorda.
"Para Tabárez, tem que treinar no mínimo quatro dias antes do jogo. Eu expliquei que havia jogado no dia anterior, que era o capitão há 10 anos e merecia essa exceção. Ele respondeu que não. Disse: 'Diego, aqui todos são iguais. Não posso abrir mão das leis do grupo por ninguém, nem você neste caso especial. Se você não pode treinar, não vai poder jogar. Muito fácil, sem mistério. Jogará um companheiro seu'. Técnico falar que trata todo mundo igual é fácil. Palavras qualquer um consegue dizer. Mas dar exemplo, como ele dá, é difícil", exalta.
Lugano também contou com Tabárez como "psicólogo" quando pensou recentemente em se aposentar da seleção uruguaia.
"Logo depois da Copa do Mundo, perguntei a ele: 'Óscar, está na hora de eu deixar de ser capitão, não é? Já faz 10 anos... Acho que já cumpri meu ciclo e tenho que deixar isso para os mais novos, não?'. Ele respondeu: 'Você pensa isso ou só quer escutar palmas e elogios? Se você quer deixar de ser capitão e jogar pelo Uruguai, a decisão é sua. Eu ainda acho que você tem muito a fazer. Agora, se quiser escutar elogios e palmas no seu ouvido, e que falem de você, tudo bem... Quem escolhe é você'", rememora o são-paulino.
"Então, ele me falou que o tempo passa e as novas gerações fazem com que você fique de fora da seleção. É a lei da vida. Mas falou para eu não forçar isso. Foi mais uma lição de vida que eu tive. Eu entendi que o processo natural é a seleção deixar você, não você deixar a seleção. Muitos abandonam a seleção antes de deixarem de ser convocados, por questão de orgulho pessoal. E eu quase fiz isso", admite.
El maestro o convenceu do contrário, e o ex-defensor do São Paulo ficou à disposição do time Celeste até sua aposentadoria, em 2017.
"Ele me fez questionar a mim mesmo. 'Você sente que pode jogar mais ou está querendo ouvir elogios, com medo de que seu momento final chegue?'. Então, eu mudei minha postura publicamente. É claro que aconteceu o processo natural e apareceram outros mais novos que pegaram minha antiga vaga. O treinador entendeu isso, pois sabia que eu não chegaria em condições competitivas na Copa de 2018, e deu prioridade a outros", explica Lugano.
Esta foi a última lição de maestro Tabárez ao seu antigo capitão.
espn.com.br

Professor Edgar Bom Jardim - PE

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