quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

A farra do capitalismo rentista



Foto: Reprodução 
Se você tem acesso à internet, certamente já leu alguma notícia ou presenciou discussões acaloradas sobre Bitcoins. Nos últimos tempos, a moeda digital vem surpreendendo o mundo inteiro com uma valorização surreal, causando euforia e temor. Mas a verdade é que, independente do propósito para o qual as criptomoedas foram criadas, elas repetem um fenômeno já conhecido no sistema capitalista liberal em que vivemos. E suas consequências costumam ser desastrosas.
Há muito mistério envolvendo o surgimento do Bitcoin. O que se sabe é que seu criador, ou grupo de criadores, adotou o pseudônimo de Satoshi Nakamoto, mas, apesar de muitas investigações, nunca se chegou a uma informação oficial crível de quem fosse essa pessoa. Atualmente, ela não é a única moeda digital circulando pela internet, mas, certamente, é a mais conhecida e valorizada.
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Criada em 2008, no contexto da crise econômica global, o Bitcoin é uma criptomoeda. Uma espécie de arquivo digital online que, apesar de funcionar como moeda, não é impresso por governos ou bancos tradicionais. Sua criação se dá através de um processo envolvendo computadores e cálculos matemáticos chamado “mineração”, sendo ela considerada uma moeda descentralizada, sem um poder regulador ou controlador por trás.
Todas as informações envolvendo essas moedas e suas transações são armazenadas em um espaço digital chamado “blockchain”, que se utiliza de criptografia para tanto. Isso garante o anonimato das transações, o que gera a primeira grande crítica à moeda.
Desde a crise dos subprimes em 2008, vivemos uma época de grande desconfiança em relação ao sistema financeiro mundial. Vale lembrar que esta crise, da qual o mundo ainda não se recuperou, teve início com a falta de transparência com que bancos manejavam ativos financeiros relacionados a seguros e hipotecas, criando falsos valores por meio de maquiagens financeiras.
Muitos economistas e pessoas ligadas à política criticam que, mesmo com a grande crise, pouco foi feito no sentido de forçar os bancos a terem maior transparência. Varoufakis diz que, ao contrário, foram os Estados que se curvaram ainda mais aos bancos. Já Piketty propõe que sejam aplicadas sanções, não só aos bancos, mas também aos países que facilitam as políticas obscuras dessas instituições financeiras.
Mas o mercado de Bitcoins e outras moedas digitais caminha justamente no sentido contrário. A criptografia que envolve esse sistema promete o anonimato de todas as transações que o envolvem. Não à toa, a moeda é frequentemente associada a atividades ilícitas, como a compra de drogas na rede Silk Road. Além disso, as moedas digitais são acusadas de facilitar outros ilícitos como a lavagem de dinheiro e a evasão fiscal, como alerta o Nobel da economia Joseph Stiglitz.
Porém, convenhamos, não há nada de novo até aqui. Esses mesmos atos ilícitos e a falta de transparência sempre aconteceram nos sistemas financeiro e monetário tradicionais. Quanto a isso, só o que as criptomoedas poderiam fazer é intensificar ainda mais problemas que já existem. Além disso, bastaria que tal mercado se submetesse às mesmas regulações que o sistema financeiro tradicional para supor que o problema estaria, em parte, resolvido.
Mas esse é só o problema mais óbvio que envolve as moedas digitais.
Outro grande problema que ronda o Bitcoin é que o mesmo já deixou, há muito tempo, de se portar como uma moeda propriamente dita. O fato da criptomoeda ter a capacidade de se valorizar em uma escala incomparável, chegando a ver seu valor aumentar em 1.000% em um único mês, transformou-a, essencialmente, em objeto de especulação.
Isso porque não há motivos para seus proprietários gastarem-na em qualquer tipo de compra se, em menos de uma semana, é provável que a moeda valha o dobro do que vale hoje. Desse modo, investidores têm comprado a moeda com o único objetivo de acumular renda através de sua valorização, apoiando-se, apenas, na fé que outros investidores têm nesse mercado.
É a clássica bolha, como diversos economistas já têm alertado no mundo todo. Por isso não têm faltado comparações com a crise dos subprimes de 2008 ou com a famosa bolha das tulipas holandesas do século 17.
Contra o Bitcoin, pesa, ainda, a grande instabilidade de seu valor, que oscila com grande amplitude e imprevisibilidade a depender das notícias mundiais, além do fato de que a sua produção já está bem próxima do limite de 21 milhões de unidades imposto desde o início ao sistema. Ninguém sabe dizer como se comportará a moeda quando o limite for atingido.
Porém, a empolgação com os possíveis rendimentos em investimentos no mercado do Bitcoin tem lembrado, em muito, o clima pré-crise de 2008. E vale lembrar que tal crise foi extremamente amplificada pelo fato de empresas produtoras e geradoras massivas de emprego, como a General Eletrics, por exemplo, estarem investindo seus lucros em subprimes.
Quando a bolha estourou, a crise gerou um efeito dominó que teve como consequência o endividamento público e o desemprego em escalas globais. Não seria surpresa se o mesmo estivesse acontecendo com o mercado de Bitcoins. Se grandes produtoras e empregadoras estiverem investindo neste mercado, o sinal de alerta já deveria ter sido soado.
Além disso, mesmo que o mercado de criptomoedas surpreenda e não se torne uma bolha prestes a estourar, certo é que ele está constituindo um sistema de produção de desigualdade extrema.
Ao contrário do que se prega, o Bitcoin (e as moedas digitais em geral) não são plenamente acessíveis ao mundo todo. Segundo a ONU, em 2015, mais da metade da população mundial sequer tinha acesso à internet. Pior ainda, além dos 4 bilhões de excluídos do mundo cibernético, os outros 3,2 bilhões estão concentrados em países mais desenvolvidos. Enquanto, na Europa, mais de 80% dos lares estão conectados, na África, o índice é de cerca de 10%.
Além disso, mesmo aqueles com acesso à internet não necessariamente têm a tecnologia suficiente para produzir as moedas através da “mineração”, já que o processo tem demandado cada vez mais dos computadores. Há, ainda, o grande gasto de energia nessa atividade. Hoje, com um serviço que atende apenas cerca de 3 milhões de pessoas no mundo, o Bitcoin já tem um gasto energético que representa 0,15% da demanda global.
Por certo, o investimento em Bitcoins não é para qualquer pessoa. Sobretudo agora que a moeda vale cerca de US$ 18 mil. Isso significa que as moedas digitais podem levar a prática do rentismo a um nível jamais visto.
E, conforme já se sabe bem hoje (e Piketty demonstra isso magistralmente em sua obra), o rentismo tem uma capacidade de acumular capital infinitamente maior que atividades produtivas e que a própria força de trabalho. Não à toa, foram em momentos de farra rentista, em 1929 e 2008, que a desigualdade de renda mundial explodiu. Com um investimento que pode se valorizar em até 1.000% em um mês, como os Bitcoins, esses índices de desigualdade tendem a atingir níveis estratosféricos.
Mas, mesmo que esse processo de “rentização” do Bitcoin seja revertido e ele passe a se comportar como uma moeda verdadeira, ainda existirão outros problemas a serem resolvidos no sistema.
Se o Bitcoin surgiu como uma ideia de moeda universal e independente, não podemos esquecer o exemplo mais clássico e recente de adoção de uma moeda única no mundo. Se houve muito entusiasmo com a criação do Euro por volta dos anos 2000, hoje, a moeda europeia está longe de ser uma unanimidade.
Boa parte dos problemas em se adotar uma moeda única foram sentidos após a crise de 2008. A vinculação a uma moeda que não estava sob o controle do próprio Estado foi fatal para os países menos desenvolvidos da Zona do Euro, sobretudo para os do Sul Europeu como Portugal, Espanha ou Grécia. Sem poder se utilizar de uma flutuação do câmbio, esses países ficaram sem saída quando suas economias começaram a ruir.
Aliás, essa ruína fez com que muitos, nesses países, percebessem que a política de moeda única não foi acompanhada de um mecanismo que reduzisse as desigualdades regionais dentro do próprio continente. Hoje, há um sentimento no Sul da Europa de que os europeus do Norte foram os únicos realmente beneficiados por essa política de união, principalmente a Alemanha, acusada de centralizar o poder dentro da União Europeia.
A lição que ficou da experiência do Euro, portanto, foi de que uma política de moeda única ou universal só pode surtir efeitos positivos se políticas de redução das desigualdades regionais forem implementadas em conjunto. Porém, o que se vê no mundo de hoje é justamente o contrário, com o aumento dessa desigualdade. Um ambiente nada propício para o sonho da unificação monetária.
Há, ainda, a questão do impacto ambiental, já que o gasto de energia para a produção das criptomoedas é, simplesmente, inviável para a construção de um sistema realmente global.
Com tudo isso, alguns países já têm se mexido para se proteger de um possível novo colapso econômico por conta das criptomoedas. O Equador, por exemplo, já criou sua própria moeda digital, com valor vinculado ao dólar como forma de manter a segurança. A China foi mais radical e proibiu as operações envolvendo esse tipo de moeda, embora algumas pessoas acreditem que o país deva criar a sua própria versão.
Se estes fatos chegaram a jogar o valor do Bitcoin pra baixo, por outro lado, o sistema de InitialCoinOffering e a estreia do Bitcoin no mercado futuro da Bolsa de Chicago elevaram sua cotação e deram ainda mais força à criptomoeda.
Vivemos em um mundo ainda bastante debilitado pela última farra rentista que nos acometeu. Ao contrário de 1929, porém, desta vez pouco foi feito para remediar o problema, e boa parte do mundo parece ainda se render aos mecanismos de um capitalismo liberal cada vez mais capenga.
Uma nova crise, sem dúvidas, pode causar um estrago ainda maior e forçar uma grande mudança na ordem mundial. Poderia a bolha dos Bitcoins se transformar na pá de cal da velha ordem?
Almir Felitte é advogado, graduado pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.
Carta capital
Professor Edgar Bom Jardim - PE

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